As descobertas e as invenções — não se pode descobrir o que existe! | Carlos Matos Gomes in “Medium”

A discussão sobre o nome a dar a um futuro museu das descobertas tem-me proporcionado descobertas espantosas. O argumento mais espantoso que ouvi é o de que não se pode descobrir o que já existe!

É um argumento do mesmo tipo dos que explicam não poder a Terra ser redonda pela impossibilidade de os habitantes dos antípodas viverem de cabeça para baixo! É um argumento de pés no lugar da cabeça. Na realidade só é possível descobrir o que existe. Descobrir o que não existe não é descobrir, é inventar, ou criar. O átomo foi descoberto porque existe. As minas de ferro são descobertas porque existem concentrações de rochas ferrosas. O que não existia e teve de ser inventado foi a bomba atómica, ou as utilizações do ferro como utensílios, armas, estruturas, ou o aço.

A descoberta da impossibilidade de descobrir o que existe ocorre a propósito da recusa em aceitar que os portugueses descobriram novas terras e novas gentes.

Os defensores de que não é possível ter descoberto a África e os seus povos, ou as Américas e os seus povos porque eles já existiam colocam a comunidade científica no desemprego. O que fazem os cientistas que, de olho num microscópio, numa ação deliberada de pesquisa, vêm um vírus até aí desconhecido, mas que, obviamente, já existia? Não fazem uma descoberta? O que faz um entomologista que, numa floresta, encontra uma espécie de borboleta até aí desconhecida, mas já existente? Não faz uma descoberta? Ou o que realiza uma equipa de exploradores e antropólogos que encontra na Amazónia uma tribo até aí desconhecida, mas já existente? Não realiza uma descoberta? Ou um astrónomo que descobre no seu telescópio um planeta, uma estrela ou uma galáxia até aí desconhecida, mas obviamente existente? Não realiza uma descoberta?

Claro que os portugueses, como alguns outros povos europeus, descobriram outras terras e outros povos já existentes e, mais, descobriram culturas já instaladas e desenvolvidas, é evidente, mas desconhecidas deles. E foram os portugueses e os europeus que tomaram a iniciativa de partir à descoberta, daí serem os descobridores — os agentes ativos da descoberta — enquanto os que permanecerem nos seus lugares foram os descobertos — os agentes passivos da ação de descobrir.

A ideologia do igualitarismo não pode anular as diferenças entre o ir e o permanecer. Assumir a igualdade da dignidade da opção de ir ou de permanecer não pode conduzir à distorção da realidade da diferença dos dois atos. Os factos são os factos. A história da humanidade é a história da luta pela descoberta das leis e das regras que regem a ocorrência dos fenómenos despindo-as da subjectividade, das crenças, do empirismo do parece que é assim.

No Ocidente, até à Idade Média, era a Terra que se encontrava no centro do universo, como estabelecera o grego Ptolomeu, até Copérnico e Galileu fazerem a descoberta de que desde sempre a Terra girava à volta do Sol. Descobriram o que já existia. No mundo muçulmano, Ibn Khaldoun, o maior sábio da cultura árabe até ao século catorze, escrevia sobre os seres a sul do deserto do Sara: “essa parte da África constitui uma reserva de escravos ‘Lamlam’, com escarificações no rosto. Mais adiante, ao sul, os homens que existem estão mais perto de animais do que de seres racionais […]. Não é possível incluí-los entre os seres humanos. O modo de vida desses homens deve-se ao seu distanciamento da zona temperada que os faz acercarem-se dos animais selvagens e, na mesma proporção, afastarem-se da espécie humana”. Foram os portugueses que descobriram que a sul do deserto existiam povos organizados politica e socialmente de forma que até podiam ser baptizados e reconhecidos como aliados, como aconteceu com o rei do Congo. Foi uma descoberta do que já existia, mas não era conhecido.

Para o árabe (nascido na Tunísia e residente no Cairo) Ibn Khaldoun, a Terra era totalmente cercada pelas águas de um oceano. “A água foi retirada”, diz ainda Ibn Khaldūn, “de certas partes do mundo onde Deus quis criar os seres vivos e que desejou povoar com a espécie humana…” Foram portugueses que comprovaram que não era assim. Que descobriram a Terra como ela existia.

A descoberta é sempre sobre o que existe. E é um ato recíproco, aquele que é descoberto, além de existir, também descobre o seu descobridor. O exemplo clássico do descoberto que descobre o descobridor é o do discurso de um chefe tribal de Samoa, Tuiavii, aos seus súbditos sobre o Papalagui, o homem branco, a sua civilização e os seus males, no regresso de uma viagem a Paris.

A diferença entre Tuiavii e os descobridores europeus, os Papalagui, é que foram estes a descobri-lo e a trazê-lo para lhe proporcionar a descoberta do que já existia, da sua civilização, das suas casas, dos seus carros, do modo de comer, da sua comida.

A propósito, nem a roda, nem a pólvora foram descobertas, foram inventadas. As descobertas existem. A Terra é redonda e gira à volta do Sol, mas foi necessário descobrir que era assim.

Carlos Matos Gomes 

Medium: https://medium.com/@cmatosgomes46/as-descobertas-e-as-inven%C3%A7%C3%B5es-n%C3%A3o-se-pode-descobrir-o-que-existe-aac80fccda51

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