Esta é uma despedida de amor e de ternura. Faço questão de dizer isso, Carmo Afonso.

Gostei dele à primeira, mas foi um sentimento que se foi aprofundando ao sabor de todas as coisas corajosas que o ouvi dizer ou que escreveu e que tive oportunidade de ler. Falo, por exemplo, de textos em que o papa Francisco defendeu princípios e valores que os partidos, a que chamam de extrema-esquerda, já não se atrevem a defender. Porque já ninguém tem espaço para verdadeiramente pôr em causa o mercado ou o liberalismo. Estamos todos enfiados até ao pescoço nele e já não concebemos um mundo de igualdade e de autêntica distribuição de riqueza. Seria uma vertigem para a qual pouquíssimos estão preparados. Mas Francisco defendeu isso mesmo e usando todas as palavras que agora são proibidas e tidas como extremistas.

Não foi só nas questões ideológicas que foi corajoso. Lembro-me do início da invasão da Ucrânia e da defesa que fez de negociações pela paz. Nunca transigiu nessa defesa. Por cá, e neste eixo Euro-Atlântico que agora se esfuma à frente dos nossos olhos, as posições eram irredutíveis e firmes: apoio incondicional à Ucrânia até à vitória contra Putin. Morreram entretanto centenas de milhares de pessoas, sobretudo jovens das famílias mais pobres de ambos os países (que são precisamente os que vão para a frente de combate) e para quê? Essa vitória foi sempre uma miragem. Mas alguém poderia acreditar que Putin, carregado de armas nucleares, seria derrotado numa guerra contra a Ucrânia? Vi Francisco ser chamado de putinista, como foram todos os que defenderam negociações de paz e que deram um enquadramento que, não justificando a invasão (ou seja: não a legitimando de forma alguma), ajudava a perceber porque tinha Putin invadido a Ucrânia. O Papa Francisco fez parte desse grupo. Vi um tweet dele a falar do excessivo alargamento da Nato e a relacionar esse alargamento com a invasão. Parece-vos pouca coisa? Não é. A coragem que é precisa para afirmar no espaço público algo que está em contracorrente com o que defende a maioria dominante é incomensurável. Perguntem aos comunistas e perguntem-lhes também quais foram as consequências desse exercício de coragem.

Por falar em comunistas, Francisco gostava deles. Via no comunismo e no marxismo, aquilo que têm de melhor: o pressuposto de que é possível um modelo de sociedade em que todos estão dispostos a dar o seu melhor pelo bem comum. Sabe Deus que a História não nos ajuda a demonstrar que têm razão. Temos de o admitir. O melhor que se conseguiu até agora – como concretização de um modelo político – foram as sociais-democracias europeias. Isto faz de todos os que continuam a defender um modelo comunista ou marxista verdadeiros crentes na bondade da natureza humana. Essa crença é transcendente e desprovida de argumentos irrebatíveis – um pouco como acontece com a crença em Deus. Só as mulheres e os homens bons acreditam que a natureza humana é bondosa. Francisco acreditava.

Claro que houve também a Palestina e os seus apelos ao cessar-fogo. Nas igrejas portuguesas muitos padres aproveitavam a missa para falar do martírio do povo escolhido e perseguido – enquanto decorria um genocídio. E houve muito mais. Alertou para o perigo do crescimento da extrema-direita. Sim, repudiou estes beatos que apregoam o cristianismo, mas que praticam e incentivam a discriminação e o ódio.

Francisco tinha inimigos na Igreja Católica. Uns mais evidentes e outros na sombra. Não foi com ele que a Igreja conheceu a revolução de que precisaria, mas foi com ele que deu passos nessa direção. Temos de reconhecer isto, é o mínimo de Justiça que lhe devemos. Fez o que pode. Como diria o meu pai: mudar a Igreja Católica é como moldar ferro frio. Peço perdão: o meu pai é católico e estou eventualmente a exceder-me na utilização das suas palavras.

A Igreja Católica tem muitos defeitos e falhas, alguns gravíssimos, mas não é isso que a resume. Foi ela que conseguiu, ao longo dos séculos, preservar uma coisa fundamental: os valores do cristianismo e a doutrina de Jesus Cristo. Este legado tem sido uma proteção contra a proliferação de correntes religiosas e espirituais – desculpem, mas em quase tudo inferiores e por vezes até duvidosas – a que continuamos a assistir. E são bons valores, inultrapassáveis mesmo. Nunca li nada atribuído a Jesus Cristo, ou algum relato do que supostamente fez, que não fosse inspirador e irrepreensível. Olhamos para a opulência do Vaticano e para os ensinamentos de Cristo (que viveu entre os mais pobres, entre os leprosos, entre os mais desprotegidos) e somos obrigados a concluir que algo correu muito mal, que alguém interpretou tudo ao contrário.

As coisas são o que são. As contradições estão à nossa volta e dentro de nós mesmos. É muito bom quando vemos ou conhecemos alguém mais inteiro e íntegro do que a maioria e do que nós mesmos. É perfeito quando esse alguém ocupa uma posição em que pode fazer a diferença para todos.

Obrigada, Francisco. Vieram-me umas lágrimas, por sua iniciativa, aos olhos quando soube que tinhas partido. Esta é uma despedida de amor e de ternura. Faço questão de dizer isso.

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