Gosto das mulheres que envelhecem, com a pressa das suas rugas, os cabelos caídos pelos ombros negros do vestido, o olhar que se perde na tristeza dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se nos cantos das salas, olham para fora, para o átrio que não vejo, de onde estou, embora adivinhe aí a presença de outras mulheres, sentadas em bancos de madeira, folheando revistas baratas. As mulheres que envelhecem sentem que as olho, que admiro os seus gestos lentos, que amo o trabalho subterrâneo do tempo nos seus seios. Por isso esperam que o dia corra nesta sala sem luz, evitam sair para a rua, e dizem baixo, por vezes, essa elegia que só os seus lábios podem cantar.
“Soltar, entregar, deixar ir Deixar partir, fluir…”
Viver no presente, sem o peso do passado Sem expectativas para o futuro… Saber da nossa finitude. Sem posses, sem medo, sem culpa, Saber que somos passageiros de uma vida passageira.
Valentina tem consciência claríssima da vida. E é engraçado como essa lucidez não rouba seus sonhos, sua alegria, seu fazer, seu ser, seu estar.Ela está pro mundo assim como o ar está pra vida.
Relaciona-se bem com o que perdeu, embora sinta saudades… Mas, não é uma saudade doída, é uma saudade cheia de lembranças boas; as más parecem que nunca existiram, ou então sua memória as deletou no tempo. Nisto somos parecidas, sempre digo que no tempo da memória, mando eu.
Não sei dizer como Valentina ficou assim, tão desencanada com tudo. Valentina também não consegue estabelecer um ponto de partida para este seu devir no mundo. Quer saber? Isto não tem a mínima importância. Esta história de ficar querendo entender tudo, saber o profundo de todos os eus que nos habitam, já não faz parte das necessidades de Valentina.
Dado o sucesso lúdico do último assunto – o pénis – por justiça antónima trago hoje à liça o cunos, também conhecido por cona, ou ainda fenda, vulva ou greta, que tem o seu garbo. Há um autor inultrapassável que discreteou com elegância e humor de uma estirpe clássica sobre vários tipos de conas imaginárias, de sua graça Juan Manuel de Prada. Perante ele me vergo apondo somente uma breve reflexão sobre a íntima unidade da mulher.
A meio das suas reflexões inauditas (por exemplo, o capítulo sobre as conas das mulheres sonâmbulas) entendeu Juan (justamente) descrever a cona da sua namorada. Não o farei exaustivamente, como o fez o autor basco, por respeito à sua dona, dizendo apenas que quem vê caras poderá ver conas, se tiver olho para isso. É como o tamanho e espessura do polegar masculino, que dita a envergadura e formato do dito.
Interessam-me as redundâncias das conas e as suas infinitas possibilidades. A cona, a quem os exegetas das mulheres chamam o mais belo dos moluscos, sendo o clitóris o berbigão, é um mundo aquático. Talvez aqui resida a sua maior dádiva, permitindo, como a natação, inúmeras variantes encorpadas. Entre o boiar e a mariposa, o mergulho encarpado e a remada de bruços, há todo um manancial de formas de a abordar.
O pénis e a cona juntos, na justa e devida medida do encaixe habilitado, são como a harmonia dos corpos celestes. Não se pode ser demasiado macho a abordar uma cona, tal como não deve uma mulher (resumindo este micro ensaio ao campo heterossexual) tratar o pénis com ímpetos de lenhadora. Para asseverar da importância da cona no território da felicidade conta-se a história de um anão adulto que gritou alto a palavra CONA no meio de uma tribuna de crianças a quem pediam um vocábulo sinónimo de alegria, celebrando assim o seu entusiasmo pela felicidade de estar vivo, apesar da sua baixa condição. O anão tinha-se escapado para o meio do coro infantil durante uma visita presidencial e face à interrogação requerida ditou o que lhe ia na alma. Como um amante feliz.
“Câmara Escuro” reúne 65 peças que reafirmam a maturidade poética do autor
I Depois de alguns anos sem publicar livros de poesia, Moacir Amâncio reaparece com Câmara Escuro (São Paulo, Editora Hedra, 2022), que reúne 65 poemas que reafirmam a sua maturidade poética e mostram que, “às vezes, precisamos baixar os olhos para ver, e de pequenos deslocamentos para achar um outro modo de estar onde estamos”, como observa Roberto Zular, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), no texto de capa que escreveu para este livro. E acrescenta: “Um livro que, enfim, faz das sombras um mote para redimensionar o caminho da iluminação”. De fato, o leitor não vai encontrar aqui poemas que possam servir de exemplo perfeito para o conceito estabelecido pelo professor Massaud Moisés (1928-2018) segundo o qual a poesia é a expressão do “eu” por meio de metáforas, como aquela famosa frase de Fernando Pessoa (1888-1935) em que o poeta contempla o silêncio feminino e nele descortina uma nau: “o teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas”. Nestes poemas curtos, que não se confundem com haicais, a metáfora literária tem objetivo estético, procurando reproduzir beleza ou emoção estética. Ou seja, as palavras procuram reproduzir, através de uma figura de linguagem, fenômenos provocados por uma condição neurológica, estabelecendo uma experiência sinestésica, que se dá por via sensorial ou cognitiva.
Deixa-me ser a tua amiga, Amor; A tua amiga só, já que não queres Que pelo teu amor seja a melhor A mais triste de todas as mulheres. Que só, de ti, me venha mágoa e dor O que me importa a mim?! O que quiseres É sempre um sonho bom! Seja o que for, Bendito sejas tu por mo dizeres!
Beija-me as mãos, Amor, devagarinho… Como se os dois nascêssemos irmãos, Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho…
Beija-mas bem!… Que fantasia louca Guardar assim, fechados, nestas mãos Os beijos que sonhei pra minha boca!…
Para investigar a vida de Bocage em suas minúcias, Adelto Gonçalves percorreu todas as biografias e estudos importantes sobre o autor.
I
“Bocage, alistado na Marinha, cursou a respectiva Academia, embarcou para a Índia, foi boêmio no Rio de Janeiro, passou três anos em Goa e Damão, desertou fugindo para Macau, regressou a Lisboa, onde a vida livre e as sátiras o atiraram para a prisão e o hospício. Morreu doente e pobre, traduzindo nos seus versos a sua vida e o seu tempo”. Essa síntese da vida de Bocage (1765-1805), feita no prefácio de Bocage, o Perfil Perdido pelo professor catedrático de Literatura da Universidade de Lisboa, Fernando Cristóvão, bem caberia em similaridade àquela feita por Nabokov sobre um personagem no início de seu romance Gargalhada na escuridão, em relação à qual o escritor russo acrescenta: “Eis aí toda a história, e bem poderíamos abandoná-la neste ponto, se não houvesse vantagem e prazer em contá-la. Embora haja espaço mais do que suficiente numa pedra tumular para conter, encadernada em musgo, a versão re sumida da vida de um homem, os pormenores são sempre bem recebidos”. É o que faz o professor e escritor Adelto Gonçalves ao investigar a vida de Bocage em suas minúcias, percorrendo todas as biografias e estudos importantes sobre o autor, cotejando e contrapondo-os às suas novas descobertas e correções oriundas de exaustivas pesquisas em arquivos e fontes primárias como trabalho de pós-doutoramento na Universidade de São Paulo (USP), que teve sua primeira edição em 2003, em Portugal, pela Editorial Caminho, de Lisboa, e que agora sai em nova edição, com excelente projeto gráfico e ilustrações, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. A vida do poeta português, propagandeada pelo senso comum como “agitada e de boemia” em geral para promover seleções mais vendáveis de sua poética, se decompõe nessa biografia quando a acompanhamos inserida em detalhes na sociedade da sua época histórica e cultural que, agitada e contraditória, se expressa na obra de Bocage transitando do neoclassicismo das Arcádias aos primeiros momentos do romantismo.
Oh, que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves! Que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! O que mais passam na manhã e na sesta, Que Vénus com prazeres inflamava, Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo, Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.
Poeta faz com versos nada herméticos uma viagem ao tempo da inocência
I Para comemorar o centenário de seus pais, os poetas Humberto Pinheiro Fontes e Maria do Carmo Alencar Oliveira Fontes, ambos nascidos em 1917, o poeta cearense Eduardo Fontes lançou Devaneios (Fortaleza, Editora Expressão Gráfica, 2017), seu 17º livro, que traz prefácio de Anderson Braga Horta, da Associação Nacional de Escritores (ANE), de Brasília, e ilustrações do artista plástico Descartes Gadelha. Poeta bastante conhecido no Nordeste, talvez porque em seus versos nada herméticos e extremamente líricos sempre se mostrou muito preocupado em exaltar suas origens, Fontes, mais uma vez, confirm a sua opção por uma simplicidade que faz evocar nos leitores os anônimos menestréis de tempos mais amenos.
«A heterónima Pessoana não nasce apenas da multiplicidade do carácter ou de uma forma de fugir a uma Lisboa enfadonha no início do século vinte que, por acaso, até nem o era, dado o clima efervescente da Primeira República onde todas as viragens sociais e culturais se davam à velocidade do vapor. Essa tese cai por terra de tão inexacta que é. Em nós, não cabem, não -todos os sonhos do mundo – muito menos temos a elasticidade mimética de ser conforme a circunstância. Há, sem dúvida, componentes que fazem um homem mais vibrátil na multiplicação de si mesmo. Mas o que a uns parece do efeito da quimera e do desdobramento da personalidade, pode neste caso ter outras origens bem mais profundas.
Pessoa é originário da Covilhã e de um ramo bastante circunscrito. Sabendo-se da sua descendência familiar que partia de cristãos-novos referenciados, ora existe ainda um ramo remoto que vem das duas filhas de António José da Silva, judeu relapso: uma fugida para os Países Baixos de onde não mais regressaria e outra que vivera escondida dentro de casa para o resto da sua vida. É desta que o ramo é descendente. Para se viver, para se ter subsistido, foram precisas muito mais que análises vãs e, para se ter desembocado em Pessoa, foi preciso também muito mais que uma imaginação torrencial, inspiração, génio e “jeito”. Foi ainda preciso ter nas veias aquela plasticidade de saber que mudar de nome, ter vários nomes, até formas de expressão, fazia parte de uma camuflagem em prol da resistência e do salvar a vida. Aqui chegados, e caso os inimigos sejam só fantasmas, a memória nem por isso se torna um elo morto. E foi nesta imensa componente toldada de segredos que ele se deslinda, acrescentando à necessidade a arte de transformar o medo, a arte pura. Aliás, grandes obras nascem destes caminhos que, depois de aparentemente solucionados, libertam para outra área elevando os mesmos argumentos.
Poeta faz da evocação da mãe que não teve a música inominável de sua poesia
I Em poucos poetas antigos ou modernos brasileiros (para não se dizer nenhum), a evocação da mãe é tão presente e tão luminosa como em Adalberto de Queiroz (1955), que foi educado como órfão em abrigo de Anápolis, no interior de Goiás, de onde saiu só em 1973 para cursar Física na Universidade Federal de Goiás (UFG). Poeta, jornalista e ensaísta, Queiroz, em 2021, lançou a segunda edição, revista e repensada, de Cadernos de Sizenando, publicado em 2014, livro de poemas que “saem da angústia para o enfrentamento da realidade”, como definiu no pref&a acute;cio o escritor Iúri Rincon Godinho, membro da Academia Goiana de Letras. Godinho explica que, a pedido do autor, para a segunda edição da obra, retirou os textos em prosa poética da primeira, deixando apenas os poemas, garantindo que o material que ficou de fora “merece outro livro”. Tanto os textos em prosa poética quanto os poemas haviam sido publicados inicialmente em um blog (http://www.betoqueiroz.com) que Adalberto de Queiroz ainda mantém na internet. Como diz Godinho com percuciência, se ele, como editor do texto, tivesse tirado também todos os poemas e deixasse apenas aquele que tem por título “É a Mãe” o livro já valer ia a pena ser lido.
Fernando António Nogueira Pessoa (1888 — 1935) foi um poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político português. Um dos maiores génios poéticos de toda a nossa Literatura e um dos poucos escritores portugueses mundialmente conhecidos. A sua poesia acabou por ser decisiva na evolução de toda a produção poética portuguesa do século XX. Se nele é ainda notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal, na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível para ter criado os célebres heterónimos – Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterónimo Bernardo Soares.
AQUI HÁ UNS ANOS FOMOS CONVIDADOS, EU E A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, PARA FAZER UM RECITAL NO KING’S COLLEGE (LONDRES). EIS UM DOS POEMAS QUE LI E A SUA TRADUÇÃO POR JONATHAN GRIFFIN, E QUE DEPOIS FOI INCLUÍDO NA BELÍSSIMA ANTOLOGIA “CONTEMPORARY PORTUGUESE POETRY”. VOU ILUSTRÁ-LO COM A GUERNICA, DE PICASSO.
Ouve-se, encantamo-nos … e choramos. É impossível não chorar! [vcs]
Único texto conhecido do heterónimo esquecido de Fernando Pessoa “Maria José”, cujo nome conhecido é “Carta Da Corcunda Para o Serralheiro”.
Fernando Pessoa criou 46 pseudónimos e autores fictícios mas só um era mulher, Maria José, corcunda e patética, figura nada atraente, imagem que o poeta também tinha de si. Fernando António Nogueira Pessoa (1888 — 1935) foi um poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político português. Um dos maiores génios poéticos de toda a nossa Literatura e um dos poucos escritores portugueses mundialmente conhecidos. A sua poesia acabou por ser decisiva na evolução de toda a produção poética portuguesa do século XX. Se nele é ainda notória a herança simbolista, Pessoa foi mais longe, não só quanto à criação (e invenção) de novas tentativas artísticas e literárias, mas também no que respeita ao esforço de teorização e de crítica literária. É um poeta universal, na medida em que nos foi dando, mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da Vida. É precisamente nesta tentativa de olhar o mundo duma forma múltipla (com um forte substrato de filosofia racionalista e mesmo de influência oriental) que reside uma explicação plausível para ter criado os célebres heterónimos – Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sem contarmos ainda com o semi-heterónimo Bernardo Soares.
A Portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novaes (1835-1904) foi esposa do escritor Brasileiro Machado de Assis de 1869 a 1904, ano da morte de Carolina.
Eles se conheceram por intermédio do irmão de Carolina, o poeta Faustino Xavier de Novaes, após ela se mudar de Portugal para o Rio de Janeiro, aos 32 anos, cinco a mais do que Machado. No período, era incomum uma mulher solteira com essa idade, mas a decisão, nesse caso, era da própria Carolina, a quem sobravam pretendes. A portuguesa é descrita por Miguel-Pereira como “mulher feita, inteligente, desembaraçada, senhora de si, habituada, na casa paterna, ao trato dos intelectuais”.
O namoro foi reprovado pela família de Carolina, pertencente à elite intelectual, enquanto Machado ainda não tinha grande reconhecimento social – na época, escrevia para jornais e trabalhava no Diário Oficial – e, mais importante, era mulato.
“Na hierarquia social, Carolina se uniu, por escolha própria, a alguém de nível abaixo. Ela foi determinante para que ele tivesse estabilidade emocional e também transitasse entre intelectuais”, diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor do livro Machado e Borges (Arquipélago).
Dormi contigo toda a noite junto ao mar, na ilha. Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono, entre o fogo e a água.
Os nossos sonos uniram-se talvez muito tarde no alto ou no fundo, em cima como ramos que um mesmo vento agita, em baixo como vermelhas raízes que se tocam.
0 teu sono separou-se talvez do meu e andava à minha procura pelo mar escuro como dantes, quando ainda não existias, quando sem te avistar naveguei a teu lado e os teus olhos buscavam o que agora — pão, vinho, amor e cólera — te dou às mãos cheias, porque tu és a taça que esperava os dons da minha vida.
there are worse things than being alone but it often takes decades to realize this and most often when you do it’s too late and there’s nothing worse than too late.
Florbela Espanca (Vila Viçosa, 8 de dezembro de 1894 — Matosinhos, 8 de dezembro de 1930), batizada como Flor Bela Lobo, e que opta por se autonomear Florbela d’Alma da Conceição Espanca, foi uma poeta portuguesa. A sua vida, de apenas 36 anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos, que a autora soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotização, feminilidade e panteísmo. Há uma biblioteca com o seu nome em Matosinhos.
Em pesquisa de grande fôlego, o escritor e pesquisador brasileiro Adelto Gonçalves recuperou dados da vida e obra, muitos antes inéditos, de Manuel Maria Barbosa du Bocage, o poeta que sonhava ser um novo Camões
Por Hugo Almeida
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Com outras palavras, Jorge Luis Borges disse na apresentação de Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, que a trajetória de uma pessoa está contida naquele tracinho que liga a data de nascimento à de morte. Ou, como escreveu Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.De certa forma, é isso que o escritor e pesquisador brasileiro Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP),mostra na biografia de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805),Bocage, o perfil perdido (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2021).
Em pesquisade impressionante fôlego, paciente,minuciosa,riquíssima em documentação inédita,Gonçalves recompôs em 520 páginasos 40 anos da vida intensa, agitada e contraditória do poeta que não realizou o sonho megalomaníaco de ser um novo Camões, mas entrou para a história da literatura portuguesa. O livro já havia sido publicado em Portugal em 2003 e foi aplaudido pela crítica especializada.
No prefácio da edição brasileira, Fernando Cristóvão, professor catedrático de Literatura da Universidade de Lisboa, resume em um parágrafo quem foi o poeta: “Bocage, alistado na Marinha, cursou a respectiva Academia, embarcou para a Índia, foi boêmio no Rio de Janeiro, passou três anos em Goa e Damão, desertou fugindo para Macau, regressou a Lisboa, onde a vida livre e as sátiras o atiraram para a prisão e o hospício. Morreu doente e pobre, traduzindo nos seus versos a sua vida e o seu tempo”. Cristóvão ressalta a importância de Bocage, o perfil perdido: “Foi para historiar e elucidar as contradições e lances da biografia do poeta que Adelto Gonçalves se abalançou a uma pesquisa aturada e sistemática, de que esta publicação dá conta”. E completa: “O excelente trabalho de agora vai desde o traçado da árvore genealógica da família de Bocage até ao final dos seus dias, facultando-nos abundante documentação”.
Depois de publicar, em 2019, Vida Aberta (São Paulo, Editora Penalux), o romancista, poeta, cordelista e ator de teatro e cinema W. J. Solha (1941) chega com 1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite (Cajazeiras-Paraíba, Arribaçã Editora, 2021), ao quinto volume de seu Tratado Poético-Filosófico, de seis que pretende publicar. Trata-se da continuação de um longo poema em versos livres, um discurso utópico, em que procura reconstituir a história da Humanidade e seus muitos saberes e numerosos fracassos.
Poeta que sempre operou a anarquia nos gêneros, espécies e formas literárias como maneira de se libertar do peso da tradição que sempre impediu que se fizessem voos mais altos e abertos para a intuição, Solha volta a fazer a junção do popular com o erudito, exigindo de seu leitor um conhecimento profundo não só de Literatura e Filosofia como de fatos que marcaram a vida no planeta, com citações que vão desde o Evangelho de João até Machado de Assis, passando por Descartes, Santos Dumont, Frida Khalo, Salvador Dali, Mozart, Caravaggio, Bela Bartok, Shakespeare, Charlie Chaplin, Freud, Stendhal, Tolstoi, Darwin, Gilberto Gil, Gal Costa, Ivete Sangalo e muitos outros nomes representativos da cultura mundial e nacional.
Ils se sont dits oui Pour le meilleur et pour le pire Elle a passé des décennies à pleurer C’est dans leur lit conjugal Qu’elle se verra croupir Elle maudit le jour Où elle avait accepté De vivre avec l’homme Qu’elle avait tant aimé Elle n’avait qu’une idée en tête Celle de déguerpir Mais les bons moments l’en empêchaient Il ne passe pas un jour Sans qu’elle pousse de fourbus soupirs Elle en avait gros sur le cœur Personne ne pouvait le nier Elle se plaignait tous les jours à son seigneur Il a fini par être fatigué de l’écouter Alors pour mettre fin à son malheur Il tua son mari
Lançado em Portugal em 2003, o livro ganhou a sua edição brasileira em 2021 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
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Pelo que me lembro, na minha chamada memória recorrente desde priscas eras de atiçado buscador e ledor voraz, Bocage era e ficava entre um Pedro Malasartes (figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, tido como burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes, de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos) e um Casanova (Giacomo Girolamo Casanova, escritor e aventureiro italiano, tendo interrompido as carreiras profissionais que iniciou — a militar e a eclesiástica — e que passou a levar uma vida aventurada), em terras de Camões, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa, muito antes ainda de José Saramago, portanto. Tinha-o como um boêmio aprontador em terras lusas de Cabral e de Pero Vaz Caminha.
Lendo agora Bocage, o perfil perdido, que virou clássico da obra-pesquisa-documentário do mestre e doutor Adelto Gonçalves, depois de levar tempo para lê-lo, tal o peso do livraço e a densidade do historial enquanto pesquisa e documentário também, posso dizer que tive uma universidade de mais de ano inteiro sobre o poeta. Afinal, um curso e tanto, um livro precioso, com aulas magnas desse que já é escritor esmerado de tantos outros portentosos livros, que tive o prazer de ler, curtir e gostar, e até me mesmo fazer aqui e ali breves resenhas.
Autora consagrada na área ensaística, especialmente com livros sobre o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin (1892-1940), Maria João Cantinho (1963) chega ao seu quinto livro de poemas com Escopro e Luz (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2021), afirmando-se como uma das maiores poetisas (e por que não poetas?) da Língua Portuguesa dos séculos XX e XXI. Mas isto não significa que atue de maneira independente numa e noutra área do pensamento.
Pelo contrário. Em sua poesia, percebe-se o desencanto da poetisa com o mundo em que lhe coube viver, como se visse a História pelas lentes de Walter Benjamin que, em sua crítica ao progresso, prognosticara períodos de crescimento seguidos de outros de barbárie e selvageria, antevendo o retrocesso europeu e norte-americano dos tempos atuais, o que inclui também a época de desconstrução e desagregação social por que passa o Brasil de hoje.
Como já anteviu o professor José Cândido de Oliveira Martins, da Universidade Católica Portuguesa, em alentado e percuciente ensaio-introdutório de 12 páginas escrito à guisa de prefácio, a palavra poética de Maria João Cantinho “tem o misterioso poder de ajudar a cicatrizar a ferida aberta, regenerando e revitalizando o corpo sofrido, assim plasmado no corpo do poema ou da poesia”. Afinal de contas, diz o professor, são estas vozes (da poesia, das lembranças da infância ou de outras proveniências) que nos resgatam da iminência do naufrágio – “São as vozes que nos salvam”.
A poesia já me salvou muitas vezes. Salvou-me, inclusive, da vontade de não escrever, sintoma que sempre indica coisa ruim, já que esta é a tarefa que mais me aproxima do que entendo por Deus. Falo de todo tipo de poesia. Daquela da vida cotidiana, que se esconde nos pormenores do mundo. Disfarçada de seu prato predileto, feito por uma amiga num dia despretensioso. Revelada na foto de um amigo, de tirar o fôlego pela beleza. Embalada pela prosa num comentário sensível ou numa mensagem de voz emocionada sobre algo que a gente escreveu. Ela está também na sabedoria de um pai que, do outro lado do oceano, diz a uma filha: “Não se preocupe. O Bem sempre encontra um jeito de chegar aos justos”.
A poesia sempre me pega de surpresa nas madrugadas. Acho que é nestas horas que ela anda por aí a nos espreitar pelos silêncios, pelas reflexões que chegam abraçadas à insônia. Quando o sono não vem – seja pela ansiedade por algo bom, seja pela preocupação com algo ruim – torno-me mais sensível aos sons, cores e acontecimentos comuns. E foi justo num desses dias pós-insônia que recebi o texto do escritor angolano José Eduardo Agualusa das mãos da professora Cristina. Nele, Agualusa dá voz ao escritor argentino José Luis Borges, falecido em 1986, tornando-se uma espécie de ‘médium’ e permitindo que Borges relate-nos como tem sido sua experiência no paraíso: “O Paraíso é pensar”, diz. O texto nos leva a uma reflexão sobre o mundo dos livros hoje e sobre a importância das pequenas editoras, com sua luta ingrata para que a literatura seja preservada. E termina: “A beleza é ingrata. E, contudo, é a beleza”. Diante daquele presente-poesia no meu primeiro dia de aulas em terras estrangeiras, deixei correr uma emoção aliviada. Aquela manifestação poética, para mim, era a confirmação de que eu estava há milhares de quilômetros da minha casa, da minha família, dos meus amigos e dos meus gatos, mas era exatamente onde eu deveria estar.
Em 1965, a jovem Nara Leão, então com 23 anos, dá uma entrevista por telefone a um jornal brasileiro em que critica duramente o regime militar ditatorial acabado de instalar: “Sou contra militar no poder. Considero os exércitos, no plural, desnecessários e prepotentes.” A censura ainda não tinha sido instaurada no país e a musa da Bossa Nova, que deve conhecer do clássico “João e Maria”, enfrentava a ameaça de prisão e tortura. Mas não vacilava: “Não mudo de opinião.” O poeta modernista Carlos Drummond de Andrade, que nem a conhecia pessoalmente, escreveu então um poema ao marechal-ditador Castelo Branco que mandou publicar nos jornais.
Eu queria mais altas as estrelas, Mais largo o espaço, o Sol mais criador, Mais refulgente a Lua, o mar maior, Mais cavadas as ondas e mais belas;
Mais amplas, mais rasgadas as janelas Das almas, mais rosais a abrir em flor, Mais montanhas, mais asas de condor, Mais sangue sobre a cruz das caravelas!
E abrir os braços e viver a vida: – Quanto mais funda e lúgubre a descida, Mais alta é a ladeira que não cansa!
E, acabada a tarefa… em paz, contente, Um dia adormecer, serenamente, Como dorme no berço uma criança!
Sans clepsydre, ni sablier, sans horloge, ni pendule, sans attendre le crépuscule, Amira s’inquiète de l’heure, elle l’observe.
Son visage adoré est son cadran solaire.
Hélas, elle le vois qui lui annonce que le rêve, aussi sublime fut-il ces deux dernières semaines, s’est déjà achevé, qu’il va devoir se lever, se rhabiller, son bagage boucler, qu’il va l’embrasser, et puis, encore une fois, à mille lieues d’elle, être obligé de s’en retourner.
Il es allé, son magicien, ce soir-là, jusqu’à prendre au mot cette phrase de Boris VIAN qu’elle lui avait envoyée, si innocemment :
Mário Viegas ironiza sobre a “popularidade” de Fernando Pessoa, escritor e poeta da primeira metade do século XX; Mário Viegas conversa com “Fernando Pessoa” (personagem interpretada por Mário Viegas) sobre a sua personalidade e obra; 41m50: Mário Viegas declama 10 poemas do livro “Guardador de Rebanhos ” de Alberto Caeiro, acompanhado por António Marques à flauta e a interpretação de Rui Miguel, ator; reconstituição do quadro “Retrato de Fernando Pessoa” de José Almada Negreiros.
CE QU’EN DIT L’ÉDITEUR “ – Je suis étudiant. Mais je n’ai pas envie de continuer. Je voudrais écrire. – Ah, ça tombe bien, moi je suis imprimeur. Apporte moi tes poèmes.”
Cet homme extraordinaire, mon premier éditeur, s’appelait Carlavan. Il était en faillite, après avoir dirigé l’imprimerie du Réveilbônois, journal du soir à Annaba. Commeil lui restait un stock de papier, il a décidé de finir en beauté, en publiant un jeune poète inconnu.
C’est ainsi qu’il a imprimé “Soliloques” en mille exemplaires qu’il m’a remis, sans rien me demander en échange. Ces poèmes de jeunesse datent de presque un demi-siècle. On y retrouve deux thèmes majeurs : l’amour et la révolution, dans une première ébauche de l’œuvre qui allait suivre. En un mot, “Soliloques”, ce n’est pas encore Nedjma, mais c’est son acte de naissance.” Extrait de l’introduction de Kateb Yacine, écrite quelque temps avant sa mort.
Une amie m’a dit ce soir, je te donne un royaume pour une jolie histoire ! J’ai envie d’amour, j’ai envie de sexe, j’ai envie de bonheur.
Ma vocation serait donc donner du bonheur ?! Pourquoi pas.
Et là, la troisième se fâche.
Paler de sexe ne choque plus personne ?! Mais nous marchons sur la tête !
Et alors ? Il en faut de peu pour que certains partagent la même couche. Et ce n’est pas les sites de rencontres qui vont me contredire, il faut bien que le corps exulte chantait déjà le grand Jacques , il y’a près d’un demi-siècle.
Oui mais parler de sexe, parler d’amour, exposer la chose au grand jour, vraiment, ça ne se fait pas ! Et puis, nous devons réserver ces mots à l’unique, le seul !
Les hommes le font bien eux ! Ils chantent, peingnent, écrivent bien leurs fantasmes, leurs désirs, l’amour selon eux !
Mais les hommes ont toujours préféré ces femmes-là Hanane !
Saiu hoje a minha edição das «Bucólicas» de Vergílio. É difícil encontrar palavras para dizer quanto estou grato pelo cuidado esmerado com que o livro foi concebido por Francisco José Viegas: a vinheta inspirada num desenho de Nicolas Poussin; a reprodução no interior do livro da deslumbrante Cena Campestre de Claude Lorrain (esse quadro mítico). Um enorme obrigado a toda a equipa da Quetzal que produziu este livro.
Agradeço, acima de tudo, o privilégio de vos dar a ler (pelos meus olhos – isto é, pelo resultado das minhas muitas leituras e reflexões) estes poemas sublimes.
Não são poemas ingénuos acerca de pastores. Estes textos tratam, em linguagem codificada, das maiores questões da vida humana, desde a política, à religião e ao sexo. Tratam do lugar e do poder da arte nas nossas vidas. Tratam da natureza e da necessidade de a respeitarmos – em vez de a rapinarmos.
Tratam da dor incurável do amor sem solução, mas tratam também do mistério da esperança; e da possibilidade de sermos felizes, na Terra, se o quisermos.
Como novidade absoluta na poesia latina, estes poemas olham de frente para a polarização na vida política e para os efeitos que daí advêm para vítimas inocentes.
São poemas de há 2000 anos, mas são poemas que nos falam hoje, das questões de hoje, das emoções e dos problemas que todos nós sentimos.
E como se tudo isso não fosse suficiente para partirmos à descoberta dos mistérios das «Bucólicas» vergilianas, há ainda o factor da sua musicalidade inultrapassável em latim. Na verdade: nunca se escreveu poesia auditivamente tão bela.Um milagre.
Tirar poesia do horror – foi a essa ingente tarefa que se atirou o experimentado poeta goiano Gabriel Nascente (1950) para produzir o alentado A Ópera dos Ausentes – pesadelo epidêmico: poema-reportagem (Goiânia, edição do autor, 687 páginas), provavelmente a primeira obra poética de vulto inspirada pela pandemia do coronavírus (covid-19), que desde o final de 2019, quando apareceu na cidade de Wuhan, na China, tem trazido dor e pânico em todo o planeta.
Logo no pórtico, o poeta diz que este longo poema foi “construído com a iluminação das trevas”, ao som “horripilante das ambulâncias despedaçando a inocência das madrugadas”. E tão assoberbado se sentiu diante do tema e da ameaça de morte que ronda todos nós que tratou de propor um novo gênero literário, o poema-reportagem, pois só assim se sentiria capaz de narrar essa tragédia universal, “sob o impacto das mais dolorosas emoções e sofrimentos, causados pelo assombroso vírus”.
Como observa no prefácio intitulado “A cerimônia das trevas”, que escreveu para a sua própria obra, Gabriel Nascente diz que a questão central do poema “foi trazer para dentro do texto as sombrias impressões de uma realidade (cruelmente mortífera)”, que roubou a vida de mais de cinco milhões de seres humanos em todo o mundo e continua desvairada em sua sanha assassina. E confessa que o fez “arrastado pelas correntes do choque”, pois, do contrário, “estaria mastigando a solidão das paredes. Ou uivando como um louco entre as grades de um hospício”.
Livro de Iacyr Anderson Freitas: poeta presente em mais de 20 antologias no Brasil e no exterior, e Ozias Filho, jornalista, fotógrafo e poeta: carioca radicado em Portugal há três décadas (em baixo).
A precariedade da vida ou a dor da partida – este é o tema de um longo poema de Iacyr Anderson Freitas que se lê em Ar de arestas (São Paulo, Escrituras Editora, Juiz de Fora-MG, Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage-Funalfa, 2013), livro finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom. Em quadras rimadas, com versos heptassílabos, trata-se de um peça que medita sobre a precariedade iminente do ser, sobrepujado pela manifestação da dor, que lhe é transfigurada “através da exploração sistemática de um sistema de símiles e metáforas”, como observou o crítico, contista, ensaísta e tradutor Paulo Henriques Britto em enriquecedor posfácio que escreveu para este livro.
Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica (…). A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais.
Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade. Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares.
Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito.
Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.
Nosso amor é impuro como impura é a luz e a água e tudo quanto nasce e vive além do tempo.
Minhas pernas são água, as tuas são luz e dão a volta ao universo quando se enlaçam até se tornarem deserto e escuro. E eu sofro de te abraçar depois de te abraçar para não sofrer.
SÃO PAULO – O poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), ícone da poesia em Língua Portuguesa, não nasceu na rua de São Domingos, atual rua de Edmond Bartissol, em Setúbal, como mostra uma placa ali instalada há mais de um século, mas ao Largo de Santa Maria com a rua de Antônio Joaquim Granjo, antiga rua das Canas Verdes, na mesma cidade. Esse e outros pormenores desconhecidos do poeta, como o tempo real de sua prisão e detalhes de sua obra e de seus últimos dias, constam do livro Bocage, o perfil perdido, do pesquisador brasileiro Adelto Gonçalves, que acaba de ser publicad o pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), 18 anos depois da edição portuguesa que saiu pela Editorial Caminho, de Lisboa. Como a editora observa na contracapa, Bocage, o perfil perdido é biografia exaustiva e rigorosamente documentada. Já em si controversa, a história de vida do poeta é contextualizada pelos tempos tormentosos nos quais viveu, em que ocorreram a queda do marquês de Pombal, a ação do intendente de Polícia Pina Manique e a campanha do Rossilhão, entre outros fatos importantes. A biografia recua ao avô do poeta, apresenta sua árvore genealógica desde os bisavôs, abrangendo toda a sua vida, a passagem pelo Rio de Janeiro, Ilha de Moçambique e Índia, e sua participação e expulsão da Nova Arcádia.