Talvez uma crónica por António Paiva

Nascemos impregnados de uma estranha substância que nos deprime, e nos confere uma estranha apetência cultural para a infelicidade. E ao que parece só a inacção nos consola, porque nos preserva o gozo de sofrer.

Secretamente todas as mulheres desejam um homem que tenha em si algo de poeta. Durante o ritual de conquista todos eles ensaiam versos até no olhar. Elas encarnam o papel de musas. Mas a convivência prolongada acaba por provocar a erosão. O erotismo arrefece e inicia-se a terrível dança do suportar a presença do outro com mais ou menos subtileza. É terrível de dizer, é chocante ler, constrangedor falar, insuportável admitir. Mas é a realidade disseminada no lar doce lar comum. À noite vem a ânsia de apagar a luz, esconder suspiros na almofada e fixar o olhar na parede – vidas tão comuns como o respirar.

Habitamos um mundo de tal modo organizado que perdemos a liberdade, abdicamos das emoções e censuramos o desejo. A eficiência e a eficácia material anulam o saber do espírito, tornamo-nos autómatos como as máquinas que nos substituem nas tarefas. Dizem que crescemos intelectualmente, que nos tornámos mais inteligentes – não estou certo disso – o que sei é que perdemos a coragem e a determinação. Porque ligar uma máquina que nos substitui não carece de coragem nem de determinação. Basta um gesto vulgar; pressionar um botão. O homem delega e ao delegar demite-se – anula-se.

Passamos tanto tempo nos lugares e nunca lá estamos. Vamos mas não estamos. E às vezes bastava um pequeno gesto, uma carícia, para nos colocar lá, e tudo seria substancialmente diferente, substancialmente melhor. Temos muitas vidas terrenas antes da última, mais nenhuma depois dela – já escutei crenças – não mais do que isso. Em que acredito eu?, acredito que o medo corrompe e corrói, e temos tanto medo de nós, que culpamos terceiros. E porque ainda ninguém a escriturou notarialmente como propriedade sua – a culpa morre sempre solteira.

António Paiva