Não correu bem o primeiro encontro formal de Abecasis com os dirigentes do Município de Lisboa | por Joaquim António Ramos

Depois de ter sido empossado pela primeira vez, ao contrário dos presidentes em núpcias, que vão visitar os serviços como quem explora os recantos da noiva, Abecasis passou os primeiros dias a calcorrear Chelas, o “Cambodja”, a Musgueira, o Casal Ventoso, com o séquito municipal todo atrás, a bufar de cansaço e sedentos do recato do gabinete. Incomodados com as misérias humanos que nos corriam à frente dos olhos. Abecasis falava com mulheres de avental, homens sem emprego nem fundo, drogados, velhos sentados ao portal, enfim, a “baixa” de Lisboa, qualquer que fosse a razão da “baixa”: a pobreza, o abandono, a droga, a insalubridade e o desconforto das barracas onde viviam.
No dia seguinte a terminar esse périplo pelas profundezas de Lisboa, convocou os dirigentes para uma reunião conjunta no seu gabinete. Éramos poucos, os dirigentes municipais naquela altura – dez ou onze –, e eu era o mais jovem deles. Tremi perante aquela perspetiva duma primeira reunião com o novo Presidente, no meio de uns senhores impecavelmente vestidos, tecnicamente respeitados e temidos, alguns de cabelos brancos ou carecas.
Recebeu-nos no seu gabinete e mandou-nos sentar numas cadeiras previamente dispostas em duas filas. Quanto a ele, escarranchou-se no braço do sofá dourado que ocupava a parede de lado a lado, a fumar Ritz e a deixar cair a cinza por todo o lado.
“Não vos mandei vir cá para que me falem dos vossos serviços. Para já, não me interessa nada quem é das obras, do lixo ou da cultura. A minha prioridade é acabar com as barracas em Lisboa. Por isso, gostava de ouvir a vossa opinião sobre como fazê-lo. Cada um, como cidadão e dirigente, já deve ter pensado nisso. Vá, venham lá essas ideias”- desafiou, enquanto a beata de Ritz lhe caiu várias vezes para o sofá.

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Fui ao “meu” centro de saúde | Inês Salvador

Fui ao “meu” centro de saúde. Não há médico de família para mim, porque não há médicos de família em número suficiente para a população abrangida por aquele centro de saúde. Têm então uma solução, que pelo nome me pareceu inventada pelo Ricardo Araújo Pereira: “médico de família para as pessoas que não têm médico de família”. Acontece que o “médico de família para as pessoas que não têm médico de família” está de baixa. Na melhor das hipóteses terei consulta lá para Janeiro, não sendo ainda possível marcar nada.

Agora vou-me perfumar, porque depois deste post de certeza que vou ganhar um beijinho do Marcelo e quero estar bem cheirosa para a fotografia.

Não há miséria estrutural nacional que não se resolva com um beijinho do Marcelo.

Quando eu tinha quatro, cinco anos comia bolachas Maria com manteiga. Às vezes, deixava cair a bolacha e a bolacha caia sempre com a manteiga para baixo. Então, apanhava a bolacha, dava um beijinho na bolacha e continuava a comer.

Percebo agora que aos quatro, cinco anos fui quase Presidente de uma República. Uma República de bolachas, mas uma República.

Retirado do Facebook | Mural de Inês Salvador

BELTERRA – Folhas de Regresso a Uma Ítaca de Lonjuras Íntimas

“Nada é para sempre(…). Mas há momentos

que parecem ficar suspensos, pairando sobre o

fluir inexorável do tempo”. (José Saramago)

 

  • Na açodado do momento, sem razão e nem porque, de imediato, a revisitada canção explode na minha mente atiçada, mal acabei de começar a ler (e de chorar, lendo) o novo livro BELTERRA de Nicodemos Sena, Editora LetraSelvagem. Jatos de música e letra: -“Por toda terra que passo me espanta tudo que vejo// A morte tece seu fio de vida feita ao avesso//O olhar que prende anda solto//O olhar que solta anda preso//Mas quando eu chego eu me enredo//Nas tramas do teu desejo//O mundo todo marcado à ferro, fogo e desprezo//A vida é o fio do tempo, a morte o fim do novelo//O olhar que assusta anda morto//O olhar que avisa anda aceso//Mas quando eu chego eu me perco//Nas tranças do teu segredo//(…)… é hora de partir, eu vou//(Desenredo – Dorival Caymmi)

-Era o livro tomando forma em minha mente atiçada. Leitura é entrar no mapeamento das palavras, espaços e tempos. Lonjuras íntimas. Procuras. Fotos. Desenhos apalavreados de rostos e almas, nos confins. Como Homero querendo voltar para casa, o autor leva o pai para um distante caminho de volta, atrás de um eldorado que acabou sendo lágrima e dor, e, revisitando trilhas e sentenças, veios e capões, matas e pesadelos, tenta redescobrir o encoberto, tenta retrazer o curtume de um tempo chamado já-hoje, e perpassa a narrativa fluindo como linhas de cerol na alma, na saudade, na história, como se um belo caderno de viagem dizendo dessa cicatriz lixada, de um magno patriarca sofrido e ainda assim resistente e herói, de uma lágrima sedenta de lavar os vidros dos olhos, de serenar os cacos de espelhos da alma. Olhares. Páginas de lágrimas. O menino que envelheceu, o velho que quer voltar a ser menino, na pureza do olhar de um sensível e destemido filho escritor renomado, ponderando, pausando, contemplando, reinando, respeitando, admirando – ah o reencontro – clicando, repaginando um tempo antigo; o agora menino-pai tomando o pai-menino pela mão… Tempo-rei. Como não se encantar? Os dias eram assim…

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A teoria das nações, segundo o Padre António Vieira

“a primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”

Retirado do Facebook | Mural de José Maltez

Puigdemont é um Trump ibérico | Carlos Matos Gomes

O que percebi do discurso de Puigdemont: A independência da Catalunha está suspensa e ele está num aperto de impotência.
A Catalunha está em modo de fake news como as lançadas das sala oval da Casa Branca por Trump. Puigdemont é um Trump ibérico.
Num gesto insólito,:o chefe libertador anuncia que autosuspende a libertação no momento em que se anuncia liberto! Afinal não estava assim muito oprimido. Ainda aguenta os sapatos de ferro e as grilhetas por mais tempo. Em vez de um grito de Ipiranga, Puigdemont murmurou: não se está aqui assim tão mal…
Nos casamentos antigos, na manhã que se seguia à noite de romper o hímen da virgindade, a mãe da noiva mostrava os lençóis ensanguentados que atestavam a consumação do acto. O Puigdemont, como noivo impotente, veio à porta anunciar que a consumação do ato fica adiada. Há que falar melhor com a noiva. Ela não abriu as pernas e ele não se chegou à frente nos finalmentes! A não consumação era antigamente motivo para declarar nulo o acto.
Puigdemont não sabe agora se é casado ou solteiro. Como assina os documentos: Presidente da Catalunha Livre e Independente? Mas a independência está suspensa. Presidente da Republica da Catalunha? Mas ele não proclamou a República.
Puigdemont é um suspenso como os presuntos e os chouriços. Um adiado como uma máquina de tirar cerveja a copo – as cañas – à espera de gás. Um profeta que assinará os seus decretos simplesmte como Moi, Carles Puigdemont, o Moi!.

Retirado do Facebook | Mural de Carlos Matos Gomes

Citando Pablo Neruda

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo…
Morre lentamente quem se torna escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca, não arrisca vestir uma nova cor, quem não conversa com quem não conhece… Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com seu trabalho ou amor, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não permite, pelo menos uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos…

Pablo Neruda

Che, o mito anti-imperialista e os mercenários do império | Carlos Matos Gomes | 09/10/2017

Hoje, 9 de outubro, passam 50 anos do assassinato de Che Guevara na Bolívia, dominada na época por um ditador fantoche dos Estados Unidos. Como acontece com as marcas “redondas” são mais abundantes as referências à figura e à vida do revolucionário argentino, herói da revolução cubana mas, entre todas, interessam-me as que apresentam Che Guevara como um homem execrável, um criminoso do pior calibre, merecedor da sorte que teve às mãos dos rangeres da CIA, que o assassinaram depois de o capturarem ferido e desarmado, lhe cortaram as mãos para servirem de prova da sua morte. Os artigos negros não referem geralmente estes pormenores macabros. A sua função é diabolizá-lo.

Porque recebe Che Guevara por parte dos estrategas de propaganda americana um tratamento tão distinto do de outros líderes de guerrilhas e movimentos políticos que, ao contrário dele, obtiveram sucesso e que os Estados Unidos não assassinaram? Porque gastam ainda hoje os Estados Unidos tanto dinheiro a comprar mercenários para a campanha anti-Guevara, entre os quais alguns milicianos lusos? Porque mete ainda tanto medo aos herdeiros dos que o assassinaram? Porque tem de ser tão persistentemente denegrido?

A morte de Guevara às mãos da CIA, traído por um camponês comprado pela agência americana, é um facto histórico investigado e conhecido, como conhecidas são as divergências entre militantes cubanos dos movimentos que derrubaram a ditadura de Fulgêncio Baptista em Cuba. Divergências que envolveram Guevara e Fidel de Castro. Porquê, então, esta rancorosa cruzada anual das forças ao serviço da estratégia de domínio americano contra Guevara, se ele próprio classificou como um fracasso a sua expedição ao Congo, a campanha dos simba nas margens do lago Tanganica, e expôs no seu Diário a debilidade da guerrilha que comandou na Bolívia?

Che Guevara merece este ódio por parte do poder americano, dos seus meios de guerra psicológica e contra-informação, dos aparelhos ideológicos por dois motivos: Transformou-se, goste-se ou não, numa figura mitológica do anti-imperialismo e o imperialismo, sendo a principal determinante dos jogos de poder que sujeitam os povos aos seus interesses, reage a quem o enfrenta e o desmascara. As fotografias do Che, as suas barbas, a sua boina com estrela, são as de um ícone, de um ídolo que atrai e fascina, que transmite esperança a milhões de seres humanos. Ora, os deuses inimigos têm de ser destruídos, apoucados, enlameados, mesmo em efígie.

A segunda razão para a propaganda imperial americana disparar ciclicamente contra a sua imagem tem um outro objectivo, também claro e pragmático: justificar as acções desestabilizadoras que os Estados Unidos levam a cabo no presente no Médio Oriente, na Coreia, nas fronteiras da Rússia e da China, que substituíram a coutada de intervenção exclusiva da América Central e da América do Sul dos anos 50 e 60, dos anos da guerra fria. Justificam o imperialismo do presente.

A figura de Guevara não é sagrada, pode e deve ser objeto de análise e crítica em todos os seus aspetos, pessoais e políticos, excepto o de não ser anti-imperialista, a verdadeira razão pela qual os serviçais do império o execram.

No meu novo romance, A Última Viúva de África, interessou-me o Guevara desiludido e, mais do que desiludido, de esperanças perdidas. Interessou-me entender porque perdera Guevara a luta com a realidade dos homens. Atraiu-me a heresia de juntar o revolucionário Guevara ao mercenário Scrame, do Congo, como dois comparsas vencidos, unidos pela derrota das ilusões fruto de desejos e não da razão.

A desilusão, em África:

“Che Guevara chegou ao Congo acompanhado por um grupo formado por cubanos negros, com a ilusão de estabelecer na antiga e imensa colónia belga uma plataforma contra o «imperialismo ianque» e o «neocolonialismo» que despertasse todo o continente africano.”

“O diário do Congo reflete a sua desilusão. Guevara viu a espécie humana como ela é e não como a sua ilusão de profeta a pintara. Mais perto das hienas do que dos leões, mais perto dos abutres do que das águias: O caos é aqui tão genético como os pigmentos da pele.”

“…Guevara deu por finda a tentativa de criar um foco revolucionário em África, além de ter perdido boa parte das ilusões sobre o desejo de liberdade, de independência, de justiça das massas populares africanas…”

A morte, na Bolívia:

“…a aventura boliviana do herói de Cuba decorreu ainda em condições piores do que a do Congo. Scrame revelou-me que depois de o ver morto, estendido numa mesa da escola da pequena aldeia de Higuera, e de ter lido o seu «Diário da Bolívia» acreditava que ele procurara deliberadamente o suicídio…”

”Enojou-me ver a profanação do corpo de Guevara pelo coronel chefe da polícia política, responsável pelo ultraje final da amputação das suas mãos, para os polícias americanos confirmarem através delas a identidade do guerrilheiro que os enfrentara.”

“Jean Scrame não se orgulhava da sua participação na morte de Guevara: Ele lutava por uma ideia, como eu pelo direito a ter uma terra!”

“Para homens como Scrame e Guevara a dor da derrota é maior e mais profunda porque não buscam a glória, nem lutam pelo reconhecimento do herói, mas pela paz interior de conseguirem o que entendem ser o seu dever, o seu bem, independentemente do que os outros possam pensar dos seus objectivos. A derrota é para eles um castigo e simultaneamente uma injustiça, um erro do destino que impedirá a felicidade ou a riqueza daqueles para quem trabalham. Quando não levam os seus sonhos até ao fim, sentem-se deuses falhados, que perderam uma oportunidade de conduzir os seus fiéis à Terra Prometida.”

Qual o segredo de transformar um vencido real num vencedor idealizado? O Che foi o senhor absoluto da sua luz. Os homens das trevas nunca o apagarão.

Carlos Vale Ferraz (excertos de A Última Viúva de África)

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CATALUNHA DA AUTONOMIA À INDEPENDÊNCIA | UM SONHO SECULAR Fonte: Grande Angle/La Tribune, por Carlos Fino

ANO 878 – OS ÁRABES OCUPAM A CATALUNHA

Conquistada pelos árabes no século VIII, tal como grande parte da península ibérica, a Catalunha é reconquistada por Carlos Magno no ano de 801. Em 878, quando o imperio carolíngio se desfaz, o território catalão é unificado sob a designação de Condado da Catalunha, dependente do império franco.

ANO 987 – AL MANSOUR RETOMA BARCELONA

O emir árabe Al-Mansour retoma Barcelona. O conde catalão Borell II pede ajuda à França, mas não obtém apoio, tendo que contar apenas com as suas próprias forças para se opôr ao invasor. Consequência – o laço de dependência com a França praticamente desfaz-se, tornando-se a Catalunha praticamente independente. A partir do século XI, passa a designar-se Principado da Catalunha, título que mantém até hoje.

ANO 1162 – UNIÃO COM ARAGÃO

O conde de Barcelona Afonso, o Casto, unifica os condados catalães com o reino de Aragão, que herda da mãe. Barcelona torna-se centro de um poderoso reino que vai reconquistar Valência e as Baleares aos árabes. No século XIV, os exércitos catalães são considerados dos mais poderosos da Europa. Aragão-Catalunha estendem a sua influência à Sardenha, Sicília, sul da Itália e Grécia.

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DESAFÍO INDEPENDENTISTA | El ruido y la furia de la Cataluña de los mecenas | MANUEL JABOIS in “El País”

Joan Baptista Cendrós fue un hombre tan importante en Cataluña que se convirtió en un olor. Un olor muy intenso y mentolado. Era la fragancia de la crema Floïd, after shave que Cendrós ideó en la barbería que heredó de sus padres: la exportó a 50 países y le hizo millonario. Cendrós acogía en su casa a otros hombres ricos, amigos suyos, unidos por una voluntad exquisitamente revolucionaria. Uno de ellos era Fèlix Millet i Marista, un empresario que huyó a Italia para salvar su vida en la Guerra Civil y regresó para combatir en el bando franquista. Con ellos estaba otro patricio, Lluís Carulla, que usó su conocimiento de la botica familiar para crear, junto a su esposa María Font, Gallina D’Or, que luego rebautizó como Gallina Blanca antes de inventar Avecrem. Joan Vallvé fabricaba dinero, literalmente: su factoría en Poblenou acuñaba la peseta. El quinteto lo cerraba el industrial Pau Riera, hijo de Tecla Sala Miralpeix, una empresaria de vida extraordinaria que levantó su imperio textil en un mundo de mujeres empleadas y hombres directivos.

A todos les unía el catalanismo, su voluntad de desbordar la dictadura desde el único lugar donde empezaba a correr un poco de aire: la cultura. Eran, esencialmente, mecenas. Y crearon Òmnium en el año 1961. Le inyectaron dinero, muchísimo, para abrir terminales en toda Cataluña y fomentar la lengua y la cultura catalanas. Fuera de Òmnium esa burguesía intelectual, junto otros apellidos de fuste, fundó un universo propio sobre el que orbitaría la futura Cataluña: la Nova Cancó, los premios Sant Jordi y Carles Riba, la Gran Enciclopedia Catalana, el Instituto de Estudios Catalanes, el Orfeò, el Palau, el Liceu, Banca Catalana; estuvieron detrás de los inicios de Terenci Moix y de Raimon, entre otros. Intentaron que la Academia Sueca le diese el Nobel a Salvador Espriu. Hicieron también grandes tropelías; se adueñaron del espacio, y el dominio cultural que llegó hasta el pujolismo fue de tal asfixia que Cendrós le negó el Premi d’Honor de les Lletres Catalanes, también creado por él, al escritor catalán más importante del siglo XX, Josep Pla, alegando su implicación en el franquismo. Muchos años después, Fèlix Millet hijo hizo recuento de la élite: “Somos unas cuatrocientas personas, no seremos muchas más, pues nos encontramos en todas partes y somos siempre los mismos”.

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