AQUI HÁ UNS ANOS FOMOS CONVIDADOS, EU E A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, PARA FAZER UM RECITAL NO KING’S COLLEGE (LONDRES). EIS UM DOS POEMAS QUE LI E A SUA TRADUÇÃO POR JONATHAN GRIFFIN, E QUE DEPOIS FOI INCLUÍDO NA BELÍSSIMA ANTOLOGIA “CONTEMPORARY PORTUGUESE POETRY”. VOU ILUSTRÁ-LO COM A GUERNICA, DE PICASSO.
Amo-te porque sou dependente do teu odor.
Amo-te porque balanças nos ventos futuros.
Porque sou uma árvore que se abriga à tua sombra.
Amo-te porque só sei respirar na cidade de Eros.
Amo as marcas indecifráveis de todas as etnias
que produzem a beleza do teu rosto.
Bebo nas tuas coxas o linho molhado da minha infância.
Amo-te porque és alucinação e mulher real
no mesmo corpo volátil. Amo-te
porque também de noite és o meu sol quotidiano.
Amando-te não preciso de correr por montes e vales
em busca da mais antiga das mães. Tu, a irmã
da minha vagabundagem sempre inaugural. Amo-te
porque deixei de ter pressa. Um poema infinito,
uma cascata em cada sílaba. Uma lua que me engole
quando começo a ser sábio. A vegetação
no jardim que foi de pedra. Conheci na tua carne
a lama do meu reino luminoso. Amo-te
porque me fazes saltar o coração e lá vai ele
a caminho do país dos cedros. E assim renasço
no enigma da tua carne que no chão deitada, voa.
Amo-te porque dependo da tua cor do teu odor.
Amo-te porque me acolhes à tua sombra de árvore
para sempre iluminada. Amo-te
porque não tenho pressa e também as tuas águas
parecem um ribeiro por entre as colinas
da manhã. Amo-te mistura de linho e do mármore
macio da manhã. Amo-te porque os teus caracóis
se transformaram em carícia onde sou mais só.
Amo-te porque te vejo arder
como se desejasses que também eu ardesse
a teu lado.
Uma das mulheres que melhor me amou nunca a vi à luz do dia. Nem à luz de velas. Entrava no quarto (de um pequeno hotel) à noite, com a luz apagada, com todas as persianas cerradas, e com a luz apagada saía. Assim tínhamos combinado. Costumava dizer-me, como no mito, Nunca deverás olhar-me, se precisares de luz para me ver é porque és cego ou não tenho em mim luz bastante. Tinha. Um corpo perfeito, uma voz alcalina, uma arte indizível ou talvez só essa cantada pelos poetas do amor. “Não podes saber quem sou, nem sequer se te amo.” Amava-me, isso sim, amava-me porque fazia o que fazia com arte e entusiasmo, fundidos com fervor crescente um no outro. Nunca acendi a luz. Aceitei a desigualdade, e penso que só com ela a aceitei: sentindo que, ela, conhecendo-me embora o rosto e o percurso, também desejava desvendar os meus mistérios. Um dia senti que me estava a apaixonar por ela, e disse-lhe. Foi o fim. Disse-me apenas, “Isso seria a nossa desgraça. Vou partir.” E partiu, essa que devia ser a mulher de algum dos meus amigos. Nunca quis saber, nunca procurei saber nada, e talvez agora me leias. Mas conheci de ti fontes que outros não poderão conhecer — porque nesses momentos tu eras uma-comigo, a tua humidade derramava-se em mim, numa dor única e feliz e sei que nunca ninguém te amará como eu te amei. Nem imaginas o que eu daria, não para ver o teu rosto, não para saber quem és, mas para me sentir novamente afogado nas tuas fontes loucas, que nunca mais esquecerei. Onde estarás? O que sentirás quando passas por mim e não te vejo? O que sentirás quando leres isto? Talvez me telefones de novo.
“Era como se as nossas cerimónias de amor fossem um quarteto de cordas (a mais perfeita das formas musicais) e tivessem quatro andamentos brilhantemente improvisados:
um, “lento assai, cantate e tranquillo”, em que as nossas ondulações empreendiam a bela iniciação da respirar e aspirar o outro, o seu corpo todo;
um “andante cantabile”, em que ela subitamente se inclinava sobre o meu corpo deitado e lambia e moldava o meu sexo detendo-se apenas quando ele já se transformava em mármore exactamente ao mesmo tempo que os meus dedos ligeiramente ensalivados tocavam no seu clítoris e se sentiam subitamente dulcificados sob uma ainda frágil cascata;
seguia-se depois a penetração, o “allegro vivace”, com ela quase sempre por cima de mim, cavalgando-me, e assim o prazer era cada vez mais profundo e duas vezes fogoso;
e, por fim, depois do grande orgasmo dela (o meu sabia retê-lo e deixava-o para os seus seios ou para a sua boca) — ó como se contraíam e vibravam todos os nossos músculos —, “o adagio ma non troppo e molto expressivo”, em que ela se deitava e abria as pernas e colocava os pés no meu peito ou nos meus ombros e eu sugava todos aqueles delicados odores, a sua ambrósia, os seus sucos tão delicados que não apenas os conservava na boca como os derramava na boca dela, e assim ficávamos irradiados pelos corpos que, deste modo, o meu estendido sobre o dela, abraçados, pareciam um só animal terroso e sagrado. Depois gemíamos e ríamos e chorávamos até adormecer.”
Amanhã, sábado, será apresentado às 18 horas na Livraria Férin (junto da Fnac-Chiado) o meu novo romance “Uma Lágrima que Cega”. O prazer que vou ter em encontrar alguns dos meus amigos daqui… Venham. Ofereço-vos um fragmento do meu romance:
O que queres fazer? Onde queres jantar? Italiano, francês, cipriota? O que queres que eu faça? Saímos? Ficamos em casa? Na cama? Precisas de alguma coisa? Pouco de pouco me basta e ela, que tanto é, mais ainda me quer dar, destinar. Atenta aos meus desejos mais velados, a ler-me, a tocar piano, a escutar-me, a desejar conceder-me o que desejo, se desejo alguma coisa, que nada peço, que me deixo somente ir na onda, enfim, pouco mais que nada. O teu nada é quase tudo, dizia-me Tessa, há vinte anos. Pesa. Hoje, ainda na cama, perguntei-lhe se ainda tocava. Líamos, vagueavamos no corpo do outro. E logo se levantou, nua e fresca, levou-me pela mão para a sala de música, sentou-se ao piano, um Bösendorfer de 1975, exactamente da sua idade e perguntou-me, Queres escolher? e meteu- me nas mãos um caderno com partituras de Mozart.
Arrumámos o carro debaixo de uma oliveira, lembras-te? Iniciavas o teu conhecimento prático das árvores e dos bichos e ficámos por ali um pouco a falar do mecanismo das colheitas e dos preços. Arrumámos o carro, pegámos nas coisas (duas toalhas, um livro, algumas peças de fruta) e entrámos por um caminho riscado na terra lavrada. Terra clara, culturas da beira-mar, areias castanhas, areias agora mais claras, quanto mais próximas do mar mais claras, figueiras e vinhas, clareando ainda, plantas agora espontâneas, rasteiras, e por fim as dunas, a praia, o mar. E, sobre tudo, um céu narcotizado. Como se não existisse.
Uma praia despida. Areia apenas. O desenho de uma criança ou de um louco.E dois corpos estendidos ao sol, reencontrados: como se não tivéssemos vindo um das dunas e o outro do mar — como se tivéssemos naufragado após séculos de usura e de podridão, abraçámo-nos sem ênfase.
Pousámos a cabeça num montículo de areia coberto pelas toalhas. O mar desdobrava-se a nossos pés.
Página sobre página, os nossos corpos nus. E um poema.
Lembro-me do poema porque o assinalámos com uma concha. Finíssima. Uma quase lâmina.
Lembro-me da página porque eu te disse que gostaria de ter escrito para ti aquele poema, este, de Octavio Paz:
“Entre tus piernas hay un pozo de agua dormida,
bahía donde el mar de noche se aquieta,
negro caballo de espuma,
patria de sangre,
única tierra que conozco y me conoce,
única patria en la que creo
única puerta al infinito…
E lembro-me que os teus ombros se erguiam lentamente à medida que o meu braço te envolvia e a mão aberta pousava pouco a pouco no teu seio esquerdo. E no outro. E no primeiro. Seios pequenos. E procurava pousar nos dois ao mesmo tempo.
Modigliani, lembras-te? Sopro de Modigliani. Seios nus, desatados. Acesos.
Pouco a pouco acesos. Palavras poucas. E os meus dedos escoavam-se nos mamilos cada vez mais duros (o livro caído na areia), e os teus dedos enovelavam-se nos meus joelhos, e tudo isto lenta, lentamente, dentro ainda da claridade do dia, metálicos ainda, era um filme submarino, uma câmara lenta, e metálicos ainda estamos, somos, quando pouco os meus lábios nos teus e não os cravo ou apenas um pouco nada quase e só depois com violência ou talvez não muita ou quase nenhuma.
4222
Amando-te lembro a primeira vez que senti o sangue, a primeira vez que regressei ao centro do mundo.
4223
Ela fere-me. Há facas doces.
4224
Ainda que me afunde no corpo amado e com ele me funde jamais poderei colher a sua música e a sua seiva que, oferecendo-se, se recusa. E vivo simulacros. Os dela, vénus e os meus que, tentando concentrar-se, se multiplicam. E assim renasce e volta a renascer a flor da juventude — esforço vão e inadiável para possuir o que, para sempre, se outra.
4225
Até na tua sombra te reconheço.
4226
A mulher é obscura e, subitamente, ilumina-me. Encandeia-me. E então fecho os olhos para vê-la melhor. E para me salvar.
4227
A mulher, vejo-a, encandeio-me. Ela é a mais íntima reprodução da luz.
4228
Deixei de te amar e nunca saberei porquê. Dói. O que foi delicado e luminoso obscureceu. Mas subitamente senti em ti um fantasma, e doeu. Elevou-se um grito depois do vazio — e esse vazio afunda-me mas depois fecho os olhos, caio nas manhãs antigas e deixo novamente de saber quem sou.
4229
O vestido da minha amada, tão branco, tem todas as cores de que preciso.
4230
Sinto-me um seixo nas mãos de quem amo, dentro das veias da minha amada. Um pequeno seixo que irradia uma luz que eu não conhecia. Mas que tu recebes no teu seio como se outra luz não houvesse. E talvez — outra igual — não haja.
4231
Deixa-me escrever um pouco mais, um pouco mais silenciosamente no papel do teu corpo.
A mulher, embora queiram fazer dela
um jardim, é uma floresta que não pertence
a ninguém. Res nullius. E o seu sexo,
embora o queiram preencher em cada momento,
é para sempre um locus neminis, um lugar
de ninguém. De passagem, sim: eu passei por lá,
quando nasci
e ficaram saudades, e por isso regresso
sempre que posso. Afável, acolhe-me; outras vezes
fecha-se ou morde e não me deixa morrer no paraíso.
Que bom saber tão pouco do seu mistério
e viver à sombra desta delicada ignorância!
E porque não sei, e porque não aprendi
e não me podem ensinar,
vou sempre regressando em busca desse graal
infinitamente perdido
em lugares inóspitos e outras vezes
amenos: na mais delicada
das florestas. Ou é
um jardim?
Peço a paz
e o silêncio
a paz dos frutos
a música de suas sementes
abertas ao vento
Peço a paz
e traço na chuva
um rosto e um pão
Peço a paz
silenciosamente
a paz em cada ovo aberto
aos passos da morte
A paz peço
a paz apenas
o repouso das lutas
no barro das mãos
Uma língua sensível
ao sabor do vinho
a paz clara quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol
Peço a paz
e o silêncio
Acolho-me ao teu seio. Ofereces-te
como se fosses uma festa. Um átrio. Um palco.
Um campo de batalha. E eu entro
no teu mar vivo: um altar.
Na tua lama ardente: um paraíso.
E tu sorris. E tu cantas para mais ninguém
ouvir. E tu choras, vejo as tuas lágrimas
correrem onde sou mais nu.
E num dado momento a morte vem
e toma posse de nós. E já pareces
em repouso. Eu também.
O mundo não posso mudar –
Deixa-me sacudir a areia
Das tuas sandálias
Casimiro de Brito, “Através do Ar”, ed. Schichigatsudo, 23, Tóquio, 2008, p. 28.
Muito jovem, Casimiro de Brito parte para Londres, onde acabou por viver até 1968. Tendo ficado alojado no apartamento de um professor de estudos orientais, tomou contacto com a poesia japonesa pela primeira vez. E essa presença iria marcar, em definitivo, a sua própria poética. A extrema condensação do haiku e o choque que esta poética teve sobre si marcar-lhe-iam decisivamente o rumo poético. Numa entrevista que Casimiro deu a Andreia Brito, em 2005, “O essencial ainda está por vir”, explica assim o poeta à entrevistadora:
Conheci uma poética que hoje considero ser a mais bela de todos os tempos (comparável só às nossas cantigas de amigo); entrei num campo de trabalho como eu gosto, a longo prazo, para sempre; entrei na vida (física, mental, sensível) de um ser celestial, a minha amiga japonesa, enfim, coisas bonitas que mudaram o meu caminho. Nunca mais deixei de respirar essa poesia e, sobretudo, nunca mais deixei de pensar (e de fazer) que é preciso conhecer mais do que a nossa tradição poética.
Essa presença da poesia japonesa e das suas musas poéticas prolongou-se no tempo (e ainda continua viva pelos contactos de Casimiro de Brito com a poesia japonesa) e lembro duas obras fundamentais: “À Sombra de Bashô: Renga com Matsuo Bashô” (2001) e o livro “Através do Ar”, escrito em colaboração com Ban’ya Natsuishi, composto de haikai que são traduzidos, simultaneamente em inglês, francês e português.
O haiku, que no plural se designa por haikai (um termo que significa “versos de diversão”), constitui a forma lírica japonesa por excelência. Tradicionalmente o haiku consta de dezassete sílabas, divididas em 3 versos, seguindo o esquema 5/7/5, para descrever qualquer cena natural ou objecto, concentrando um sentimento, uma ideia ou um aforismo, tal como nos ensina Martin Gray, in “Haiku”, na página 132 da sua obra. Ainda de acordo com o tema dominante, multiplica-se em quatro subgéneros: wabi (frugalidade), sabi (isolamento), aware (impertinência) e yugen (mistério) . Continua, ainda, Jorge Sousa Braga, na mesma página, a explicar-nos a estrutura do haiku, dizendo que “do ponto de vista puramente retórico, o haiku divide-se em duas partes, separadas por uma palavra-chave: Kireji.” A primeira parte, segundo o autor, “dá a condição geral e a ubiquação temporal ou espacial do poema (o outono ou a primavera, uma árvore ou uma rocha…); a outra, explosiva, deve conter um elemento activo. Uma é descritiva e quase enunciativa; a outra, inesperada. A percepção poética surge da colisão entre ambas.”
A estética do haiku tem, ainda, vários pontos de afinidade com o aforismo, pela mesma retórica, pelo mesmo sentido de economia e de rigor poético, daí que ela tenha entrado na literatura ocidental pela estética do fragmento, tão cara aos poetas alemães românticos, tendo como cultor máximo do género o poeta Novalis. E o poeta Casimiro de Brito foi, também, ao longo da sua obra, um exemplo maior da escrita aforística. Cito aqui, a título de exemplo, “A Arte da Respiração”, editado pela D. Quixote (1988), “Da Frágil Sabedoria”, das edições Quasi (2001), “Fragmentos de Babel” (2007) e “Arte de Bem Morrer”, pela Roma Editora (2007). A peculiaridade e o próprio sentido desta estética do fragmento nasce do próprio instante e da concentração temporal nele existente, do Aqui e do Agora que se abrem na sua leitura. Isto é, o poema conquista a sua plenitude à luz da organicidade e da estruturação que dele irradia, da sua própria concentração temporal e espacial. Por isso e, como me disse um dia o poeta, cada poema deve ser lido ao centro, para que, da concentração do olhar, surja também a contemplação da origem e do fim do poema, da palavra e da coisa. Cada aforismo, cada haiku, cito Casimiro de Brito, é “simultaneamente um ovo e uma pedra”. Na entrevista que deu a Andreia de Brito, Casimiro diz, sobre o haiku:
(…)Tem a forma de um ovo, de onde pode nascer um pássaro. É um texto mínimo que, começando por surpreender, vai transformar-se em coisa do outro, do leitor, uma vez que a sua estrutura enigmática se presta à interpretação. Deve ser perfeito como um ovo ou uma pedra: não há nele uma sílaba a mais, mas tudo o que lá está é muito mais. A única comparação possível é com a forma mais bela de poema que existiu: o haiku.
Esta compreensão do haiku só pode nascer da articulação do tempo a-histórico com aquele tempo em que vivemos, o tempo quotidiano, onde a outra dimensão temporal se revela e manifesta, em cada uma das partes, reclamando uma pertença antiga. Relembro aqui a bela definição de Edmond de Jabès:
C’est pourquoi j’ai rêvé d’une oeuvre qui n’entrerait dans aucune catégorie, qui n’appartiendrait à aucun genre, mais qui les contiendrait tous; une oeuvre que l’on aurait du mal à définir, mais qui se définirait précisément par cette absence de définition (…) un livre enfin qui ne se livrerait que par fragments dont chacun serait le commencement d’un livre.
A estética do haiku ou do fragmento recusa a ideia de um acabamento ou de uma definição da obra e esta vai-se fazendo à medida que se escreve cada poema, definindo-se precisamente pela ausência da sua definição, avançando contra as evidências e o fechamento imposto pelo formal, recusando o acabamento e a imperfeição, colhendo, em cada verso a imperfeição e o segredo, o inesperado. E, como Casimiro de Brito gosta de nos recordar, “o poeta é aquele que trabalha com o segredo”, habitando o umbral do querer dizer das línguas e do mundo, numa luta perdida contra o emudecimento da matéria.
Esta tensão interna, este “segredo” da matéria e do mundo e que constitui a sua opacidade é o que confere à poesia de Casimiro de Brito esta poderosa imagética, evidente, desde logo, no título “A Boca na Fonte”, que nos remete para essa busca do primordial, do acto de beber directamente da fonte, aqui dupla, pois é no sentido da natureza e simultaneamente da linguagem.
Uma poética que se faz irmã da terra e da água, da escuta e da visão directa. Cito dois haikai, para dar ideia desta proximidade: por exemplo, o número 43, na página 16: “Silêncio. Ouçam/a vida – água correndo/cada vez mais triste” ou o 48, da página 17: “Diante do mar/o meu coração derrama-se/e vai com as ondas.” Cosmos, palavra, coração são rostos de uma mesma realidade, metamorfose incandescente que se fixa no haiku, em que o poema se coagula na forma de imagem, breve e luminosa. Se os elementos e a força da terra e da natureza perpassam a sua poética, sob as mais variadas formas, desde a ínfima gota de chuva ou grão de areia até ao enigmático silêncio das constelações, também o onírico deflagra, a todo o instante, para nos recordar a brevidade da vida e do instante: “Viagem nocturna –/ regresso à origem do sonho/donde nunca saí.”
Morte e vida, sonho, natureza e linguagem são os diversos rostos que constituem a poesia de Casimiro, sempre. Seja na sua forma lírica ou de fragmento, em particular. Desses nomes essenciais dá conta a sua linguagem poética, revelando uma profunda sabedoria que se entrelaça com a simplicidade e o rigor da sua poética. Se, por um lado, Casimiro é dos mais inspirados poetas portugueses e disso nos dá conta a sua “paleta lírica”, por outro, é senhor de uma contenção e de um rigor irrepreensíveis, que nunca o deixam resvalar para o sentimentalismo. Esse é um segredo que poucos detêm na sua poesia, feita de demora e de paciência, o tempo em que o poeta sonha o mundo e o transforma em linguagem e em luz.
Cito um haiku deslumbrante e que resume esse rumo poético: o haiku 6 da página 8: “Na prosa do dia/a rosa alumia. Que prosa/se tudo é rosa?”. É por esta razão que o poeta René Char dizia que a poesia era superior à filosofia e a qualquer metafísica. Na poesia de Casimiro, a filosofia e a sagesse lavram esse sulco, em que a poesia deita a sua semente, onde a concentração da imagem atinge o seu esplendor e um ponto de intensidade raros. Como raros o foram os poetas-pensadores da Antiguidade Grega, guiados pelo rigor e pela claridade enigmática do pensamento. É desta sabedoria e desta humildade que se constrói o poema, desta pobreza essencial da finitude humana, esse magma secreto e indizível do poema, que recusa a beleza e a perfeição. Por isso, diz Casimiro, no haiku 12: “Homem caminhando./Árvore nómada em busca/da mãe obscura.”
Mãe obscura da vida ou da linguagem? Essa é a questão que coloco ao poeta.