Duanne Ribeiro: a poesia em busca da infância perdida, por Adelto Gonçalves   

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        O jornalista Duanne Ribeiro, depois de incursionar pelos gêneros romance e novela e publicar outras produções em antologias e periódicos, chega ao público-leitor com uma obra de poesia que surpreende por seu experimentalismo. Trata-se de *ker– (Goiânia, Editora Mondru, 2023), que surpreende até mesmo pelo título pouco usual, em que reúne peças que passam longe do que se entende por uma poesia lírica e bem comportada, mas que, acima de tudo, procuram reconstituir o mundo perdido de uma infância passada nos anos 90, a última década em que as crianças ainda foram bem crianças, em meio a jogos, minigames e desenhos animados malucos e divertidos, antes da chegada dos tablets, celulares, videogames de última geração e redes sociais, como facebookinstagram e outras.

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“Meu Dostoiévski: Os Minutos Finais”, obra que vai além da biografia | Autor: Edson Amâncio | por Adelto Gonçalves

Esta é uma biografia que vai muito além dos estreitos limites do gênero. Em suas páginas, constata-se que é resultado de uma admiração que já passou de meio século por Fiodor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), o romancista e contista russo que, hoje, ombreia com grandes autores universais, como Dante Alighieri (1265-1321) e Miguel de Cervantes (1547-1616), ou outros gigantes da literatura russa, como Nicolai Gogol (1809-1852) e Alexandre Pushkin (1799-1837), ou o nosso Machado de Assis (1839-1908).
Talvez impedido por muitos obstáculos – que incluiria a distância dos arquivos russos –, em vez de construir uma extensa biografia semelhante à que o norte-americano Joseph Frank (1918-2013) fez, que resultou em quatro volumes e mais de três mil páginas, o autor desta obra, o romancista, contista e cronista Edson Amâncio (1948), preferiu, em muitos momentos, recorrer à ficção para tentar traçar alguns ângulos da personalidade de Dostoiévski e daqueles que conviveram com ele, além de documentar o percurso de sua paixão literária, que teve início em 1962 quando se deparou na biblioteca pública de sua cidade natal, Sacramento, no interior de Minas Gerais, com Recordação da Casa dos Mortos, obra basilar do currículo dostoievskiano. 

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Aglaia Souza: poesia que resgata o sentido da vida | por Adelto Gonçalves

Novo livro da poeta de Brasília denota influência de José Régio e Fernando Pessoa                 

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            Desde o seu primeiro livro, Gota de barro (São Paulo, Poeco Editora, 1982), nunca faltaram a Aglaia Souza (1943) leitores encantados e admirados com a simplicidade e a beleza de sua poesia. E, mais de 40 anos depois, ainda é esse mesmo sentimento de admiração com o seu discurso poético que essa musicista, professora e diretora de escola de música desperta, ao publicar Canto marinho (Brasília, Observatório do Texto, 2022), novo livro em que exercita sua arte, exibindo uma poesia de caráter marcadamente musical, como assinalou o poeta Anderson Braga Horta no prefácio que escreveu para esta obra.
Além disso, a autora deixa explícita a influência que recebeu de poetas portugueses consagrados, especialmente de José Régio (1901-1969), a quem o grande ensaísta, professor filósofo luso Eduardo Lourenço (1923-2020) definiu como “o último dos grandes solitários”.

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A poesia como viagem ao inferno | Com um estilo despudorado, obra de estreia de Marcelo Theo mistura realidade e fantasia | Adelto Gonçalves

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            Em nenhum dos poetas brasileiros, antigos ou modernos, a sombra da morte é tão presente como neste livro de estreia de Marcelo Theo (1969), Peccatum Sum (que, em latim, quer dizer “Eu sou o pecado” ou simplesmente “Eu pequei”), que acaba de ser publicado pela Editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP. A obra reúne poemas que foram escritos durante os anos em que o autor se assinava como Teteco dos Anjos e vivia chafurdado no vício em narcóticos e no alcoolismo, em meio a hordas de rejeitados que viviam nas ruas e vielas de tradicionais cidades da Europa, como Roma, Paris, Lisboa e Amsterdam.

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Uma obra de amor ao Rio de Janeiro | “Rio, da Glória à Piedade” reúne textos de 11 autores em homenagem à cidade | Adelto Gonçalves

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Carioca não é só um termo que define quem nasceu na cidade do Rio de Janeiro, pois pode ser estendido também a quem vive (ou viveu) por muitos anos naquela cidade, ou seja, é, antes de tudo, um estado de espírito. É o que se pode comprovar em Rio, da Glória à Piedade (Rio de Janeiro/Santarém-Portugal, 2023), obra que, organizada pelo arquiteto, romancista e contista Hélio Brasil (1931), reúne textos do próprio organizador e de outros dez autores que, embora alguns deles nascidos em outros Estados e um deles em Portugal, têm uma paixão única: o amor pela antiga capital da República do Brasil.   

Nascida espontaneamente de conversas entre amigos, todos ligados às letras, esta obra reúne gêneros variados, desde crônicas e poemas a textos sobre história, memórias pessoais e urbanas, escritos às instâncias do organizador, que pediu a cada amigo que comparecesse com três textos e, se possível, com alguns poemas.  

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Adelto Gonçalves, escritor sem violon d´Ingres? | por Maria Estela Guedes

Escritor e pesquisador brasileiro é homenageado por revista literária eletrônica em Portugal

A minha pergunta sobre a possível falta de um hobby vem de ver Adelto Gonçalves sempre ocupado. Ele é o único co-autor do Triplov cujos textos não tenho publicado na totalidade, porque me falta capacidade de trabalho igual à dele.

É um intelectual atento, amigo dos seus colegas, em quem se revela claramente um espírito de missão: a de dar a língua portuguesa ao mundo, na sua forma escrita e nos seus tão diversos registos, visto que ele não se ocupa apenas do português do Brasil e do português de Portugal, mas ainda de registos praticados em outros países lusófonos. Ousa comentar estas variantes, e realmente é preciso coragem, não s& oacute; por serem muito diferentes, como por a diferença desembocar por vezes ou na fraca inteligibilidade dos textos ou em campos diplomática ou politicamente delicados.

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A poesia como reflexo de um cenário de perdas | Tal Nitzán | por Adelto Gonçalves

Segundo livro da poeta israelense Tal Nitzán publicado no Brasil traz poemas que constituem libelos em favor da paz no Oriente Médio

Adelto Gonçalves (*)
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            Pessoa extremamente sensível, que coloca a sobrevivência da espécie humana acima de todas as possíveis divergências étnicas ou políticas, o que a leva a lutar há anos pelo fim do domínio de Israel sobre as terras conquistadas na guerra de 1967, a poeta israelense Tal Nitzán (1961) acaba de ter publicado o seu segundo livro no Brasil, Atlântida (Belo Horizonte, Ars et Vita Editora, 2022), que reúne 40 poemas tirados de obras já publicadas, majoritariamente traduzidos pelo jornalista Moacir Amâncio, doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) daquela instituição. Com esse livro, a autora conquistou o Prêmio da Universidade de Bar-Ilan (Tel Aviv), em Israel.

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A poesia como devoção aos deserdados da terra | Autor: Vera Lúcia de Oliveira | por Adelto Gonçalves

A poesia como devoção aos deserdados da terra
Novo livro de Vera Lúcia de Oliveira reúne poemas inéditos e outros já publicados, mas todos trazem a marca de um espírito franciscano  
Adelto Gonçalves (*)


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            Professora universitária, ensaísta, crítica literária e poeta reconhecida no Brasil e na Itália, Vera Lúcia de Oliveira, paulista de Cândido Mota, acaba de lançar mais um livro que vai enriquecer a sua já vasta obra: Esses dias partidos (São Paulo, Editora Patuá, 2022), coletânea de poemas que vem dividida em duas partes – a primeira, “O tempo denso”, formada por poemas inéditos, escritos no período mais crítico da pandemia de coronavírus (covid-19), em 2020, quando a Itália foi o país mais atingido, depois da China, e viveu o confinamento absoluto; e a segunda, “Antologia poética”, com textos selecionados pela autora, que reúne poemas recolhidos de seis livros publicados entre 2004 e 2016 (Pássaros convulsos,Entre as junturas dos ossos, No coração da bocaA poesia é um estado de transe, O músculo amargo do mundo e Minha língua roça o mundo).

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Vadim Kopyl | Cultura lusófona perde um grande amigo na Rússia | por Adelto Gonçalves

Morre em São Petersburgo o professor Vadim Kopyl, diretor do Centro Lusófono Camões, que coordenou a publicação de obras de vários autores portugueses e brasileiros.

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Vítima de uma bronquite, faleceu, dia 30 de janeiro de 2023, o professor Vadim Kopyl Alekseevich (1941-2023), doutor em Filologia Românica e diretor do Centro Lusófono Camões, da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, entidade voltada para o ensino da Língua Portuguesa e que tem publicado vários livros de autores portugueses e brasileiros em russo. As obras facilitam o aprendizado tanto de alunos russos como de lusófonos, pois trazem uma página em português seguida de outra com o mesmo texto em russo. 
            Criado por empenho do professor Kopyl, o Centro Lusófono Camões foi inaugurado a 16 de junho de 1999, em ato prestigiado pelo embaixador de Portugal, José Luís Gomes, e pela embaixadora do Brasil, Teresa Maria Machado Quintella, e passou a funcionar dentro do campus da Universidade Hertzen, que é formado por vários palácios adaptados às necessidades de ensino, no centro histórico de São Petersburgo.

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LANÇAMENTO | Livro homenageia sociólogo Henrique Rattner | Autor: Jair Rattner | por Adelto Gonçalves

Obra reconstitui a trajetória de um ex-professor da Universidade de São Paulo que se destacou no estudo da comunidade judaica

SÃO PAULO – Para assinalar a passagem do centenário de nascimento do sociólogo Henrique Rattner (1923-2011), o jornalista Jair Rattner (1960), seu filho, acaba de lançar o livro Sob as asas da fala e da escrita: histórias da vida de Henrique Rattner (Lisboa, edição de autor, 2023), obra que reconstitui a trajetória de um intelectual que marcou sua atuação como professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). A cerimônia de lançamento está marcada para o dia 5 de fevereiro, domingo, às 15 horas, no Plenário (salão de reuniões da diretoria), no primeiro andar, no Clube Hebraica, localizado à Rua Hungria, 1000, no bairro de Pinheiros, em São Paulo-SP.
            O lançamento da obra coincide com o dia do nascimento do professor e deverá atrair não só alunos e ex-alunos da USP como jornalistas e intelectuais de todo o País.  Escrito em estilo memorialístico, o livro reconstitui a trajetória de vida do professor, que, nascido em Viena em meio a uma comunidade judaica, imigrou para o Brasil em 1951 e, com muito esforço, chegou ao título de livre-docente na FFLCH/USP, ao mesmo tempo em que atuava como pesquisador e dava aulas de Sociologia na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio  Vargas (FGV), sem deixar de trabalhar, de 1955 a 1967 , no Lar das Crianças, instituição da Congregação Israelita Paulista.

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Uma viagem ao plano extraterrestre – Silas Corrêa Leite | por Adelto Gonçalves

Romance infantojuvenil de Silas Corrêa Leite conta a aventura de um jovem marginalizado no mundo da ficção científica

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            Em nova experiência no gênero romance infantojuvenil,  Silas Corrêa Leite (1952) apresenta A Coisa: muito além do coração selvagem da vida (São Paulo, Editora Cajuína, 2021), que conta a trajetória de um adolescente revoltado com a difícil vida que leva numa das zonas periféricas da grande cidade de São Paulo e procura fugir de casa para embrenhar-se no mundo. Abandonado pelos pais, decide largar-se sozinho a pé, com seu skate, pela Serra do Mar em busca das praias do Litoral paulista.
            E, assim, passa a viver uma vida de andarilho e a sobreviver do que a floresta lhe podia oferecer como alimento, ou seja, água, peixes, frutas e animais silvestres, até que, um dia, acaba por descobrir, no meio da mata, um objeto enorme não identificado, a que passa a chamar de A Coisa, ou seja, um aparelho estranho que soltava sons igualmente inidentificáveis, ou seja, provavelmente um veículo extraterrestre.

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Para marcar os 40 anos da geração do mimeógrafo | por Adelto Gonçalves

Coletânea reconstitui os primeiros passos da criação do grupo Picaré e traz depoimentos e poemas dos participantes

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            Para assinalar a passagem da quarta década da aparição de um movimento literário e artístico que marcou época não apenas no Litoral paulista mas em boa parte do Estado e até do País, o poeta Raul Christiano organizou a Coletânea Picaré – 40 anos de Poesia & Artes (Santos, Realejo Livros, 2022), que, além de uma longa introdução que contextualiza o surgimento daquele grupo, traz depoimentos e peças poéticas de 38 dos 57 ativistas que fizeram parte daquela multiação literária.
Ativista cultural, Christiano foi, em 1979, ao lado de Rafael Marques Ferreira, à época recém-ingressados na Faculdade de Comunicação (Facos) da Universidade Católica de Santos (UniSantos), um dos fundadores do grupo Picaré, que encerrou suas atividades em 1983, e um dos participantes ativos das chamadas gerações do mimeógrafo e da poesia marginal nos anos 1970 e 1980.
            Como observa Christiano na introdução, o movimento Picaré tentou romper com o academicismo, sem deixar de manter uma política de boa vizinhança com escritores e entidades literárias já estabelecidas. Não se pode esquecer que, à época, o Brasil vivia sob os rigores de uma ditadura militar (1964-1985), marcada pela repressão às liberdades democráticas, com censura, perseguição política, torturas e mortes, inclusive com a presença disfarçada de agentes dos órgãos repressores nas salas de aulas da Facos. Mas, ao mesmo tempo, aquela seria uma época de muit a curtição e desbunde, especialmente em São Paulo, a partir da ação de jovens que fizeram das pichações e grafites o espaço para as suas manifestações artísticas e políticas.

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Whisner Fraga: contos perpassados por sentimento de revolta | por Adelto Gonçalves

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Depois de lançar, em 2020, O que devíamos ter feito, contos (Editora Patuá), o romancista, contista, poeta e crítico literário Whisner Fraga (1971) chega ao seu décimo-segundo livro com Usufruto de demônios (Ofícios Terrestres Edições, 2022), em que se mantém fiel ao gênero, depois de experiências bem-sucedidas em outras modalidades textuais.
A obra, composta por 64 narrativas curtas, a maioria com menos de uma página, todas escritas em letra minúscula, mas com uma linguagem sensível e poética, é uma das primeiras a ter como pano de fundo o trágico período da pandemia de coronavírus (covid-19) em que estão presentes “o horror, o negacionismo, o isolamento social e a perplexidade ante o cinismo fascista”, como observa o poeta, professor e crítico literário Gabriel Morais Medeiros, mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no posfácio que escreveu para este livro.
Como já ressaltou o jornalista e escritor Hugo Almeida, nesta coletânea, “atravessa os contos um sopro de revolta, por vezes recheada de candura”, mas sem deixar de manifestar o inconformismo diante da indiferença e do deboche dirigido aos mortos pelas autoridades da época, especialmente o principal mandatário, que sempre ficou indiferente ao genocídio que ocorria com a proliferação da peste e a falta de vacinas e pronto-atendimento às vítimas, como se lê na narrativa que leva por título “ele acompanha aviões”:
“(…) é como se setecentas mil pessoas tivessem sido apagadas – e se fossem vinte boeing deletados de suas rotas, em um único dia?, cadentes, se tornassem quebra-cabeças em pastos?, será que assim eles se comoveriam?”

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Moacir Amâncio: poemas que captam sensações | por Adelto Gonçalves

   “Câmara Escuro” reúne 65 peças que reafirmam a maturidade poética do autor


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            Depois de alguns anos sem publicar livros de poesia, Moacir Amâncio reaparece com Câmara Escuro (São Paulo, Editora Hedra, 2022), que reúne 65 poemas que reafirmam a sua maturidade poética e mostram que, “às vezes, precisamos baixar os olhos para ver, e de pequenos deslocamentos para achar um outro modo de estar onde estamos”, como observa Roberto Zular, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), no texto de capa que escreveu para este livro. E acrescenta: “Um livro que, enfim, faz das sombras um mote para redimensionar o caminho da iluminação”.
            De fato, o leitor não vai encontrar aqui poemas que possam servir de exemplo perfeito para o conceito estabelecido pelo professor Massaud Moisés (1928-2018) segundo o qual a poesia é a expressão do “eu” por meio de metáforas, como aquela famosa frase de Fernando Pessoa (1888-1935) em que o poeta contempla o silêncio feminino e nele descortina uma nau: “o teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas”.  Nestes poemas curtos, que não se confundem com haicais, a metáfora literária tem objetivo estético, procurando reproduzir beleza ou emoção estética.
Ou seja, as palavras procuram reproduzir, através de uma figura de linguagem, fenômenos provocados por uma condição neurológica, estabelecendo uma experiência sinestésica, que se dá por via sensorial ou cognitiva.

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Maria Estela Guedes: ode a García Lorca | por Adelto Gonçalves

Obra reconstitui trajetória do vate espanhol em périplo poético que soa como uma conversa íntima com o espírito do poeta

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            Uma ode formada por versos inspirados na vida e na obra do poeta espanhol Federico García Lorca (1898-1936) é o que o leitor irá encontrar no livro mais recente da dramaturga, poeta e ensaísta portuguesa Maria Estela Guedes, que acaba de sair pela Editora Urutau, estabelecida no Barreiro, em Setúbal, do lado de lá do rio Tejo, em Portugal, e em Cotia, no Estado de São Paulo, no Brasil. Com capa que reproduz desenho do próprio poeta, a obra Conversas com Federico García Lorca traz 107 poemas que procuram reconstituir a breve e fulgurante trajetória do vate que seria interrompida com o seu fuzilamento por hordas direitist as comandadas pelo general Francisco Franco (1892-1975).
            Lenda em vida, e ainda longe da idade madura, Lorca já era à época um ícone daquela que, mais tarde, viria a ser definida como a geração de 27, que incluía, entre outros, Pedro Salinas (1891-1951), Jorge Guillén (1893-1984), Rafael Alberti (1902-1999), Vicente Aleixandre (1898-1984) e Luis Cernuda (1902-1963), ainda que não constituísse um grupo movido por qualquer motivação histórica ou influxo literário ou mesmo por um líder.

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Silas Corrêa Leite e a voz dos deserdados da terra | por Adelto Gonçalves

Em novo livro, autor recolhe flagrantes da história oral vivida nas favelas de São Paulo

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            Quem já percorreu os labirintos dos arquivos públicos sabe que a documentação, majoritariamente, reflete a posição das classes dominantes e de seus lacaios. Por isso, quando um dos deserdados da terra consegue fazer com que ouçam sua voz esse acontecimento torna-se motivo de regozijo. Foi o caso de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), catadora de papéis que vivia numa favela do Canindé, em São Paulo, que ficou conhecida por seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960, com auxílio do jornalista Audálio Dantas (1929-2018), obra traduzida para 14 idiomas.


Nessa linhagem, o poeta, romancista e contista Silas Corrêa Leite (1952), de origem humilde, também é uma espécie de deserdado da terra que encontrou na literatura uma forma de fazer com que a voz dos excluídos seja ouvida. Começou sua vida profissional cedo, tendo sido aprendiz de marceneiro e garçom em Itararé, cidade na divisa entre os Estados de São Paulo e Paraná, além de engraxate, boia-fria e vendedor de doce de groselha. Começou a escrever aos 16 anos, passando a produzir crônicas para o jornal O Guarani. E logo foi aprovado num concurso para locutor na Rádio Clube local.
 Em 1970, migrou para São Paulo, onde morou em pensões, cortiços, passou fome e dormiu na rua.  Já empregado, formou-se em Direito e Geografia, sendo especialista em Educação pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de ter cursado pós-graduações nas áreas de Educação, Filosofia, Inteligência Emocional, Jornalismo Comunitário e Literatura na Comunicação, curso este que fez na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).

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Encontro literário com o sertão | Adelto Gonçalves

Escritores discutem em Arinos temas ligados ao interior de Minas Gerais e Goiás

                                                     I
            O poeta, romancista e contista Napoleão Valadares (1946) é autor de Delírio Lírico (Rio de Janeiro, Edições Galo Branco, 2008), obra que tem tudo para se tornar um clássico da poesia brasileira deste século XXI. Trata-se de um poema construído em decassílabos brancos, sem estrofes, cujos cantos têm 49 versos cada um, exceto os de números V, VI e VII, num total de 1.759 versos, numa narrativa épica que funde a linguagem clássica à popular. E que abrange, em ordem cronológica, mais de 30 séculos de história, que se inicia com a Guerra de Troia (século XIII a.C. ), passando por Sócrates, Platão, Aristóteles, até chegar praticamente aos nossos dias, como bem assinalou o poeta e crítico João Carlos Taveira em rica resenha publicada no Jornal Opção, de Goiânia, em 15/11/2020.
            Dono de extensa obra que inclui mais de três dezenas de livros, Valadares, que também se destaca como organizador de coletâneas e antologias, acaba de publicar Encontro de Escritores em Arinos (Brasília, André Quicé Editor, 2022), que reúne quatro palestras que foram lidas no dia 22 de maio de 2022, durante evento organizado pelo escritor com o patrocínio da Prefeitura de Arinos, em Minas Gerais: “A Literatura Brasileira”, por Anderson Braga Horta; “A água do Urucuia”, por Eugênio Giovenardi; “Antônio Dó, um jagunço urucuiano”, por Marcos Sílvio Pinheiro ; e “A obra de Guimarães Rosa”, por Wilson Pereira.
            Em sua palestra, Braga Horta fez um voo panorâmico sobre a literatura brasileira, desde a carta em que Pero Vaz de Caminha (1450-1500) comunicava ao rei dom Manuel I (1469-1521) as suas primeiras impressões da paisagem e do potencial econômico da terra “descoberta” até o Pré-Modernismo e Modernismo do século XX, depois de exauridos o Realismo e o Simbolismo, incluindo os movimentos de vanguarda. Em conclusão, Braga Horta reconheceu que a literatura praticada o Brasil não é muito estudada fora dos países de expressão portuguesa, ainda que seja extremamente rica e “sobejamente caracterizada como literatura nacional, brasileira, típica, sem perda de universalidade, sem xenofobia, sem chauvinismo, mas aberta aos ventos do mundo”.

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 Eduardo Fontes | a poesia como evocação da infância | por Adelto Gonçalves 

Poeta faz com versos nada herméticos uma viagem ao tempo da inocência

     I
            Para comemorar o centenário de seus pais, os poetas Humberto Pinheiro Fontes e Maria do Carmo Alencar Oliveira Fontes, ambos nascidos em 1917, o poeta cearense Eduardo Fontes lançou Devaneios (Fortaleza, Editora Expressão Gráfica, 2017), seu 17º livro, que traz prefácio de Anderson Braga Horta, da Associação Nacional de Escritores (ANE), de Brasília, e ilustrações do artista plástico Descartes Gadelha. Poeta bastante conhecido no Nordeste, talvez porque em seus versos nada herméticos e extremamente líricos sempre se mostrou muito preocupado em exaltar suas origens, Fontes, mais uma vez, confirm a sua opção por uma simplicidade que faz evocar nos leitores os anônimos menestréis de tempos mais amenos.

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Adalberto de Queiroz: vozes do passado em versos | por Adelto Gonçalves (*)

Poeta faz da evocação da mãe que não teve a música inominável de sua poesia

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            Em poucos poetas antigos ou modernos brasileiros (para não se dizer nenhum), a evocação da mãe é tão presente e tão luminosa como em Adalberto de Queiroz (1955), que foi educado como órfão em abrigo de Anápolis, no interior de Goiás, de onde saiu só em 1973 para cursar Física na Universidade Federal de Goiás (UFG). Poeta, jornalista e ensaísta, Queiroz, em 2021, lançou a segunda edição, revista e repensada, de Cadernos de Sizenando, publicado em 2014, livro de poemas que “saem da angústia para o enfrentamento da realidade”, como definiu no pref&a acute;cio o escritor Iúri Rincon Godinho, membro da Academia Goiana de Letras.
            Godinho explica que, a pedido do autor, para a segunda edição da obra, retirou os textos em prosa poética da primeira, deixando apenas os poemas, garantindo que o material que ficou de fora “merece outro livro”. Tanto os textos em prosa poética quanto os poemas haviam sido publicados inicialmente em um blog (http://www.betoqueiroz.com) que Adalberto de Queiroz ainda mantém na internet. Como diz Godinho com percuciência, se ele, como editor do texto, tivesse tirado também todos os poemas e deixasse apenas aquele que tem por título “É a Mãe” o livro já valer ia a pena ser lido.

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‘Expedição Abissal’: dias de angústia debaixo da terra | por Adelto Gonçalves

Romance de Hélverton Baiano recupera a aventura vivida por professores e mateiros, na década de 1970, num complexo de grutas no interior de Goiás
                                                           I
Se “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”, como dizia o poeta Fernando Pessoa (1888-1935), a ficção é a saída para se tentar explicar aquilo que ficou no passado envolto em muitas brumas. Nesse sentido, o texto literário, sem as amarras da reportagem ou da notícia de jornal ou do vídeo da televisão ou das redes sociais, por meio do recurso da fantasia, procura trazer ao leitor o que ficou lá atrás, sem maiores explicações.
            Foi o que procurou fazer o experiente jornalista Hélverton Baiano (1960), ao buscar na ficção a melhor maneira de contar um episódio que ocorreu em 1971, quando um grupo de professores e pesquisadores saiu em busca de vestígios de minerais radioativos no interior de Goiás. Esse romance, o primeiro de um autor que se já havia destacado com obras de poesia e prosa poética, tem por por título Expedição Abissal (Astrolábio Edições, 2022) e procura reconstituir o drama que aquele grupo viveu ao se embrenhar no complexo de grutas de Terra Ronca, em São Domingos, região Nordeste de Goi ás, a 640 quilômetros de Goiânia. Aqueles pesquisadores e seus ajudantes se perderam e percorreram, durante 46 dias, cerca de 100 quilômetros debaixo da terra, até que chegaram à Gruta da Barrinha, em Correntina, já no Estado da Bahia.

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Ivan Berger: estreia tardia, mas ainda a tempo | por Adelto Gonçalves     

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            Depois de cumprir uma carreira jornalística de cinco décadas, mesclando o tempo em redação e o trabalho informal como cronista e poeta, Ivan Berger, finalmente, vê o seu primeiro livro impresso, este Quase Não Sou Mais Eu – O Balacobaco do Deus Ex-Machina (São Paulo, Literando Editora, 2022), que reúne 188 peças em prosa poética, poemas em versos livres e contos curtos. São textos em que rememora não só os seus primeiros anos de vida na pequena cidade de Cachoeira do Sul, na região central do Rio Grande do Sul, às margens do rio Jacuí, a chamada “capital nacional do a rroz”, como boa parte da infância e da adolescência passada em Curitiba, capital do Estado do Paraná, antes de sua família se transferir para a litorânea Santos em busca de melhores oportunidades para sobrevivência.
            Dividida em três blocos, a obra, em sua primeira parte, depois de dois textos em prosa em que o autor faz uma espécie de apresentação de seu trabalho, deixando claro que não escreve para ser agradável ao leitor nem para “fazer proselitismo”, segue por mais de cem páginas com poemas em versos que se caracterizam por uma tonalidade noturna, de introspecção, ou seja, um mergulho no interior de uma alma solitária.

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Silas Corrêa Leite: a poesia como libertação da alma | por Adelto Gonçalves

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Autor multifacetado, Silas Corrêa Leite (1952) volta às livrarias com novo livro de poemas, Lampejos (Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019), que reúne 25 peças em que o poeta coloca em prática a poesia como libertação da alma. E o faz como uma forma de ter em mãos um mundo mais tranquilo que o mundo de todos os dias, alheando-se dos momentos difíceis por meio da busca do sonho e do desejo.      
                Em outras palavras: a palavra poética seria a ponte por onde a alma do poeta passaria para o futuro, ou seja, para a vida eterna, como se constata no poema que tem por título exatamente “Morte” e no qual ele diz que: Quando a morte vier me buscar / estarei sentado à beira do caminho / Escrevendo meu último poema para o luar cor de prata / com minha lupa de restos de calendários vencidos… / A morte – a mais bela mulher que jamais vi – dirá, / toda vaidosa e pintada para a guerra das estrelas / – Vamos, poeta, se apresse, vamos, é hora… / Eu a olharei, entregue, e a tomarei nos braços / Então a abraçando forte e seguro como uma ilha eterna de / estúdio de luz / E finalmente  assim embarcaremos na canoa furada da noite, / e juntos / Como unha e carne / seremos um só / Como um voo de Ícaro para o céu de todas as honras…
Com imagens triviais, Silas Corrêa Leite explora temas como o mar e o tempo, a vida e a morte, a alma e o corpo, o “eu” poético e o amor em todos os níveis, inclusive o amor filial e o maternal e o paternal, com versos bem lapidados, às vezes até enveredando pelo barroco, para concluir com explosões épicas, pois, se algo sabe fazer com quase perfeição, é a maneira habilidosa com que manipula as palavras. 
Leia-se, por exemplo, este poema que leva por título “Saudade”: Mãe, às vezes, quando vou dormir ensimesmado / Na fronha de algodão cor de neve / encardida – com lágrimas de saudades de ti / Ainda parece que vejo teu rosto; / parece que no pano a tua voz como uma cantilena terreal / me diz / – Dorme, guri, dorme… / Então eu fecho os olhos chorando escondido da vida / E minha saudosa lembrança de ti / abraça minha angústia noturna no travesseiro / E acaricia com tintas de imenso amor eterno / o desalinho de minha saudade de órfão triste.

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Iacyr Freitas: 40 anos de percurso literário | por Adelto Gonçalves

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            Para comemorar o 40º aniversário de sua estreia literária, o poeta Iacyr Anderson Freitas (1963) acaba de lançar Os campos calcinados (São Paulo, Faria e Silva Editora, 2022), que reúne toda a sua produção lírica escrita após o seu livro anterior, Estação das Clínicas (2016), além de poemas que até então figuravam apenas em periódicos nacionais e estrangeiros. A exemplo de obras anteriores, os poemas do novo livro trazem a cáustica ironia e o sentimento de perda que são características marcantes do seu itinerário literário. < /span>
            Dividida em cinco partes bem distintas – “O cerol no ouvido”, “Menos café que cicuta”, “Perder um país”, “Este mínimo infinito: breviário” e “Limão Capeta” –, a obra traz peças que fundem o pictórico com o sonoro, expressando o sentimento do poeta em imagens que valem por si mesmas. O poema “A derradeira”, que consta da terceira parte, é um bom exemplo disso: “a manhã curvou seus sinos aos escolhidos / : tu estavas dormindo / veio silenciosa / brindar os passantes / com a última rosa / branca enorme esplendorosa / a última / a d erradeira rosa / a manhã curvou seus sinos / sobre o sono dos vencidos / era domingo / adeus vida que não veio / vento que acende os aceiros / adeus amores de outrora / vela que se queimou no vime dos veleiros / : a manhã devora / a última rosa”.
            A imagem que se desprende da frase “a vida que não veio”, de certo modo, repete-se em “Abaixo, no lugar de rancor, use a palavra amor”, poema que consta da primeira parte, pois traz o mesmo sentimento que evoca um poema de Manuel Bandeira (1886-1968), “Pneumotórax”, que fala de “uma vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Segue o poema: “nada como um rancor não correspondido / no lugar da dor / o olvido / nenhum remorso / nenhum ódio ressentido / nenhuma palavra / como navalha / no ouvido / somente o vazio o vazio infinito / do que não foi / vivido”.

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Eltânia André: sensibilidade à flor da pele | por Adelto Gonçalves

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            Com o seu arguto olhar feminino e feminista, característica já marcante em suas obras anteriores, a romancista e contista Eltânia André volta a premiar seus leitores com um novo livro, desta vez, de contos, e minicontos ou microcontos: Corpos luminosos (São Paulo, Editora Urutau, 2022), que reúne 29 peças em que a autora se mostra conhecedora das variadas técnicas da escrita, como o monólogo interior e o fluxo de consciência,  exercitando o realismo, especialmente o interior, que procura ressaltar os conflitos da alma. E tudo feito com singular liberdade criadora.
            No texto de apresentação que escreveu para esta obra, o experiente romancista e contista Whisner Fraga, diz, com percuciência, que a prosa de Eltânia é densa, urdida para apanhar o leitor no contrapé. “Com diversas referências da mitologia, da literatura, da filosofia, da música, de outras artes, estes textos cativam pelo lirismo e pela abrangência de temas e situações”, ressalta.

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Bocage, a vida passada a limpo | Adelto Gonçalves | por Hugo Almeida

Bocage, a vida passada a limpo

Em pesquisa de grande fôlego, o escritor e pesquisador brasileiro Adelto Gonçalves recuperou dados da vida e obra, muitos antes inéditos, de Manuel Maria Barbosa du Bocage, o poeta que sonhava ser um novo Camões

Por Hugo Almeida

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Com outras palavras, Jorge Luis Borges disse na apresentação de Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, que a trajetória de uma pessoa está contida naquele tracinho que liga a data de nascimento à de morte. Ou, como escreveu Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.De certa forma, é isso que o escritor e pesquisador brasileiro Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP),mostra na biografia de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805),Bocage, o perfil perdido (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2021).

Em pesquisade impressionante fôlego, paciente,minuciosa,riquíssima em documentação inédita,Gonçalves recompôs em 520 páginasos 40 anos da vida intensa, agitada e contraditória do poeta que não realizou o sonho megalomaníaco de ser um novo Camões, mas entrou para a história da literatura portuguesa. O livro já havia sido publicado em Portugal em 2003 e foi aplaudido pela crítica especializada.

No prefácio da edição brasileira, Fernando Cristóvão, professor catedrático de Literatura da Universidade de Lisboa, resume em um parágrafo quem foi o poeta: “Bocage, alistado na Marinha, cursou a respectiva Academia, embarcou para a Índia, foi boêmio no Rio de Janeiro, passou três anos em Goa e Damão, desertou fugindo para Macau, regressou a Lisboa, onde a vida livre e as sátiras o atiraram para a prisão e o hospício. Morreu doente e pobre, traduzindo nos seus versos a sua vida e o seu tempo”. Cristóvão ressalta a importância de Bocage, o perfil perdido: “Foi para historiar e elucidar as contradições e lances da biografia do poeta que Adelto Gonçalves se abalançou a uma pesquisa aturada e sistemática, de que esta publicação dá conta”. E completa: “O excelente trabalho de agora vai desde o traçado da árvore genealógica da família de Bocage até ao final dos seus dias, facultando-nos abundante documentação”.

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A saga de Lorena numa hábil narrativa | Adelto Gonçalves | por Helio Brasil

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A História do Brasil teria que ser contada por um coral de historiadores, apoiados em narrativas de cronistas, aventureiros, viajantes constrangidos ou deslumbrados. Uma inicial e lógica exploração feita a partir da costa, seguida de penosas internações. Todas milagrosamente rápidas, tendo em vista os recursos da época, pois falamos de um passado de meio milhar de anos. Registros, documentos, cartas, mapas (de incrível rigor, em face dos recursos da época), bem como a ansiosa busca de riquezas para uma Europa que experimentara a incubação medieval e a explosão do Renascimento.

Não à toa, Espanha e Portugal, dois países debruçados sobre o mar, como se espichando um pescoço geográfico para o Hemisfério Sul ali dominado pelo Atlântico, lançaram-se à cata de riquezas. A terra lusitana, restrito território, pobre de recursos naturais, mais do que todos, levou a conquista a sério.

Nenhuma colonização é angelical. Antes é fria, cruel e espoliadora. Assim, dizer que o Brasil teria se tornado um país melhor se ficasse com espanhóis, com ingleses, franceses ou (que deslumbramento!) dourados holandeses, nos parece uma conjectura ingênua. Historicamente (ou fatalmente) ficamos com Portugal. E será sobre essa nação e seu povo – tão péssimo como os mais péssimos, tão notável quanto os mais notáveis – que devemos falar.

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Solha: a história da Humanidade num poema | por Adelto Gonçalves

I 

Depois de publicar, em 2019, Vida Aberta (São Paulo, Editora Penalux), o romancista, poeta, cordelista e ator de teatro e cinema W. J. Solha (1941) chega com 1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite (Cajazeiras-Paraíba, Arribaçã Editora, 2021), ao quinto volume de seu Tratado Poético-Filosófico, de seis que pretende publicar. Trata-se da continuação de um longo poema em versos livres, um discurso utópico, em que procura reconstituir a história da Humanidade e seus muitos saberes e numerosos fracassos.  

Poeta que sempre operou a anarquia nos gêneros, espécies e formas literárias como maneira de se libertar do peso da tradição que sempre impediu que se fizessem voos mais altos e abertos para a intuição, Solha volta a fazer a junção do popular com o erudito, exigindo de seu leitor um conhecimento profundo não só de Literatura e Filosofia como de fatos que marcaram a vida no planeta, com citações que vão desde o Evangelho de João até Machado de Assis, passando por Descartes, Santos Dumont, Frida Khalo, Salvador Dali, Mozart, Caravaggio, Bela Bartok, Shakespeare, Charlie Chaplin, Freud, Stendhal, Tolstoi, Darwin, Gilberto Gil, Gal Costa, Ivete Sangalo e muitos outros nomes representativos da cultura mundial e nacional. 

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‘Homem de papel’, uma metaficção machadiana | João Almino | por Adelto Gonçalves

Oitavo romance de João Almino será fundamental para quem quiser saber, daqui a cem anos, o que foi o Brasil destes tempos.

I 

Foi quando já estava em seus derradeiros anos que Machado de Assis (1839-1908) escreveu o romance Memorial de Aires (1908) e que tem como personagem principal o conselheiro Aires, um diplomata em fim de carreira que já havia aparecido em Esaú e Jacó (1904) como participante do enredo, anotando em seu caderno tudo o que de mais significativo acontecia ao redor de sua vida. Esse personagem-narrador seria um alter ego do autor, como deixam concluir algumas coincidências, tais como a idolatria que dedica à mulher e a ausência de filhos em seu casamento. 

Pois é esse personagem carismático que já não se sentia como “deste mundo”, pois se achava um homem do século XIX, que o premiado romancista João Almino ressuscita e transporta para o século XXI em sua última obra, Homem de papel (Editora Record, 2022), que, desta vez, alinha-se ao gênero da metaficção, ao romper com os cânones do Modernismo, mostrando-o como um autor pós-modernista. É o que se conclui da observação do professor Abel Barros Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, feita no posfácio, ao ressaltar que “a primeira possibilidade de Homem de papel é assim a metaficcional”, com “Aires narrando-se de novo, mas para se inventar novo”. 

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Mestiçagem e desmitificação do discurso eurocêntrico | por Adelto Gonçalves

I 

Terceiro livro do professor Sebastião Marques Cardoso, Poéticas da mestiçagem – textos sobre culturas literárias e crítica cultural (Curitiba, Editora CRV, 2014) resume a clivagem que o autor fez em seus estudos a respeito da literatura brasileira a partir do conhecimento de textos de autores oriundos de países africanos de língua oficial portuguesa, o que se deu, em 2009, quando, já doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), atuou como leitor na Embaixada do Brasil na Guiné-Bissau com bolsa oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação vinculada ao Ministério da Educação. À época, auxiliou na docência e na administração da Universidade Amílcar Cabral (UAC) e tornou-se o primeiro assessor científico daquela instituição, na ocasião, partilhada com a Universidade Lusófona da Guiné (ULG). Hoje, a UAC, pública, e a ULG, particular, não estão mais interligadas. 

Se durante o período da graduação, do mestrado e do doutorado, Cardoso optou pelo estudo de personagens anônimos da literatura brasileira, considerando-os “figurinos” em João do Rio (1881-1921) e “anti-heróis”, em Oswald de Andrade (1890-1954), a partir da experiência africana ampliou suas reflexões críticas, estudando principalmente a obra do guineense Abdulai Sila (1958), autor de Eterna paixão (1994), que é considerado o primeiro romance de seu país. Como observa o professor Benjamin Abdala Junior, da USP, no prefácio que escreveu para a obra, nestes estudos sobre poéticas da mestiçagem há “reflexões atuais sobre as bases críticas da formação de nosso imaginário nacional e também sobre as que se desenharam nos países africanos de língua oficial portuguesa, na particularidade da Guiné-Bissau”. 

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Adelto Gonçalves | Bocage: uma história agora contada com primor | por Silas Corrêa Leite

Lançado em Portugal em 2003, o livro ganhou a sua edição brasileira em 2021 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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            Pelo que me lembro, na minha chamada memória recorrente desde priscas eras de atiçado buscador e ledor voraz, Bocage era e ficava entre um Pedro Malasartes  (figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, tido como burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes, de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos) e um Casanova (Giacomo Girolamo Casanova, escritor e aventureiro italiano, tendo interrompido as carreiras profissionais que iniciou — a militar e a eclesiástica — e que passou a levar uma vida aventurada), em terras de Camões, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa, muito antes ainda de José Saramago, portanto. Tinha-o como um boêmio aprontador em terras lusas de Cabral e de Pero Vaz Caminha.

            Lendo agora Bocage, o perfil perdido, que virou clássico da obra-pesquisa-documentário do mestre e doutor Adelto Gonçalves, depois de levar tempo para lê-lo, tal o peso do livraço e a densidade do historial enquanto pesquisa e documentário também, posso dizer que tive uma universidade de mais de ano inteiro sobre o poeta. Afinal, um curso e tanto, um livro precioso, com aulas magnas desse que já é escritor esmerado de tantos outros portentosos livros, que tive o prazer de ler, curtir e gostar, e até me mesmo fazer aqui e ali breves resenhas.

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Cataguases, cidade-ícone da Literatura Brasileira de Ronaldo Werneck | por Adelto Gonçalves

I 

Poucas cidades brasileiras foram (e continuam sendo) tão geradoras de cultura como a pequena Cataguases, município de 74 mil habitantes localizado na Zona da Mata do Estado de Minas Gerais, a 320 quilômetros de Belo Horizonte. Entre as muitas manifestações culturais que a tiraram do limbo da História, estão a publicação da revista Verde, ainda nos anos 20 do século passado, o cinema de Humberto Mauro (1897-1983) e a música de Patápio Silva (1880-1907), que ficou conhecida mais tarde pela voz terna do cataguasense Lúcio Alves (1925-1993). 

A par disso, houve ainda a presença muitos literatos que deixaram sua marca na história da Literatura Brasileira, como Rosário Fusco (1910-1977), Guilhermino César (1908-1993), Ascânio Lopes (1906-1929) e Francisco Inácio Peixoto (1909-1986), sem contar os de geração mais recente, como Joaquim Branco, Ronaldo Werneck, Ronaldo Cagiano, Luiz Ruffato, Eltânia André e outros. Também não se pode deixar de assinalar as obras de Oscar Niemeyer (1907-2012) e de outros renomados arquitetos que são encontradas na cidade, bem como os trabalhos de Candido Portinari (1903-1962), Santa Rosa (1909-1956), Djanira (1914-1979) e outros artistas que estão em seus museus e ainda os seus jardins projetados por Burle Marx (1909-1994).  

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Maria João Cantinho e a arte de esculpir poemas | por Adelto Gonçalves

                                                 I

       Autora consagrada na área ensaística, especialmente com livros sobre o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin (1892-1940), Maria João Cantinho (1963) chega ao seu quinto livro de poemas com Escopro e Luz (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2021), afirmando-se como uma das maiores poetisas (e por que não poetas?) da Língua Portuguesa dos séculos XX e XXI. Mas isto não significa que atue de maneira independente numa e noutra área do pensamento.

            Pelo contrário. Em sua poesia, percebe-se o desencanto da poetisa com o mundo em que lhe coube viver, como se visse a História pelas lentes de Walter Benjamin que, em sua crítica ao progresso, prognosticara períodos de crescimento seguidos de outros de barbárie e selvageria, antevendo o retrocesso europeu e norte-americano dos tempos atuais, o que inclui também a época de desconstrução e desagregação social por que passa o Brasil de hoje.   

            Como já anteviu o professor José Cândido de Oliveira Martins, da Universidade Católica Portuguesa, em alentado e percuciente ensaio-introdutório de 12 páginas escrito à guisa de prefácio, a palavra poética de Maria João Cantinho “tem o misterioso poder de ajudar a cicatrizar a ferida aberta, regenerando e revitalizando o corpo sofrido, assim plasmado no corpo do poema ou da poesia”. Afinal de contas, diz o professor, são estas vozes (da poesia, das lembranças da infância ou de outras proveniências) que nos resgatam da iminência do naufrágio – “São as vozes que nos salvam”.

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Duanne Ribeiro e a experiência da perda | por Adelto Gonçalves

                                                                                           

                                                 I

       O jornalista Duanne Ribeiro (1987), mestre e doutorando em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo (USP), surpreende a crítica e o público-leitor com o seu primeiro trabalho de ficção mais alentado, o romance As Esferas do Dragão (São Paulo, Editora Patuá, 2019), em que procura, a partir de experiências pessoais, especialmente ligadas à infância e adolescência, construir um texto que foge aos padrões tradicionais, pois permeado de referências à cultura pop e aos desenhos animados, especialmente o Dragon Ball, criado pelo desenhista japonês Akira Toriyama (1955), que, exibido no Brasil pelas redes SBT, Band e Globo, tornou-se um marco na programação infantojuvenil na década de 1990. 

            Se o romance de Duanne Ribeiro constitui uma releitura do desenho Dragon Ball, a produção do mangaká Toriyama, criador de mangás (quadrinhos japoneses), por sua vez, é inspirada em Jornada para o Oeste, um dos quatro clássicos da literatura chinesa, escrito no século XVI pelo romancista Wu Cheng’em (c.1500-c.1582), durante a dinastia Ming, que combina ação, humor e lições espirituais. Esse conto de aventuras ocorre no século VII e conta a história de um dos discípulos de Buda Sakyamuni que teria sido banido do paraíso celestial pelo crime de danificar a Lei do Buda e enviado ao mundo e forçado a passar dez vidas para expiar seus pecados.

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Silvya Gallanni | três mundos em haicais | por Adelto Gonçalves

                                                 I

          O haicai, modalidade de poesia de origem japonesa, sobrevive hoje no Brasil com várias vertentes: a tradicionalista, a de inspiração zen, a filiada ao poeta paulista Guilherme de Almeida (1890-1969), importante organizador da Semana de Arte Moderna de 1922, a epigramática e a de matriz concretista, conforme classificação feita pelo crítico literário e também poeta Paulo Franchetti, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e professor aposentado do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que consta do artigo “O haicai no Brasil” publicado na revista Alea: Estudos Neolatinos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), v. 10, nº 2, julho-dezembro de 2008, pp. 256-269.

            Segundo o professor, “o que parece novo é o sincretismo que se opera entre elas (com exceção da vertente guilhermina, que pouco dialoga com as demais), ganhando mais peso a incorporação dos princípios e práticas do haicai tradicional, entendido antes como atividade, como aprendizado de uma determinada forma de olhar para o mundo e utilizar a linguagem, do que como técnica de composição ou forma fixa exótica”. É na vertente de matriz concretista, visual, vanguardista e não-formal e, portanto, destituída de estrutura poética de metrificação e versificação, que se pode classificar a poesia que se lê em HaiKai: Fragrâncias Poéticas (Lisboa, VuJonga Magazine, 2019), de Silvya Gallanni, brasileira radicada em Portugal desde 2010, que reúne peças produzidas entre 2009 e 2016 e algumas publicadas anteriormente no site Recanto das Letras, de São Paulo-SP.

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‘Certos casais’: contos escritos com raro talento | Hugo Almeida | por Adelto Gonçalves

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               Com textos que misturam diálogo, descrição, fluxo de consciência, vozes cruzadas e, às vezes, a combinação disso tudo, Hugo Almeida (1952) chega ao seu quarto livro de contos, Certos casais (São Paulo, Editora Laranja Original, 2021), dentro de uma extensa obra que inclui livros dos gêneros infantil e juvenil, romance, ensaios e uma tese de doutoramento, além da organização de coletâneas de contos e ensaios. Dividido em duas partes, Livro I e Livro II, Certos casais reúne nove contos inéditos, alguns escritos há duas ou três décadas, mas que receberam ajustes para esta publicação.

            O livro está dividido em duas partes distintas, mas os oito contos da primeira podem ser lidos como uma espécie de romance ou minirromance porque as personagens fazem parte de três gerações de uma mesma família. Seja como for, os relatos podem ser lidos separadamente, sem que haja dependência de um texto para outro.

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Transpenumbra do Armagedom | distopia depois de uma hecatombe  | Silas Corrêa Leite | por Adelto Gonçalves

Autor de livros polêmicos e diferenciados, Silas Corrêa Leite (1952), depois de publicar Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial), em 2018, O Marceneiro: a última tentativa de Cristo (Maringá-PR, Editora Viseu), em 2019, e Cavalos selvagens (Taubaté, Letra Selvagem; Curitiba, Kotter Editorial), em 2021, surpreende seus leitores com Transpenumbra do Armagedom (São Paulo, Desconcertos Editora, 2021), obra em que, mais uma vez, mistura gêneros e estilos, fazendo com que a crítica fique em dificuldades para defini-la.  

I 

Na verdade, trata-se de uma reunião de textos que vão do romance de ficção científica a contos futuristas e crônicas minimalistas, passando por poemas de cunho libertário. Enfim, uma obra que traz uma visão épica e fantástica de um futuro que se desenha para o planeta Terra e que se avizinha como assustador. 

O autor reconhece que procurou fazer uma literatura de ficção futurista baseado na new weird fiction, (que pode ser traduzida como “ficção esquisita”), estilo que produz criaturas mutantes, personagens que não são totalmente humanos, que surgiu na década de 1990 com a ideia de subverter conceitos, combinando elementos da ficção científica, horror e fantasia, não seguindo convenções ou exemplos estereotipados. Um gênero que anuncia a chegada da distopia, também denominada cacotopia ou antiutopia, que representa a antítese do que se lê em Utopia, do escritor inglês Thomas Morus (1480-1535), onde um governo, organizado da melhor maneira, proporciona ótimas condições de vida a um povo equilibrado e feliz. 

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Cavalos Selvagens | uma obra imaginativa | Silas Corrêa Leite | por Adelto Gonçalves

Depois de publicar, em 2018, Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial) e, em 2019, O Marceneiro: a última tentativa de Cristo (Maringá-PR, Editora Viseu), Silas Corrêa Leite (1952) acaba de lançar o romance Cavalos Selvagens, publicação que marca o início de uma parceria entre as editoras Letra Selvagem, de Taubaté-SP, e Kotter Editorial, de Curitiba-PR. Este romance, escrito há 15 anos, porém, não faz parte da projetada trilogia aberta pelas duas obras anteriores. Segundo o autor, o último livro da trilogia está praticamente concluído e deverá vir a público em 2023. 

A nova obra do romancista e poeta, a exemplo das anteriores, pode ser definida como mística, ecumênica e religiosa, mas vai além, partindo do título inspirado numa canção dos roqueiros ingleses Keith Richards e Mick Jagger, em que a expressão “cavalos selvagens” pode ser apenas uma metáfora de tudo o que o ser humano é, como se lê em Hamlet, tragédia do poeta, dramaturgo e ator inglês William Shakespeare (1564-1616), escrita entre 1599 e 1601 e que explora temas como traição, vingança, incesto, corrupção e moralidade.   

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Braga Horta | 50 poemas de circunstância | por Adelto Gonçalves

            Poeta, contista, ensaísta, tradutor e dono de uma vasta obra, Anderson Braga Horta (1934) acaba de lançar 50 Poemas (50 Gedichte), livro em edição bilíngue em que reúne suas últimas criações com tradução do alemão Curt Meyer-Clason (1910-2012), romancista e memorialista, que se notabilizou como tradutor de autores de diversas línguas, tanto em prosa como em verso, e que no Brasil ficou especialmente conhecido pela tradução que fez de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (1908-1967). Como deixou expresso em carta de 2004 ao autor, reproduzida na contracapa do livro, Meyer-Clason procurou fazer uma recriação equivalente idiomaticamente ao original, enfrentando dificuldades com neologismos e aliterações próprios do idioma português que só com muito talento conseguiu passar para o alemão.

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Leiradella e a Capitu portuguesa | por Adelto Gonçalves

Além do teatro, do ensaio e do roteiro para vídeo, cinema e televisão, Cunha de Leiradella (1934), ao curso de uma longa vida bem vivida, sempre cultivou igualmente o romance e o conto, gêneros a que mais se dedicou, como bem sabe quem já compulsou a sua biografia. Em Isto não é um romance, porém, chega a um ponto em que inaugura um gênero, pois se trata de um conto que parece ter escapado ao controle do escritor, alcançando as dimensões físicas de um romance. Talvez venha daí a opção por tal título, embora o leitor possa concluir também que este texto não conta a história de um amor exaltado, como bem se afiguraria a um romance tradicional, mas de um amor frustrado, que não houve. É a história de um homem que não conseguiu se realizar na vida sentimental e faz um relato confessional de seu passado melancólico.

            Mais uma vez, a personagem principal de um texto de Leiradella é Eduardo da Cunha Júnior, que, em outras obras, já foi vendedor de livros, dramaturgo, engenheiro, executivo e detetive. Desta vez, o alter ego do autor é um cidadão que, licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, filho de um comerciante bem-sucedido, nunca saiu da confortável casa em que nasceu nem precisou ir à luta para ganhar a vida, vivendo dos rendimentos e dos bens que os pais teriam deixado, e que se define como “um parasita social que não é pago com dinheiro público”.

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Um inventário dos poetas católicos do Brasil | Os Fios da Escrita – ensaios literários | Adalberto de Queiroz

     Adelto Gonçalves (*)

                                                           I

            Um excepcional inventário sobre a produção dos principais poetas católicos do Brasil é o que o leitor irá encontrar em Os Fios da Escrita – ensaios literários (Itabuna-BA: Editora Mondrongo, 2020), de Adalberto de Queiroz, poeta, jornalista e ensaísta, que foi empresário no ramo de Tecnologia da Informação por 26 anos. É reparada assim uma injustiça, pois a poesia escrita por poetas católicos brasileiros, que tanta repercussão teve nos anos de 1930 a 1960, nas últimas décadas, havia sido, praticamente, excluída do alvo da crítica, ainda que continue a ser apreciada por alguns poucos jovens leitores.

            Para Queiroz, há um “quarteto sagrado” da poesia feita por católicos no Brasil do século XX: Jorge de Lima (1893-1953), Murilo Mendes (1901-1975), Tasso da Silveira (1895-1968) e Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). A esse grupo, porém, o ensaísta acrescenta Cecília Meireles (1901-1964), Manuel Bandeira (1886-1968) e Lúcio Cardoso (1912-1968). Desses, reconhece, apenas o paranaense Tasso da Silveira é menos conhecido, sendo mais estudado nos círculos acadêmicos de letras de Curitiba e do Rio de Janeiro, onde foi professor.

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Clauder Arcanjo: tributo à mulher nordestina | por Adelto Gonçalves

                                               I

            Mulheres fantásticas (Mossoró: Sarau das Letras Editora; Fortaleza: Edições Poetaria, 2019), reunião de dezoito pequenos contos, do cronista, romancista, crítico literário e contista Clauder Arcanjo (1963), que constitui um tributo ao realismo fantástico tão presente nas histórias do Nordeste brasileiro, na definição do próprio autor, tem como figura central a mulher e suas habilidades únicas, que tanto intrigam os homens, que, muitas vezes, buscam em vão explicações para o seu comportamento. Não foi para tentar encontrar essas respostas que o Clauder Arcanjo escreveu estes contos, mas, principalmente, para realçar estes mistérios.

            Para tanto, tratou de imaginá-las como elementos da natureza, objetos e até animais, como galinha, sapo, abelha, mas sem cair no tratamento chulo das palavras, ou ainda forças naturais, como ventania, maré e nuvem, ou sentimentos, como saudade, mostrando com leveza e bom humor os dramas que ocorrem no relacionamento entre homens e mulheres. Na visão do autor, os homens se mostram frágeis e incapazes de compreender a sensibilidade delas.

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Gabriel Nascente: poesia e pesadelo epidêmico | por Adelto Gonçalves                                                                     

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Tirar poesia do horror – foi a essa ingente tarefa que se atirou o experimentado poeta goiano Gabriel Nascente (1950) para produzir o alentado A Ópera dos Ausentes – pesadelo epidêmico: poema-reportagem (Goiânia, edição do autor, 687 páginas), provavelmente a primeira obra poética de vulto inspirada pela pandemia do coronavírus (covid-19), que desde o final de 2019, quando apareceu na cidade de Wuhan, na China, tem trazido dor e pânico em todo o planeta.

Logo no pórtico, o poeta diz que este longo poema foi “construído com a iluminação das trevas”, ao som “horripilante das ambulâncias despedaçando a inocência das madrugadas”. E tão assoberbado se sentiu diante do tema e da ameaça de morte que ronda todos nós que tratou de propor um novo gênero literário, o poema-reportagem, pois só assim se sentiria capaz de narrar essa tragédia universal, “sob o impacto das mais dolorosas emoções e sofrimentos, causados pelo assombroso vírus”.

 Como observa no prefácio intitulado “A cerimônia das trevas”, que escreveu para a sua própria obra, Gabriel Nascente diz que a questão central do poema “foi trazer para dentro do texto as sombrias impressões de uma realidade (cruelmente mortífera)”, que roubou a vida de mais de cinco milhões de seres humanos em todo o mundo e continua desvairada em sua sanha assassina. E confessa que o fez “arrastado pelas correntes do choque”, pois, do contrário, “estaria mastigando a solidão das paredes. Ou uivando como um louco entre as grades de um hospício”.

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‘Quadrigrafias’: a poesia do efêmero | por Adelto Gonçalves

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       O leitor compra um livro e leva quatro boas obras de poesia. É esta a proposta de Quadrigrafias, fruto de um projeto criado e incentivado pelo escritor e diplomata Márcio Catunda, desde 2003, que consiste na edição de livros de livros. Quadrigrafias reúne quatro obras independentes entre si: Elaine Pauvolid comparece com Silêncio-Espaço, Márcio Catunda com Dias Insólitos, Tanussi Cardoso traz Dos Significados e Ricardo Alfaya, Álbum sem Família.

            O título é alusivo aos quatro autores, suas escritas, suas visões e suas visualidades, já que a palavra grafias tanto sugere a escrita quanto as artes visuais, modalidades que cada vez andam mais próximas. Essa é a terceira coletânea de livros individuais em que os quatro autores estão juntos. As anteriores foram Rios (Rio de Janeiro, Ibis Libris, 2003), e Vertentes (Rio de Janeiro, Editora Five Star, 2009).

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‘Ar de arestas’: uma meditação sobre a dor | Iacyr Anderson Freitas | por Adelto Gonçalves

Livro de Iacyr Anderson Freitas: poeta presente em mais de 20 antologias no Brasil e no exterior, e Ozias Filho, jornalista, fotógrafo e poeta: carioca radicado em Portugal há três décadas (em baixo).                                                             

A precariedade da vida ou a dor da partida – este é o tema de um longo poema de Iacyr Anderson Freitas que se lê em Ar de arestas (São Paulo, Escrituras Editora, Juiz de Fora-MG, Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage-Funalfa, 2013), livro finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom. Em quadras rimadas, com versos heptassílabos, trata-se de um peça que medita sobre a precariedade iminente do ser, sobrepujado pela manifestação da dor, que lhe é transfigurada “através da exploração sistemática de um sistema de símiles e metáforas”, como observou o crítico, contista, ensaísta e tradutor Paulo Henriques Britto em enriquecedor posfácio que escreveu para este livro.

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ENTREVISTA | Em busca de rastros de Bocage | Luthero Maynard conversa com Adelto Gonçalves

Adelto Gonçalves, 70 anos, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é um dos maiores especialistas em século XVIII português. Um de seus trabalhos notáveis é Bocage, o perfil perdido, que sai agora pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), depois de publicado em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa, resultado de um trabalho de pesquisa em arquivos portugueses com bolsa de pós-doutoramento da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp).

        Ainda sobre o século XVIII, o pesquisador publicou outro trabalho notável, Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999), biografia do poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), sua tese de doutoramento, e os ensaios históricos Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo colonial – 1709-1820 (2015), e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (2019), publicados pela Imesp.

        Jornalista desde 1972, Adelto Gonçalves passou por várias redações, incluindo Cidade de Santos, A Tribuna, de Santos, O Estado de S. Paulo e Folha da Tarde e as editoras Abril e Globo. Em Portugal, é colaborador do quinzenário impresso As Artes Entre as Letras, do Porto, e das revistas Vértice e Colóquio/Letras, de Lisboa. É também colaborador do Jornal Opção, de Goiânia, do Diário do Nordeste, de Fortaleza, e da revista digital VuJonga, de Lisboa, dedicada aos povos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entre outros sites do Brasil e Portugal.

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Whisner Fraga: narrativas curtas e bem urdidas | por Adelto Gonçalves

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       Já conhecido nos meios literários mais refinados por seu estilo despojado e ousado, Whisner Fraga (1971) volta, em seu décimo-primeiro livro, às narrativas curtas, depois de experiências bem-sucedidas no gênero romance. O que devíamos ter feito (São Paulo, Editora Patuá, 2020) é essa obra constituída por 14 narrativas curtas, mas bem urdidas, todas com uma linguagem sensível e poética, em que uma personagem que não se identifica conversa, na maioria dos contos, com uma interlocutora chamada helena (assim mesmo sem maiúscula. Aliás, o autor, sem que se saiba a razão, decidiu proscrever a letra maiúscula de todos os textos deste seu livro).

            O conto que mais chama a atenção do leitor é exatamente aquele que abre e dá título ao livro, “o que devíamos ter feito”, em que um pai de família se dirige à mulher para tentar recuperar o tempo perdido e pesar se, com a filha doente, a menina bia, os passos que tinham dado teriam ou não contribuído para o desaparecimento prematuro dela. É com ela que divide o seu fluxo crítico e de consciência, como bem observa o escritor Ronaldo Cagiano no prefácio que escreveu para esta obra, para quem este conto faz recordar versos famosos de Manuel Bandeira (1886-1968), exatamente o poema “Pneumotórax”, em que o poeta rememora “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Diz Cagiano: “O título do livro instiga-nos a um eterno questionamento sobre a transitoriedade e relatividade das coisas, um ponderar sobre o nosso (de)lugar num mundo coisificado, remetendo-nos ao antológico poema bandeiriano (…).

            Baseado talvez na convivência mais próxima que teve com o autor, com quem já dividiu a autoria de Moenda de silêncios: encontros & desencontros na metrópole (São Paulo, Dobra Editorial, 2021), prêmio Programa de Ação Cultural (ProAC) do Governo do Estado de São Paulo, “novela de formação e escrita a quatro mãos”, o prefaciador explica que “o ambiente narrativo desencadeado por Whisner Fraga transmuta-se num caleidoscópio de sutilezas estilísticas, em que muitas vezes prescinde da linearidade ou da coerência das histórias (pois onde há caos não há estabilidade formal, mas ruptura (…)”.

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Os terroristas, um romance destes tristes tempos | Leandro Osterkamp Pedrozo | por Adelto Gonçalves

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               Num país em que se ouve comentários sobre a venda de sentenças por juízes, parlamentares legislam em causa própria aumentando de maneira desmedida a verba do fundo do partidário, ex-militares e ex-policiais engrossam as fileiras de milícias que oferecem na base da extorsão segurança particular aos moradores de bairros mais aquinhoados,  vereadores e deputados costumam distribuir cargos desde que os favorecidos lhes desviem parte dos salários e, enfim, a corrupção chega a níveis estratosféricos, não é difícil imaginar uma possível reação abrupta daqueles que já não suportam tantos ataques aos cofres públicos. E acabariam recorrendo igualmente a meios ilegais.

            Esse é o cenário do romance policial “Os terroristas – uma audaciosa vingança que irá abalar o Congresso”, do médico oftalmologista e escritor gaúcho Leandro Osterkamp Pedrozo, publicado em 2013, como num prenúncio dos momentos difíceis que o Brasil iria viver nos anos seguintes. Segundo a trama, um grupo autointitulado “Filhos do Brasil” assume a tarefa de livrar o país de tanta corrupção exatamente pela via mais rápida: assassinando os corruptos. Com armas de alta precisão e mira telescópica, jovens integrantes daquele grupo, em um documento intitulado “Carta aos Brasileiros”, assumem a autoria do assassinato de quatro parlamentares e prometem que, “de hoje em diante, cada corrupto será condenado por seus crimes”.

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Eltânia André e a literatura vista pelo olhar feminino | por Adelto Gonçalves (*)

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            Quem chamou a atenção deste resenhista para o modo diferente como as mulheres escritoras olham o mundo foi o escritor catalão Eduardo Mendoza (1943), em entrevista que concedeu, em janeiro de 1990, em Barcelona. E que seria publicada à época na revista Linden Lane Magazine, de Princeton, Nova Jersey/EUA, no Jornal de Letras, de Lisboa, em O Estado de S. Paulo, no Suplemento Literário Minas Gerais e em A Tribuna, de Santos, e ainda pode ser lida no site http://www.filologia.org.br.
            Eis o que disse Mendoza: “Interesso-me, entre os contemporâneos, pelas mulheres. Elas interessam-me porque escrevem de uma maneira distinta. É difícil que um homem, nestes momentos, faça uma imagem que não seja conhecida. Já as mulheres têm imagens próprias, completamente novas. São uma janela para outro mundo, outra sensibilidade e outra forma de ver as coisas”.
            Pois bem, o novo livro de Eltânia André (1966), Terra dividida (São Paulo, Laranja Original Editora, 2020), é uma confirmação das palavras de Mendoza. E uma prova de como o olhar feminino na literatura é diferente daquele feito por homens, como sabe quem tem intimidade com as obras de Clarice Lispector (1920-1977), Cecília Meirelles (1901-1964), Nélida Piñon (1937), Cora Coralina (1889-1985), Carolina de Jesus (1914-1977), Lygia Fagundes Telles (1923) e Hilda Hilst (1930-2004), só para ficarmos com algumas autoras brasileiras. É um outro olhar.

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‘Bocage, o perfil perdido’ ganha edição brasileira | por Adelto Gonçalves

SÃO PAULO – O poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), ícone da poesia em Língua Portuguesa, não nasceu na rua de São Domingos, atual rua de Edmond Bartissol, em Setúbal, como mostra uma placa ali instalada há mais de um século, mas ao Largo de Santa Maria com a rua de Antônio Joaquim Granjo, antiga rua das Canas Verdes, na mesma cidade. Esse e outros pormenores desconhecidos do poeta, como o tempo real de sua prisão e detalhes de sua obra e de seus últimos dias, constam do livro Bocage, o perfil perdido, do pesquisador brasileiro Adelto Gonçalves, que acaba de ser publicad o pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), 18 anos depois da edição portuguesa que saiu pela Editorial Caminho, de Lisboa.
            Como a editora observa na contracapa, Bocage, o perfil perdido é biografia exaustiva e rigorosamente documentada. Já em si controversa, a história de vida do poeta é contextualizada pelos tempos tormentosos nos quais viveu, em que ocorreram a queda do marquês de Pombal, a ação do intendente de Polícia Pina Manique e a campanha do Rossilhão, entre outros fatos importantes. A biografia recua ao avô do poeta, apresenta sua árvore genealógica desde os bisavôs, abrangendo toda a sua vida, a passagem pelo Rio de Janeiro, Ilha de Moçambique e Índia, e sua participação e expulsão da Nova Arcádia.

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Rique Ferrári e a palavra metamorfoseada em tempo | Adelto Gonçalves

Poucos poetas brasileiros talvez tenham sido tão incensados já na segunda idade quanto o gaúcho Rique Ferrári (1985), elogiado que foi por nomes representativos da literatura contemporânea, como Fabrício Carpinejar, Ronaldo Cagiano, Waldemar José Solha, Martha Medeiros e Alexandra Vieira de Almeida, que o apontam como um novo ícone da poesia brasileira. Isso tudo é confirmado pelos versos que constam de Roda-gigante (Guaratinguetá-SP; Editora Penalux, 2020), seu quinto livro, obra que se mostra renovadora na linguagem.             

            Para o autor, seus poemas procuram apresentar “uma normalização das pequenas mortes de nossas vidas”, desmistificando a ideia de que há apenas um ciclo: “em que se nasce, cresce, reproduz e morre; como nos ensinaram quando crianças”. É um tipo de frases filosóficas que lembra a literatura de Clarice Lispector (1920-1977) ou mesmo a de José Saramago (1922-2010). Segundo Ferrári, seu livro “não tenta nem quer impressionar. Quer apenas ser o que é, trazendo seu próprio leque de percepções, despreocupado de que seja bom ou ruim”.

            Para Ronaldo Cagiano, autor do posfácio, o autor “utiliza seus artefatos para alcançar aquilo que de mais dinâmico e comunicador pode e deve deflagar numa obra literária, imbuída em seu compromisso estético e em sua dimensão ética”. Segundo o romancista e crítico literário, Roda-gigante mostra o poeta “em pleno domínio de sua arte”.

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Ademir Demarchi | textos escritos no calor da hora | por Adelto Gonçalves

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            Siri na lata (Santos, Realejo Edições, 2015), livro premiado e selecionado em 2014 para publicação pelo Programa de Apoio Cultural da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Santos, reúne crônicas publicadas pelo poeta e crítico literário Ademir Demarchi, de 2008 a 2015, em revistas e jornais, principalmente no Diário do Norte do Paraná, de Maringá, além de resenhas e textos para orelhas e prefácios de outras obras e uma percuciente entrevista dada pelo autor à jornalista e pesquisadora Márcia Costa, publicada no Jornal da Orla, de Santos, em 17/11/2008.

            O título, expressão muito popular na região litorânea que tenta refletir a situação de desespero em que fica um siri ou um caranguejo preso numa lata antes de ir para a panela, procura refletir a tensão de um trabalho que foi escrito no “calor da hora” diante da obrigatoriedade de produzir semanalmente um texto de cultura que prendesse a atenção do leitor de jornais diários. Como se sabe, este tipo de leitor – cada vez mais raro nestes tempos digitais – geralmente está mais preocupado com as coisas do dia a dia e com aquilo que pode prejudicar a sua vida, em função da parlapatice que tem marcado a ação dos homens públicos. São textos em que autor experimenta a crônica, a ficção, a prosa poética, a resenha e até faz comentários de fundo político.

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Gabriel Nascente ou a libertação da metáfora | por Adelto Gonçalves

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Para marcar uma trajetória literária de mais de meio século, o poeta goiano Gabriel Nascente (1950) lançou, em 2019, Galáxia dos dias, uma caixa com quatro volumes com mais de mil páginas cada um, com poemas de toda uma vida, revisados e até ampliados. Publicada pela Editora Kelps, de Goiânia, a coletânea reúne a obra do poeta em verso e prosa de 1966 até 2019, ao menos aquela publicada em livros, inclusive os primeiros que estavam esgotados e não são encontrados nem mesmo em alfarrábios, ainda que de fora tenham ficado muitos poemas esparsos que saíram em revistas, jornais e antologias.

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Um olhar feminino nos subterrâneos de Lisboa | Jardins Secretos, de Manuela Gonzaga | por Adelto Gonçalves

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Lançado em janeiro de 2001 pela Editora Gótica, de Lisboa, o romance Jardins Secretos, de Manuela Gonzaga (1951), teve uma trajetória brilhante: além de ter sido incluído no plano de ensino da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e da disciplina de Cultura Portuguesa da Universidade de Georgetown, de Washington DC (EUA), agora culmina (se não for ainda mais longe), para além de uma projetada reedição pela Bertrand Editora, com uma tradução para o francês de Laure Elisabeth Collet em edição da Le Poisson Volant, de Paris, seguindo o caminho de Imperatriz Isabel de Portugal, biografia (Bertrand, 2012), que em 2019 foi saiu por aquela editora francesa sob o título Isabelle de Portugal, l´Impératrice. Mais: Jardins Secretos de Lisboa, título que passou a ter depois da segunda edição (2005), também está destinado a integrar aulas numa universidade francesa.

O romance conta a história de Alice, uma mulher fragilizada e fotógrafa desiludida, que conhece Jorge, pessoa de língua ferina e comportamento libertino. A partir daí, começa uma história que a leva a descobrir uma outra cidade dentro de uma Lisboa já conhecida, aquela que é vista apenas de fora, através do olhar de um utente à janela de um elétrico.

Dessa maneira, Alice, uma rapariga que carrega uma história comum, pela mão do amante, vai descobrir uma cidade subterrânea, que esconde por entre os seus monumentos e prédios seculares, bordéis de muito respeito e “jardins secretos”, ou seja, locais de encontros furtivos onde reina a lascívia. Filha de um fotógrafo, que também tivera o seu “jardim secreto”, ou seja, um pequeno estúdio localizado ao Chiado, Alice começa assim a cumprir um percurso iniciático e a descobrir os chamados segredos de Lisboa, que ficam numa região que vai do Chiado à Baixa pombalina, dos Restauradores ao Largo de Camões, passando pelo Cais do Sodré, Terreiro do Paço, Rossio, Praça da Alegria, Intendente, Avenida Almirante Reis, Arroios, até a Alameda e arredores.

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Cesário Verde, precursor do Modernismo – Ricardo Daunt | por Adelto Gonçalves

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O poeta Cesário Verde (1855-1886) teve uma vida breve, mas viveu o suficiente para produzir uma obra que até hoje fascina críticos e leitores de bom gosto. Essa obra, que andou por muito tempo dispersa, agora pode ser encontrada em um só livro por iniciativa de um professor, crítico literário, poeta, romancista e contista brasileiro, Ricardo Daunt, autor de Obra Poética Integral de Cesário Verde, publicada em Portugal em 2013 pela Dinalivro, de Lisboa, depois de ter sido lançada no Brasil em 2006 pela Landy Editora, de São Paulo, em edição (hoje esgotada) que teve o apoio do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.
Profundo conhecedor da obra do poeta, Daunt é autor da tese de doutoramento “Cesário Verde: um trapeiro nos caminhos do mundo”, defendida em 1992 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), trabalho revisto em 1993, com um novo título: “Cesário Verde: um poeta no meio-fio do paraíso (estudo literário)”. Ao reunir a produção poética (na íntegra e sem falhas) de Cesário Verde, Daunt preparou também uma tábua cronológica que procura reconstituir o que teria sido a vida do poeta, ao mesmo tempo em que assinala os principais fatos acontecidos em Portugal e no mundo durante os 31 anos de sua curta existência.
Do livro constam ainda cartas pessoais escritas pelo jovem poeta a amigos e outras comerciais do tempo em que trabalhava na loja de ferragens do pai, que estava situada à Rua dos Fanqueiros, na Baixa Pombalina, em Lisboa, e, mais tarde, a partir de 1874, numa propriedade rural da família em Linda-a-Pastora. É de se ressaltar que da biografia do poeta já se havia ocupado o bibliófilo João Pinto de Figueiredo (1917-1984), autor de Álbum de Cesário Verde (1978), com fotografias e cartas inéditas do poeta, e A vida de Cesário Verde (1981).
Ricardo Daunt, na apresentação que escreveu para a própria obra, observa que a produção poética de Cesário Verde antecipa Henri Bergson (1859-1941) e Edmund Husserl (1859-1938), “pois toda ela se fundamenta na bipolarização da vivência intencional, e que no entanto também se encontra questionada pelo caráter transrealista do poeta que almeja a transcendência, a dimensão do absoluto”. Em seguida, observa que Cesário Verde, à maneira do individualismo de Friedrich Nietzche (1844-1900), formula um solitário herói andarilho, “testemunha de um mundo em transformação radical”, ao lado de um humanitarismo proudhonista que o leva “a atentar para as questões contingenciadas pela condição imanente”.

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O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo | Adelto Gonçalves

Uma nova interpretação da história de São Paulo

SÃO PAULO – Quem quiser conhecer uma nova interpretação da história do Brasil e especialmente da terra paulista não pode deixar de ler O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo, do professor, jornalista e historiador Adelto Gonçalves, que revisa o século XVIII e corrige equívocos publicados em outros livros por falta de pesquisa em arquivos. O trabalho desenvolvido por Adelto Gonçalves consiste em uma análise dos anos de 1788 a 1797, período de governo de d. Bernardo José Maria da Silveira e Lorena (1756-1818), mostrando como a capitania de São Paulo sempre teve um papel de grande importância na construção do Brasil, especialmente em razão de sua localização estrategicamente favorável.

“Adelto Gonçalves substancialmente enriquece a nossa compreensão da história e do desenvolvimento de São Paulo durante o fim do século XVIII. Este trabalho, de sólida base em documentos históricos e pesquisas de arquivo, reflete a formidável jornada de Adelto como historiador de Portugal e Brasil”, escreve no prefácio o historiador britânico e ex-diretor do Programa de Estudos Brasileiros do Centro David Rockfeller da Universidade Harvard, de Massachussetts (EUA), Kenneth Maxwell, doutor em História pela Universidade Princeton (EUA). E acrescenta: “Esta obra é, em sua totalidade, não só uma rica análise do governo de Bernardo Lorena, mas um estudo que abre muitas linhas de investigação e formula muitos problemas novos, o que deveria ser a tarefa de todo bom historiador. Para a história de São Paulo no século XVIII tardio não há guia melhor”, garante.

Já o historiador Carlos Guilherme Mota, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), diz, no texto de apresentação (“orelhas), que este livro “se distancia de abordagens mais recentes beneficiadas por publicidade apressada e aplaudida pela imprensa”. E observa: “Em patamar mais alto, Adelto Gonçalves aprofunda sua análise da vida paulistana no período colonial com inusual rigor, alargando, porém, suas balizas cronológicas, sem os modismos e generalizações muito comuns em certa historiografia que trafega na superfície dos acontecimentos, marcada pela busca do pitoresco”. Para Mota, trata-se de “um estudo bem estruturado e inovador, baseado em fontes documentais sólidas e, vale registrar, bem escrito”.

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Nova obra de Adelto Gonçalves refaz a história de São Paulo | Rivaldo Chinem

O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo

SÃO PAULO – Foram raros os livros de História do Brasil que chegaram às livrarias tão bem recomendados quanto O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797, de Adelto Gonçalves, publicado ao final de 2019 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp). Afinal, o prefácio foi escrito pelo historiador britânico Kenneth Maxwell, professor (aposentado) da Universidade de Harvard e autor de A Devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal – 1750-1808 (1977), enquanto o texto de apresentação coube ao historiad or Carlos Guilherme Mota, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP).
Adelto Gonçalves, 68 anos, é jornalista desde 1972, quando começou a trabalhar no extinto jornal Cidade de Santos, do grupo Folhas. Tem passagens pelos jornais A Tribuna, de Santos, O Estado de S. Paulo e Folha da Tarde e pelas editoras Abril e Globo.

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Letras del Ecuador | Ensaios que valem para sempre | Adelto Gonçalves

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Letras del Ecuador, revista de literatura lançada pela Casa de la Cultura Ecuatoriana Benjamín Carrión (CCE), de Quito, em abril de 1945, criou fama em toda a América Latina pela excepcional qualidade de seus artigos e ensaios. Em 74 anos de existência, a publicação, que teve anunciada sua última aparição em meados de 2012, com edição comemorativa por ter chegado ao seu número 200, ressurgiu em abril de 2015, em seu formato original, tablóide, para seguir ideia pioneira de seu fundador, Benjamin Carrión (1897-1979), escritor, diplomata, político, professor da Universidade Central do Equador, ex-ministro da Educação e promotor cultural, considerado o grande suscitador da cultura de seu país. Trata-se de uma revista que continua a brindar os seus refinados leitores com textos que surpreendem por suas reflexões no campo das Ciências Humanas, com temáticas que nunca envelhecem.

Para marcar essa trajetória que segue firme, a Casa de la Cultura Ecuatoriana Benjamín Carrión vem lançando também volumes que resgatam a presença da publicação em mais de sete décadas de produção literária e reúnem obras publicadas nos cem primeiros números da revista Letras del Ecuador. Em 2010, saiu o volume de número 3 que traz ensaios que vieram à luz entre dezembro de 1948 e maio de 1951 nos números de 39 a 67 da revista.

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‘ViceVersa’: diálogo literário entre Brasil e Equador | Adelto Gonçalves

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        Lançada em novembro de 2013 para tentar encurtar a distância que separa a literatura brasileira da do Equador (e, por extensão, dos demais países de hispano-americanos), a ViceVersa Revista Literária, mantida pela Embaixada do Brasil em Quito, com o apoio do Instituto Brasileiro-Equatoriano de Cultura (Ibec), chegou ao seu terceiro número em agosto de 2018, com uma edição dedicada ao escritor brasileiro Dalton Trevisan (1925), hoje o maior contista vivo da Língua Portuguesa, Prêmio Camões de 2012 e Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras de 2012.

Como observou o diplomata Carlos Alfredo Lazary Teixeira, embaixador em Quito à época, na apresentação que escreveu para este número, tanto o Brasil publica poucos autores equatorianos como são raros os escritores brasileiros publicados no Equador. Por isso, ViceVersa surgiu como uma iniciativa que procura fomentar esse diálogo, pois, com os 13 autores publicados nesta edição, já são 37 os escritores conhecidos ou revisitados pelos leitores do Brasil e do Equador nas três edições: 18 equatorianos e 19 brasileiros, todos contistas.

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Um romance da modernidade à brasileira | por Adelto Gonçalves | Entre facas, algodão | João Almino

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        Para se conhecer a alma do Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, é fundamental ler a obra de Machado de Assis (1839-1908). Mas, com certeza, daqui a um século, para se conhecer a alma de Brasília, imprescindível será conhecer a obra do escritor João Almino (1950), que acaba de dar à luz Entre facas, algodão (Rio de Janeiro, Editora Record, 2018), o seu sétimo romance que tem a nova capital federal como um de seus cenários.

Com quase 60 anos de existência, Brasília precisava de um romancista que a explicasse, expondo sua vulgaridade e os sonhos e frustrações de seus moradores. E João Almino assumiu-se como seu intérprete, construindo um painel romanesco contemporâneo que colocou a capital do País no mapa da prosa literária brasileira, como bem observou o romancista, contista e ensaísta Cristóvão Tezza na apresentação que escreveu para este livro.

Escrito em forma de diário, este romance conta as vicissitudes da vida de um advogado, de 70 anos, que, vivendo em Taguatinga, região administrativa do distrito federal, onde fez a sua vida, separa-se da mulher e decide reencontrar as suas raízes, retornando a uma pequena fazenda nas proximidades de Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde passara a infância.

Decidido a plantar algodão e viver dessa atividade, o retorno ao passado carrega também uma frustração – uma história de amor mal resolvida e simbolizada por um fio de cabelo guardado há muitos anos numa caixa de fósforo – e um sentimento de vingança, já que, quando menino, soubera que aquele que então supunha ser seu pai havia sido assassinado. Volta, então, com a intenção de acertar contas e honrar o nome do pai.

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Um diálogo com a Literatura na História | Adelto Gonçalves

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        O significado de uma obra literária não corresponde à intenção do criador, pois ela tem vida própria e seu sentido pode ser acrescido à medida que é avaliada por leitores de diferentes épocas. Essa definição consta de “Conceito e divisão da Teoria da Literatura”, primeiro capítulo do livro Teoria da Literatura “Revisitada” (Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 2005), das professoras Magaly Trindade Gonçalves (1941-2015) e Zina C. Bellodi, e constitui um exemplo perfeito da qualidade das ideias que o estudioso de Literatura irá encontrar nesta obra, fundamental desde a sua publicação para quem quer se aventurar na arte (pouco compensatória em termos financeiros) de escrever resenhas e ensaios.

Na verdade, o livro traça, de modo geral, o percurso das ideias sobre a Literatura ao longo da História, trazendo à tona as mais diversas concepções do literário, que, embora distantes no tempo e no espaço, vivem quase sempre em permanente diálogo, já que não só as ideias sobre o literário mudam, mas mudam também as marcas essenciais da própria criação literária.

Discípulas do poeta, crítico, tradutor e novelista português Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), perseguido pelo salazarismo (1933-1974) e exilado no Brasil a partir de 1954, professor  da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), campus de Araraquara, interior de São Paulo, a partir de 1962, as professoras Magaly e Zina mostram neste trabalho já considerado clássico como o Realismo do século XIX e, mais particularmente, o Naturalismo trazem a marca do interesse científico em explicitar o mundo e o homem. E acrescentam: “E o romance prestava-se magnificamente ao trabalho com as novas descobertas científicas, já que ele se volta, normalmente, para tramas que ocorrem em grupos humanos, de maneira aparentemente natural”.

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Palestras em Quito | Uma leitura brasileira de Pessoa, Bocage e Gonzaga | Adelto Gonçalves

Em Quito, pesquisador Adelto Gonçalves discorre sobre a vida e a obra dos poetas em conferências para estudantes e acadêmicos

QUITO – A convite da Embaixada do Brasil no Equador, o jornalista e escritor Adelto Gonçalves fez na segunda semana de junho duas apresentações de sua obra literária em palestras dirigidas ao público estudantil e acadêmico de Quito. Sábado, dia 8, no Instituto Brasileiro-Equatoriano de Cultura (Ibec), o pesquisador apresentou a um público formado por mais de 50 estudantes equatorianos de Português um alentado trabalho sobre sua trajetória literária que inclui nove livros publicados e uma nova obra a sair ainda neste ano pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

Na segunda-feira, à noite, dia 11, participou, de uma conversa no Centro Cultural Benjamin Carrión, com o escritor Rogério Pereira, ex-diretor da Biblioteca Pública do Paraná e editor do jornal mensal literário Rascunho, que contou com a moderação do poeta Santiago Estrella, jornalista do diário El Mercurio. Os dois encontros contaram com a presença e a participação do embaixador Joao Almino, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.  Gonçalves fez uma leitura brasileira da obra e da vida dos poetas Fernando Pessoa (1888-1935), Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). Já Rogério Pereira abordou a relação entre literatura e jornalismo como espaços confluentes.

De Fernando Pessoa, Gonçalves destacou que o ensaio “O ideal político de Fernando Pessoa”, que consta de seu livro Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997) e foi publicado originalmente em Estudos sobre Fernando Pessoa (Rio de Janeiro, Fundação Cultural Brasil Portugal, 1986), teve uma trajetória internacional interessante, pois seria lido na Biblioteca Nacional de Lisboa pelo ensaísta Brunelo Natale De Cusatis, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Perugia, e citado no livro Fernando Pessoa: Politica i Profezia: Apuntes y Frammenti 1910-1935 (Roma, Antonio Pelicanti Editore, 1996), do qual em 2018 saiu uma segunda edição.

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Para se conhecer o pensamento político de Fernando Pessoa | Adelto Gonçalves

                                                         I

Depois de 22 anos, Politica e Profezia: Appunti e frammenti 1910-1935 (Roma, Antonio Pellicani Editore, 1996), que reúne textos políticos do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), traduzidos e anotados por Brunello Natale De Cusatis, professor de Língua Portuguesa e Literaturas Portuguesa e Brasileira da Universidade de Perugia, hoje aposentado, ganhou em 2018 pela Edizioni Bietti, de Milão, uma segunda edição, revista e aumentada, constituindo o 26º volume da coleção l´Archeometro. Na introdução que preparou para esta edição, entre outras argutas observações, De Cusatis recupera a polêmica travada à época da primeira edição com o escritor italiano Antonio Tabucchi (1943-2012), autor de Afirma Pereira (1994), na qual também teve participação (involuntária) este articulista.

Como se sabe, à época, o fato de ter mostrado que o pensamento político de Fernando Pessoa passava longe dos hostes esquerdistas, embora não se pudesse qualifica-lo de fascista, aparentemente, desagradou Tabucchi, antigo professor de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Siena, diretor do Instituto Italiano de Cultura em Lisboa e tradutor de obras de Fernando Pessoa para o italiano. E o que se seguiu foi uma série de ataques pela imprensa, especialmente um artigo publicado no jornal Corriere della Sera, de Milão, em 31 de maio de 2001.

Como escreveu o crítico José Almeida, no periódico impresso O Diabo, de Lisboa, na edição de 15 de janeiro de 2019, a polêmica mostrou, “de um lado, as calúnias, as mentiras e as infâmias de Tabucchi e respectivo séquito, de outro a verdade assente sobre os fatos, a honestidade intelectual e o profundo conhecimento de De Cusatis em relação à obra do modernista português”.

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Nelson Urt: do jornalismo à ficção | Adelto Gonçalves

                                                    I

Depois de uma carreira de três décadas em grandes veículos de comunicação de São Paulo, como O Estado de S.Paulo, revista Placar (Editora Abril),  Diário Popular e ESPN Brasil, entre outros, o jornalista Nelson Urt, 65 anos, voltou em 2004 para a sua Ladário natal, antigo distrito e hoje cidade vizinha a Corumbá, no Pantanal do Estado do Mato Grosso do Sul, onde continuou a exercer sua profissão nas redações do Diário Corumbaense e do Correio de Corumbá e como autônomo, além de dedicar-se aos estudos acadêmicos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

A par disso, em fevereiro de 2019, decidiu criar uma editora, a Maria Preta Cartonera, pela qual acaba de lançar Amor e Morte em Tempos de Chumbo, que reúne um conto inédito e crônicas, além de poesias e artigos escritos ao longo dos últimos dez anos. Juntamente com o livro de Urt, a Maria Preta Cartonera lançou Paixão e Morte no Bordel, com contos dos jornalistas e historiadores Luiz Fernando Licetti, Silas de Almeida e Nelson Urt.

O mergulho de Urt na ficção, porém, não deixa de ser um retrato bem acabado de uma realidade vivida por jornalistas e outros intelectuais, de modo geral, na cidade de São Paulo nos anos 60 e 70, durante os tempos de chumbo provocados pelo regime militar (1964-1985). Com um texto enxuto e pacientemente elaborado de quem dedicou os seus melhores anos à escrita de reportagens na área esportiva, o jornalista, agora ficcionista, reconstitui no conto que dá título ao livro as peripécias de Marcus, uma espécie de alter ego, fotógrafo do Diário da Noite, periódico do empresário Assis Chateaubriand (1892-1968), dono do conglomerado Diários Associados, magnata das comunicações entre o final de 1930 e o começo da década de 1960.

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Paulina Chiziane, autora que toda mulher deveria Adelto Gonçalves

                                                    I

A exemplo do que já fizera em Dicionário de personagens da obra de José Saramago (Blumenau-SC: Editora da Fundação Universidade Regional de Blumenau – EdiFurb, 2012), levantamento de 354 protagonistas que perpassam os romances e peças teatrais do Prêmio Nobel de Literatura de 1998,  feito a partir de pesquisa que durou 15 anos e contou com a colaboração de mais de oito dezenas de seus alunos, a professora, contista, ensaísta e crítica Salma Ferraz acaba de lançar Dicionário de personagens da obra de Paulina Chiziane (São Paulo: Todas as Musas, 2019), publicado com recursos do Ministério da Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura.

A obra é resultado de um trabalho coletivo que durou cinco anos e foi realizado por uma equipe coordenada pela professora Salma Ferraz, incluindo 53 alunos de graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o auxílio de duas alunas da Pós-Graduação em Literatura Brasileira da mesma UFSC, Patrícia Leonor Martins e Márcia Mendonça Alves Vieira. Como diz na apresentação que escreveu para este livro Tania Macedo, professora titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e diretora do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP), este trabalho constitui uma espécie de “mapa” da escrita da autora moçambicana Paulina Chiziane (1955) que vai muito além daquilo que o título da obra deixa entrever.

Além de relacionar personagens que aparecem em vários livros de Paulina, o Dicionário traz uma fortuna crítica e uma biografia da autora, bem como duas entrevistas concedidas por ela para órgãos de imprensa do Brasil e do exterior e dois ensaios de especialistas. Um dos responsáveis por um desses ensaios é este articulista, autor de “O feminismo negro de Paulina Chiziane”, originalmente publicado em Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana, de Rita Chaves e Tania Macedo, organizadoras (Maputo: Marimbique Conteúdos e Publicações, 2012, pp. 33-41). O outro ensaio é “Adão e Eva na obra de Paulina Chiziane”, de António Manuel Ferreira, professor associado com agregação do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. Ao final, o livro traz ainda uma fortuna crítica de textos acadêmicos dedicados à obra da autora moçambicana.

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Efemérides Cariocas | Para se conhecer a história do Rio de Janeiro de Neusa Fernandes e Olinio Gomes P. Coelho | por Adelto Gonçalves

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O jornalista Elio Gaspari, autor de cinco inolvidáveis livros sobre o regime militar (1964-1985), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, dia 30 de janeiro de 2019, observou que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso gosta de relembrar uma cena na qual o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) discutia o tamanho de algumas figuras do Império e ensinou: “Doutora, eles eram atrasados. Nós não temos conservadores no Brasil. Nós temos gente atrasada”. Em seguida, o jornalista fez uma relação sucinta de males causados ao Brasil e à população brasileira por atitudes e decisões tomadas por gente despreparada e inculta, ou seja, “atrasada”, que chegou ao poder tanto pela força das armas como por acordo entre elites ou pelo voto popular.
Para ter uma ideia dos males que esse tipo de “gente atrasada” já causou à cidade do Rio de Janeiro, o antigo Distrito Federal, o leitor não pode deixar de ler EfeméridesCariocas (Rio de Janeiro, edição dos autores, 2016), dos historiadores Neusa Fernandes e Olinio Gomes P.  Coelho.  Ali pode constatar um dos maiores atentados à inteligência e à cultura nacional que foi a demolição a 5 de janeiro de 1976 do Palácio Monroe, projetado para representar o Brasil na Exposição Internacional de Saint Louis, nos Estados Unidos, e inaugurado em 30 de abril de 1904.

O edifício abrigou o Ministério de Viação e Obras Públicas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, a partir de 1915, até a sua mudança para Brasília, em 1960. Apesar dos protestos da população e de entidades ligadas à engenharia e à arquitetura, o ditador da época, Ernesto Geisel (1907-1996), determinou ao ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen (1935-1997), a demolição do palácio, sem quaisquer justificativas técnicas e culturais. O local seria revitalizado com a instalação de um antigo chafariz da cidade e a construção de uma garagem subterrânea (p.24-25).

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A arte do azulejo em Portugal e no Brasil | Clara Emília Sanches Monteiro de Barros Malhano e Hamilton Botelho Malhano | por Adelto Gonçalves

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Considerada arte menor ou apenas decorativa, a azulejaria ganha agora foro de expressão artística com o estudo Desenhadores & Azulejeiros – Ensino e Aprendizagem, Arquitetura e História (Rio de Janeiro, Synergia Editora, 2018), de Clara Emília Sanches Monteiro de Barros Malhano e Hamilton Botelho Malhano (1947-2017), que resgata a história de vida de dois artistas portugueses – José Colaço (1868-1942) e Manuel Félix Igrejas (1928) –, além de analisar o ensino das Belas Artes no Brasil, o que inclui a azulejaria, e a sua relação com a arquitetura neocolonial e modernista. Para tanto, o trabalho, segundo definição dos autores, procura entender as “técnicas artesanais, manufatureiras e industriais da produção cerâmica azulejeira luso-brasileira em relação a outras produções de azulejos enquanto arte de caráter internacional”.

Nascido no Tânger, Marrocos, Colaço, de origem aristocrata, com formação acadêmica, pensou em emigrar para o Brasil e chegou a adquirir bilhete de viagem, mas deixou de fazê-lo porque a morte o alcançou antes, já na idade madura. Deixou atrás de si uma série de trabalhos, dos quais os mais famosos são os painéis de azulejos que decoram o grande átrio da Estação de São Bento, no Porto, desde 1915, e até hoje encantam os passageiros que por lá passam pela primeira vez ou não, e a parede de uma sala na Casa do Alentejo, próxima aos Restauradores, em Lisboa, de 1918.  No Brasil, porém, é mais conhecido pelos painéis da fachada principal do Estádio de São Januário, do Clube de Regatas Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, que produziu na década de 1930.

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Contos que exalam perfume | Helio Brasil | por Adelto Gonçalves

I
Depois de ambientar os seus dois primeiros romances – A última adolescência (Bom Texto, 2004) e Ladeira do Tempo-Foi (Synergia Editora, 2017) – no tradicional bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, o escritor Helio Brasil retorna aos contos, gênero em que fez sua estreia tardia na literatura, aos 64 anos de idade, com a publicação de O anjo de bronze e outros contos (Oficina do Livro, 1994). Desta vez, em O perfume que roubam de ti… e outras histórias (Synergia Editora, 2018), título assumidamente inspirado nos versos da famosa canção “As rosas não falam”, dos compositores cariocas Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), e Guilherme de Brito (1922-2006), reúne 26 contos que retratam personagens de diversos momentos da vida brasileira, desde o Brasil Colônia até os dias atuais.
Aparentemente, estas histórias são o resultado de uma vida inteira dedicada ao vício da literatura, amor escondido a sete chaves até que, já na idade madura, o autor, arquiteto de talento reconhecido por suas obras no Rio de Janeiro e também celebrado como professor universitário, resolveu deixar o excesso de modéstia de lado e transformar-se também em escritor. Ganhou a literatura de Língua Portuguesa, pois, desde então, o autor passou a fazer parte de um seleto grupo de escritores cujas carreiras começaram tardiamente, o que não os impediu de alcançar a fama e o reconhecimento literário, de que bons exemplos são José Saramago (1922-2010), Pedro Nava (1903-1984) e Cora Coralina (1889-1985).
Agora, Helio Brasil decidiu revirar o baú para dar a público histórias inéditas que reúnem todos os sentimentos humanos, os bons e os maus, como amor, violência, solidão, preconceito, heroísmo, conspirações, desejo, fé, traição, intrigas, sedução, mistério e outros. Ao mesmo tempo, reedita alguns contos que já haviam sido publicados anteriormente em coletâneas.

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Um raio-X da Inquisição em Minas Gerais | Neusa Fernandes | por Adelto Gonçalves

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Como tantas manifestações sociais registradas na História do Brasil que sofreram um certo abrandamento ao longo dos tempos, também o antissemitismo foi amenizado e começa agora a passar por um revisionismo graças a pesquisas nos arquivos brasileiros e portugueses, que deixam claro que a Inquisição, por intermédio de seus comissários, familiares, padres e bispos, perseguiu, torturou e queimou muitos cristãos-novos, especialmente os mais abastados. É o que mostra a historiadora Neusa Fernandes em A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII (Rio de Janeiro, Mauad Editora, 2014) e A Inquisição em Minas Gerais: processos singulares (Rio de Janeiro, Mauad Editora, 2016).

Em suas pesquisas, a professora valeu-se principalmente dos processos inquisitoriais que estão no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, que revelam que os cristãos-novos alcançados pelas malhas da Inquisição, na maioria, estavam envolvidos no comércio do ouro e diamantes e de escravos, ainda que se

dedicassem a outras práticas comerciais.  Através das redes comerciais espalhadas por Portugal, Brasil e várias regiões da África, esses cristãos-novos alcançaram notoriedade social e até mesmo poder em suas comunidades, o que lhes garantia a segurança necessária para que continuassem a desenvolver as práticas judaicas, de que nunca se desvinculariam.

Mas, como mostra a historiadora, essas práticas só começaram a incomodar as classes poderosas a partir do momento em que as atividades comerciais desenvolvidas por esses cristãos-novos passaram a subverter o projeto metropolitano que queria a colônia voltada para o comércio exterior, ou seja, para o fornecimento de matérias-primas para os grandes comerciantes de Portugal, que, como se sabe, eram também dependentes daqueles círculos europeus mais fortes, especialmente ingleses, holandeses, franceses e italianos. Aliás, como registrou em 1755, à época do terremoto, o insuspeito ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o marquês de Pombal, no século XVIII, “Portugal estava sem poder e sem força, e todos os seus movimentos eram regulados pelos desejos da Inglaterra” (vol. 2, pag.239).

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Em busca da transcendência na poesia de João Cabral | por Adelto Gonçalves

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Fazer uma leitura teológica da poesia de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), autor consagrado pelo poema dramático “Morte e vida severina”, foi a que se propôs o jornalista, pesquisador e professor Waldecy Tenório em sua tese de doutoramento “A bailadora andaluza: a lucidez, a esperança e o sagrado na poesia de João Cabral”,  defendida em 1995 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do professor Franklin Leopoldo e Silva.

O ensaio foi publicado no ano seguinte pela Ateliê Editorial, de São Paulo, com o título A bailadora andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral, com prefácio do professor João Alexandre Barbosa (1937-2006) e, se vivêssemos num país menos inculto, certamente, já teria tido várias reedições. Mas, hoje, talvez por essa mesma lamentável razão, ainda se pode adquirir pela Internet um exemplar da primeira edição por módico preço.

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A Noite é dos Pássaros | Edmar Monteiro Filho | por Adelto Gonçalves

Queiramos ou não admiti-lo, somos uma Nação fundada sobre a escravidão, e não apenas dos povos africanos, oficialmente extinta há pouco mais de cem anos, mas também dos povos que aqui viviam antes da chegada da esquadra de Cabral, em 1500. De fato, não estamos sozinhos num concerto mundial em que a violência tem origem nas diferenças não apenas de cor da pele como também de crença, de origem, de convicção política e tantas outras. Mas sofremos especialmente as consequências de um feixe de misérias ocasionadas pelo tratamento de seres humanos como bestas durante centenas de anos. Ainda hoje, há os escravos com carteira assinada, os escravos sem segurança, sem garantias, os escravos humilhados pela necessidade absoluta.

Aquele que domina e escraviza entende o outro como inferior, criatura vinculada ao conceito de utilidade, seja para realizar as tarefas que o dominador não deseja ou não está apto a realizar, seja para dar prazer ou simplesmente alimentar a vaidade de deter a posse de outro ser humano – ainda que, no mais das vezes, tal domínio venha justificado pela negação da humanidade do escravizado. Assim, a escravidão nasce da diferença que se autoriza a suprimir a dignidade ao outro, na medida em lhe retira não apenas a liberdade, mas a autodeterminação.

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Poesias eróticas de Bocage: as falsas e as verdadeiras | por Adelto Gonçalves

I

Durante largos anos, a imagem de Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) que ficaria para a posteridade seria a de um poeta erótico, pornográfico e chocarreiro. Nos últimos anos, porém, graças ao trabalho de estudiosos – inclusive, deste articulista –, essa imagem tem sido substituída por um perfil menos caricaturesco. Essa revisão ganha agora ainda mais força com a publicação de Obras completas de Bocage: Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas (Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2017), com organização e notas do pesquisador setubalense Daniel Pires, que reúne as composições de caráter fescenino do poeta, as de autoria duvidosa e as indevidamente atribuídas a ele, acompanhadas por estudo introdutório fundamental para uma melhor compreensão da dimensão do homem, da obra e do seu contexto.

Aliás, as Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas podem ser consideradas como o sétimo volume da obra completa de Bocage, depois de terem sido publicadas inicialmente de maneira anônima em forma de folheto no início do século XIX. Mas só foram, pela primeira vez integradas na obra completa de Bocage em 2004, na edição preparada pelo mesmo Daniel Pires para as Edições Caixotim, do Porto.

Nesta nova edição, porém, os poemas foram divididos por Pires em três núcleos: o primeiro contempla aqueles que são de Bocage, enquanto o segundo reúne aqueles de autoria duvidosa e o terceiro é constituído por peças que não lhe pertencem, mas que lhe foram atribuídas por editores pouco responsáveis ou ainda forjadas por seus inimigos, entre eles Belchior Curvo Semedo (1766-1838) e José Agostinho de Macedo (1761-1831), inclusive a famosa Ribeirada: poema em um só canto, de autor anônimo.

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O realismo mágico nos contos de Lourenço Cazarré | por Adelto Gonçalves

                                                           I

Após uma espera de mais de três décadas, estão de volta os contos de Enfeitiçados todos nós (Florianópolis, Editora Insular, 2018), livro do jornalista, contista e romancista Lourenço Cazarré (1953), lançado em 1984 pela Editora Melhoramentos, de São Paulo, depois que seu autor havia conquistado pela segunda vez o Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, o mais importante concurso literário daquela época. Mais: esta segunda edição traz outros três contos, publicados pela primeira vez em 1986 em jornais e revistas, que, encorpados aos seis da edição original, constituem uma bela mostra do trabalho de Cazarré, um dos mais talentososeoriginais contistas de sua geração.

Como observa o experiente jornalista e escritor Geraldo Hasse no prólogo que escreveu para este livro, Cazarré não “inventa” personagens nem enredos – no máximo, glamouriza-os, ao humanizá-los, acrescente-se –, mas “apenas reprocessa histórias reais”. É o que se pode constatar no conto “O expedicionário” em que o autor coloca a personagem a falar na linguagem coloquial dos gaúchos para contar a sua própria história de soldado brasileiro na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), agora transformado num homem próximo aos 60 anos de idade, precocemente envelhecido, abandonado por todos e pela chamada pátria:

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Uma vida consagrada ao ensino das Letras | Massaud Moisés | por Adelto Gonçalves

I

Duvidar de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C) é sempre necessário, ainda que seja, para mais tarde, concordar com ele. Essa frase ouvi em 1994 do professor Massaud Moisés (1928-2018), quando, ao lhe fazer um relatório verbal de minhas pesquisas nos arquivos de Portugal sobre a vida e a obra de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), mostrei-lhe a fotocópia de um documento que consta do Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, que provava que o lisboeta Alexandre Roberto Mascarenhas morrera em 1793, no mesmo ano do casamento de sua filha com o poeta.

Portanto, ao casar com Juliana de Sousa Mascarenhas, uma jovem analfabeta de 19 anos de idade, Gonzaga não teria tido a oportunidade de ajudar o sogro a aumentar sua fortuna, como afiançara o professor e filólogo português M. Rodrigues Lapa (1897-1989), para quem o poeta casara “com a herdeira da casa mais opulenta de Moçambique em negócios de escravatura” e ainda consagrara “as horas vagas ao comércio de escravos”.

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Erudição e sensualidade na poesia de Ana Margarida Chora | por Adelto Gonçalves

                                                          I

O professor Massaud Moisés (1928-2018), em Dicionário de Termos Literários (São Paulo, Cultrix, 2004), diz que “a poesia corresponderia à expressão do “eu” por intermédio de metáforas, ou vocábulos polivalentes: o “eu” do poeta, matriz do seu comportamento como artista da palavra, volta-se para si próprio, adota não só a categoria “sujeito” que lhe é inerente, mas também a de “objeto; portanto, introverte-se, auto-analisa-se, faz-se espetáculo e espectador ao mesmo tempo, como se perante um espelho” (pag. 360).

Pena que o professor, que foi orientador deste articulista em seu doutoramento em Letras, tenha resolvido subir para o andar de cima, antes de ter tido acesso a este Insónia Lúbrica – resposta a uma noite inacabada (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2017), terceiro livro de poesia da poeta portuguesa Ana Margarida Chora, em que a autora se expressa não apenas através de um “eu” feminino, mas também de um “tu” masculino. De fato, os poemas deste livro ajustam-se à medida ao que o crítico afirma em sua defesa teórica do que significa a poesia, ao observar que o “eu” vai ao encontro de si próprio ao buscar o “não-eu”, projetando-se para fora, fazendo uma “projeção”, inclusive no sentido freudiano.

No caso de Ana Margarida Chora, porém, como bem constatou a autora do prefácio, a professora Natália Maria Lopes Nunes, o sujeito poético constitui “uma figura ancestral que cruza todas as épocas, na busca de um interlocutor distante e, por vezes, ausente”. Diz mais: “(…) através do imaginário do “eu”, reflete-se um “tu”, a dualidade do ser, mulher/homem, feminino/masculino, procurando no amor uma harmonia cósmica que nem sempre é atingida através da fusão e da intimidade, criando, por vezes, uma certa ambiguidade de sentido”.

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Sombras da infância na poesia de Moura Campos | por Adelto Gonçalves

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O poeta e crítico espanhol Carlos Bousoño (1923-2015), em Teoría de la Expresión Poética (Madri, Gredos, 1970), observa que a poesia deve passar ao leitor, por meio de palavras, um conhecimento de índole muito especial, ou seja, um conteúdo psíquico que na vida real se oferece como individual, como um todo particular, síntese intuitiva, única, daquilo que passa pela alma do autor. Isso não significa que a poesia deve ter rimas, ritmo, melopeia ou versos, pois nada disso a caracteriza. Caso contrário, sempre que estivéssemos diante de um texto em verso teríamos poesia, como observa o professor Massaud Moisés (1928-2018) em Dicionário de Termos Literários (São Paulo, Cultrix, 2005). E não é assim.

Lembra-se isto a propósito do livro do poeta Francisco Moura Campos (1942-2017), Refúgios do Tempo (Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2016), que reúne reminiscências do autor, ou seja, lembranças de sua vida em duas cidades do Interior do Estado de São Paulo (Botucatu e São Carlos) e na capital paulista, que marcam as três partes em que está dividido o volume. O lançamento deste livro ocorreu em novembro de 2016 e, a 14 de outubro de 2017, Moura Campos faleceu, vitimado por leucemia.

Nos 40 poemas que compõem a primeira parte do livro estão presentes reminiscências da infância e adolescência do autor em sua cidade natal, Botucatu, como as ruas, a casa da avó, os bares, as pescarias, os footings aos domingos à noite, especialmente aqueles que se passavam na Rua Amando, os jogos de futebol, em especial os da Ferroviária, o armazém de secos e molhados, uma viagem a São Paulo a fim de ver um São Paulo x Corinthians no estádio do Pacaembu e até uma homenagem ao professor que lhe ensinou a escrever e despertou sua vocação para a literatura.

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A Mulher, o Homem e o Cão | Um romance das profundezas da floresta | Nicodemos Sena por Adelto Gonçalves

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Terceiro romance de Nicodemos Sena (1958), A Mulher, o Homem e o Cão (Taubaté-SP, Editora LetraSelvagem, 2009) não só confirma o talento do seu autor como, ao lado de seus livros anteriores, é, desde a sua publicação, obra de referência para o estudo temático da vida das populações marginalizadas da Amazônia (indígenas e caboclos) na Literatura Brasileira. Por seu estilo ímpar, o autor já foi comparado a grandes ficcionistas brasileiros, como Graciliano Ramos (1892-1953), Mário de Andrade (1893-1945), Érico Veríssimo (1905-1975), Guimarães Rosa (1908-1967) e João Ubaldo Ribeir o (1941-2014), e a importantes ficcionistas latino-americanos, como o paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005) e o peruano José María Arguedas (1911-1969).

A exemplo do que fez Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, com a figura de Riobaldo, o personagem-narrador de A Mulher, o Homem e o Cãofala diante de um suposto ouvinte sobre as suas vivências no meio da floresta amazônica, discorrendo histórias fantásticas, com ele ocorridas e com sua família, que estão perpassadas por mitos regionais e bíblicos.  Em outros momentos, o narrador-personagem, cujo nome não se conhece, reproduz para o seu suposto ouvinte o que a esposa lhe contara sobre um diálogo que tivera com um homem desconhecido, que seria o “coisa ruim”, uma criatura fantástica e camaleônica que acaba por gerar os conflitos quer perpassam o romance.

Na verdade, como diz o protagonista-narrador logo no início da narrativa, ele, a mulher e seu menino (que, como as crianças-personagens de Graciliano Ramos em Vidas Secas, não tem nome) –  e também o cão que apareceu depois – viveram uma vida feliz em meio aos mistérios da selva, até que algo de estranho aconteceu, ou seja, o aparecimento de uma criatura diabólica, de voz doce e melodiosa, que teria atraído para a água do rio a sua esposa com propostas soezes.

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José Saramago e suas personagens | Adelto Gonçalves

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Um levantamento de 354 protagonistas e figurantes – praticamente, todos – que perpassam os romances e peças teatrais do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 é o que o leitor vai encontrar em Dicionário de Personagens da Obra de José Saramago (Blumenau-SC: Editora da Fundação Universidade Regional de Blumenau – EdiFurb, 2012), da professora Salma Ferraz, resultado de uma pesquisa que durou mais de 15 anos e contou com a colaboração de mais de oito dezenas de seus alunos.

Obra aberta, sem a pretensão de se tornar definitiva ou completa, o livro, além de homenagear Saramago, segundo a autora, tem o objetivo de não só catalogar a imensa galeria de personagens saramaguianos como abrir um debate e até mesmo aceitar novos verbetes para uma futura segunda edição. Mas, desde já, constitui, sem dúvida, leitura indispensável aos amantes da boa literatura de Saramago.

Da pesquisa, ficaram de fora os contos e crônicas da primeira fase de Saramago, ainda que o romance Terra do Pecado (1947), também da época inicial da trajetória do autor, tenha sido igualmente analisado. Exceção foi aberta para O Conto da Ilha desconhecida (1997), que faz parte da fase madura do escritor. Já o romance Claraboia, embora escrito em 1953, e, portanto, da primeira fase, mas publicado em 2011 pela editora Companhia das Letras, de São Paulo, não foi incluído na pesquisa por se tratar de publicação post mortem.

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Wil Prado: estréia tardia, mas auspiciosa | Adelto Gonçalves

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Escrito em tom coloquial e próximo ao de um diário íntimo, o romance Sob as Sombras da Agonia (Lisboa, Chiado Editora, 2016) marca a estréia no gênero (tardia, mas auspiciosa) do jornalista, contista, cronista e crítico literário Wil Prado (1952). Saudado com entusiasmo por romancistas experientes e consagrados, como Raduan Nassar (Prêmio Camões de 2016) e João Almino, o livro demorou anos para sair à luz e traz flagrantes influências dos anos 70, época em que o boom da ficção latino-americana conquistou corações e mentes da geração de futuros escritores nascida nos anos 50.

Essa constatação é avalizada pelo jornalista e poeta Salomão Sousa na apresentação que escreveu para este livro de seu antigo colega de redação no Correio do Planalto na Brasília daqueles anos, na qual observa que Sob as Sombras da Agonia não se trata de um romance de formação, “mas de crítica social, descendente de Graciliano Ramos e de Dostoiévski e de outros mestres que lidam com o questionamento da realidade”.

O livro sai a uma época propícia porque denuncia o quanto a alta burguesia é capaz de fazer para manter o seu status, manipulando a vida e o futuro dos “humilhados e ofendidos”, na expressão dostoievskiana, desde a utilização das pessoas humildes como mercadorias até o assalto aos cofres públicos para utilizar para fins inconfessáveis recursos provenientes dos impostos pagos pela população e que deveriam ser aplicados na construção de hospitais, escolas, rodovias e outras obras de infraestrutura (sem superfaturamento).

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Uma gota de ternura em meio à miséria | Ivete Carneiro | Adelto Gonçalves

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gota-capa-docxOs jornalistas começam sempre como repórteres, mas são poucos aqueles que se mantém na função até o fim da carreira porque a maioria acaba como editor ou até mesmo editor-chefe, sem contar aqueles que, atraídos pelo mundo dos negócios e da política partidária, aceitam participar do tráfico de influência e passam a ocupar cargos públicos ou assessorar canastrões ligados ao poder. De fato, raros são aqueles que continuam a viver o dia-a-dia das ruas ou a participar do cotidiano das populações marginalizadas e a escrever sobre suas esperanças e desilusões.

Ivete Carneiro, nascida em Versalhes, na França, mas portuguesa de quatro costados, jornalista do Jornal de Notícias, de Lisboa, desde outubro de 1993, constitui um desses raros exemplos, pois se mantém incólume nesse caminho há mais de duas décadas. Licenciada em Comunicação Social na Escola Superior de Jornalismo do Porto em 1994, desde logo fez a sua opção pelos pobres e desvalidos da terra. Em 2004, frequentou o curso de Jornalismo em ambientes hostis e técnicas de primeiros socorros da Centurion Risk Assesment Services, na Inglaterra.

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A história de Pedro e Inês em cordel por Francisco Maciel Silveira | Adelto Gonçalves

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            Quem não conhece a secular história de Pedro e Inês? Provavelmente, as novas gerações não a conheçam muito bem, mas, com certeza, já ouviram a expressão “agora Inês é morta” que equivale a dizer “agora é tarde demais”. Por isso, não custa nada dizer que é possível encontrar essa história em várias obras literárias, desde Fernão Lopes (1385-1459), cronista e guarda-mor da Torre do Tombo de 1418 a 1454, passando pelo poeta Sá de Miranda (1481-1558), até chegar ao grande Luís de Camões (ca.1524-1580).

Trata-se da história da infeliz Inês de Castro (1325-1355), nobre galega que foi para Portugal como aia de dona Constança Manuel, futura esposa de dom Pedro I (1320-1367), de Portugal. Se há uma história de amor marcante na História de Portugal, como a de Romeu e Julieta, tragédia do poeta inglês William Shakespeare (1564-1616), essa é a do amor proibido entre o infante d. Pedro e Inês de Castro.

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O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo (1788-1797) | Adelto Gonçalves

s-apulo - 200Resumo: Este trabalho procura resgatar os nove anos da administração de D. Bernardo José Maria de Lorena e Silveira à frente da capitania de São Paulo (1788-1797), período em que o governador procurou consolidar a economia, incrementando a agricultura, além de abrir caminhos para a circulação da produção de gêneros, especialmente do açúcar, de que a chamada Calçada do Lorena, ao pé da Serra do Mar, em Cubatão, hoje em ruínas, é ainda o melhor exemplo. O governo Lorena, além de atuar em defesa e manutenção dos territórios meridionais e das fronteiras estabelecidas pelo Tratado de El Pardo, de 1761, apesar das poucas forças de que dispunha, destacou-se pela maneira harmoniosa com que procurou desempenhar sua administração, ganhando por isso o apoio das elites da capitania.

Palavras-chave: Brasil – século XVIII – capitania de São Paulo

1.    Introdução

Este trabalho pretende analisar os nove anos do governo Lorena (1788-1797), mostrando a atuação do governador para conciliar os interesses da Metrópole com as reivindicações das lideranças locais que, não raro, viam com reservas os representantes da Coroa. É de lembrar que Lorena recebeu uma capitania mais organizada do que os seus antecessores e soube, sobretudo, aproveitar-se disso para colocá-la numa situação mais favorável em relação às demais da América portuguesa. Em pouco tempo, a capitania paulista ganhou maior importância política e econômica, como prova o papel de destaque que teve na gestação do processo que resultou na separação da colônia do Reino.

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Direito e Justiça | Adelto Gonçalves | por Anderson Braga Horta

adeltoO estudo da história pátria é válido, entre outras razões, pelas implícitas no imperativo do oráculo, que o vai buscar nas palavras do sábio: Nosce te ipsum. Encarar nossas mazelas, mergulhar em suas origens, traçar o seu perfil diacrônico – eis o caminho ideal para compreendê-las, lutar contra elas, transcendê-las.

Na trilha de investigações como as de Stuart B.Schwartz relativas à Bahia dos séculos XVII e XVIII, António Manuel Hespanha (Portugal dos seiscentos), Arno e Maria José Wehling (Rio de Janeiro, de 1751 a 1808), entre outras, Adelto Gonçalves lança uma obra de importância no campo dos estudos histórico-jurídicos entre nós: Direito e Justiça em Terras d’El-Rei na São Paulo Colonial – 1709-1822 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), que enfoca especialmente “as atribuições e funções dos juízes ordinários, vereadores, juízes de fora, provedores, corregedores e ouvidores no período …. por meio da descrição dos casos mais significativos ocorridos à época, contribuindo assim para um diagnóstico (ainda que incompleto) da estrutura judiciária”.

O livro é fruto de pesquisas nos manuscritos da capitania de São Paulo, do Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, via microfilmes depositados no Arquivo do Estado, a par de outros documentos, como as Atas da Câmara Municipal de São Paulo. Mas o tema já pertencia ao âmbito de interesse do autor, que também o é do premiado Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (lembremos que o cantor de Marília era ouvidor em Vila Rica), bem como de Bocage: o Perfil Perdido (o pai do poeta foi juiz de fora e depois ouvidor na Metrópole).

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O mundo dos homens sob o olhar feminino | Adelto Gonçalves

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A história da rivalidade entre dois irmãos é tão velha quanto a Humanidade. A Bíblia nos conta a história de Caim e Abel, os dois filhos de Adão, criados e educados da mesma maneira, mas com caráter e personalidades diferentes. E a de Esaú e Jacó, história dos filhos de Isaque e Rebeca, que inspirou Machado de Assis (1839-1908) a escrever um romance sobre a rivalidade entre irmãos gêmeos, tendo a mãe no centro da disputa. Recentemente, ainda na literatura brasileira, Milton Hatoum (1952) publicou Dois irmãos (2000), excepcional romance que relata um drama familiar em cujo centro estão dois filhos de imigrantes libaneses, os gêmeos Yaqub e Omar.

O tema serve agora para a escritora Eltânia André lançar o seu primeiro romance, Para fugir dos vivos (São Paulo, Editora Patuá, 2015). Mas, ao contrário dos romances citados, aqui se trata de um mundo exclusivamente masculino que é visto detidamente por um olhar feminino. E essa é a grande diferença.

Como se sabe, nos dias de hoje, é difícil encontrar um escritor que, por mais genial que seja, construa imagens insólitas, que não sejam conhecidas. Já as escritoras costumam escrever de maneira distinta, têm imagens completamente novas, constituem janelas para outro mundo, outra sensibilidade e outra forma de ver as coisas. E isso se constata exatamente quando uma autora compõe personagens masculinos. É exatamente o caso de Para fugir dos vivos.

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Uma visão polifônica do primeiro Saramago | Adelto Gonçalves

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No prólogo que escreveu para O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941), Jorge Luis Borges (1899-1986) refere-se à “escrita de notas sobre livros imaginários”, a uma época em que já havia publicado o conto “A aproximação a Almotásim” (1935), que constitui um pseudo-ensaio ou uma resenha ou recensão de um suposto livro publicado em Bombaim três anos antes. Para “enganar” seus leitores e futuros estudiosos de sua obra, dotara o livro imaginário de um editor real e um prefácio que teria sido escrito por um escritor real, mas tanto o autor como o livro, seu enredo e detalhes de alguns capítulos eram de sua inteira invenção.

Mais de 70 anos depois, o professor Francisco Maciel Silveira, se não foi tão longe, lançou um livro, Exercícios de caligrafia literária: Saramago Quase (Curitiba, Editora CRV, 2012), que segue nessas pegadas, pelo menos em parte, ao reunir ensaios que parecem ficções e que seriam de diferentes autores, todos preocupados em desvendar a obra ficcional e o teatro da primeira fase de José Saramago (1922-2010) como autor. Em outras palavras: o ensaísta recorre ao conceito de polifonia utilizado por Mikhail Bakhtin (1895-1975) no estudo da obra de Fiodor Dostoievski (1821-1881) para reunir vozes e pontos de vistas conflitantes a respeito da obra saramaguiana.

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Para entender o mundo corporativo | Adelto Gonçalves

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À época em que era escrita apenas para a publicação em jornal diário, a crônica tinha caducidade precoce. Talvez por isso o gênero tenha sido sempre visto como pouco merecedor de tratamento crítico, o que nunca o impediu de ser cultivado no Brasil desde o século XIX por escritores eminentes como José de Alencar (1829-1877) e Machado de Assis (1839-1908), passando por sua fase de ouro com João do Rio (1881-1921) e Rubem Braga (1913-1990), que seriam seguidos por mestres do quilate de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Fernando Sabino (1923-2004), Paulo Mendes Campos (1922-1991), Henrique Pongetti (1898-1979), Luis Martins (1907-1981), Lourenço Diaféria (1933-2008), Raquel de Queiroz (1910-2003) e outros tantos.

Agora, em época de Internet, essa caducidade já não é tão precoce, mas o gênero igualmente precisa do papel impresso para ganhar perenidade e talvez a pretensa eternidade dos arquivos e bibliotecas públicas, que o preservariam do esquecimento. Além disso, a crônica, espécie de conversa à beira do fogo ou debaixo da árvore, é ainda a melhor maneira de se dizer de maneira simples verdades que ditas de forma mais pomposa ou solene talvez não conquistassem tantos corações e mentes.

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Fernando Pessoa, employé de bureau | Adelto Gonçalves traduzido por Jacques Boutard

Fernando PessoaEn janvier 1926, à 38 ans, ayant quelque expérience dans le domaine économique et commercial, le poète Fernando Pessoa (1888-1935) comprit qu’il avait les connaissances suffisantes pour éditer une publication mensuelle ayant trait à ces deux secteurs, la Revista de Comércio e Contabilidade, qu’il fonda à Lisbonne en partenariat avec son beau-frère Francisco Caetano Dias. Mais, en considérant les choses sans parti pris, la seule expérience professionnelle que possédait le poète était celle d’un entrepreneur désastreux et d’un employé de bureau, d’un comptable, comme son hétéronyme Bernardo Soares qui, s’il avait de l’expérience, ne pourrait lui être utile qu’à enseigner l’art de la comptabilité. En vérité, Pessoa gagnait plutôt sa vie comme traducteur de l’anglais au portugais, ce qui lui permettait d’exercer son activité pour diverses firmes commerciales, profitant, ainsi de la lourde dépendance du Portugal à l’égard de l’Angleterre.

Comme entrepreneur, en effet, il n’eut jamais de succès : sa propre publication consacrée au commerce et à la comptabilité ne connut qu’une vie éphémère, avec seulement six numéros parus, et son atelier de typographie et d’édition, « Íbis », installé en 1907 dans le quartier de Glória, fit rapidement faillite. En 1921 il fonda la maison d’édition Editora Olisipo, une entreprise commerciale ruineuse. Il y publia ses “English Poems I et II”, ainsi que “English Poems III” et “A Invenção do Dia Claro”, d’Almada Negreiros (1893-1970). En 1923, la maison Olisipo lança le pamphlet “Sodoma Divinizada”, de Raul Leal (1886-1964), qui fut la cible d’une attaque moralisatrice de la part de la Ligue des Étudiants de Lisbonne et fut saisi sur ordre du gouvernement, de même que les “Canções”, de António Botto (1897-1959). [Tous les exemplaires des deux ouvrages furent brûlés sur ordre du gouverneur le Lisbonne en mars 1923, NdE]

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Um pungente retrato de um mundo marginal de Adelto Gonçalves | Edmar Monteiro Filho

ad 250Ainda hoje, nossas concepções acerca da história sofrem a contaminação de modelos baseados no chamado “senso comum”, no personalismo e em outros vícios que nosso sistema educacional teima em reproduzir. Com isso, resta esquecido que para refletir criticamente sobre os acontecimentos do passado – recente ou remoto – é preciso fazer uso de uma mescla de critérios científicos e subjetivos, trabalhados harmonicamente, em constante diálogo.

Aceitar como verdades incontestáveis as informações reproduzidas por determinadas pessoas ou por veículos de comunicação, cuja legitimidade baseia-se apenas em seus percentuais de audiência é, no mínimo, ingenuidade. Sem método para reflexão, sem análise criteriosa, toda informação é especulação. Por outro lado, os dados e os números frios, desacompanhados de interpretação, também não se traduzem em conhecimento efetivo sobre a realidade.

Mas, então, como confiar no que se vê, no que se ouve, no que se lê, sem correr o risco de reproduzir falácias ou ideias equivocadas? Questão difícil quando se sabe que a própria escrita da História ainda se debate entre o cientificismo puro ou o relativismo que a coloca como mais uma entre tantas formas de narrativa. Roger Chartier afirma que o trabalho do historiador não pode se afastar do objetivo de buscar a verdade, mesmo que tal objetivo possa ser, conceitualmente, impossível de atingir. Abandonar tal busca seria deixar o campo livre a toda sorte de falsificações, a todos aqueles que, “por traírem o conhecimento, ferem a memória”.

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Lêdo Ivo: a poesia do caminhante | Adelto Gonçalves

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       ledo_ivo_na_ablFeita essencialmente de imagens, a poesia de Lêdo Ivo (1924-2012) é, sobretudo, reflexiva. Como se o poeta precisasse andar muito, fazendo o seu próprio caminho, a exemplo do que sugere Antonio Machado (1875-1939), para poder refletir, “lavando com a água mais pura a ferida da vida”. É o que mostra em Quero ser o que passa: a poesia de Lêdo Ivo (Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria; Maceió, Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2011), a professora Luiza Nóbrega (1946), com certeza, o estudo mais aprofundado feito aqui até da extensa obra do poeta alagoano.

Com título retirado da própria obra poética de Lêdo Ivo, o livro é constituído por ensaios que se foram formando a partir de 2002 com o retorno da autora à Literatura Brasileira, depois de anos de dedicação ao estudo de poetas portugueses – de Luís de Camões (1524-1580) a António Nobre (1867-1900) e à tríade da revista Orpheu, Fernando Pessoa (1888-1935), Almada Negreiros (1893-1970) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) –, tarefa que lhe exigira longa permanência em Portugal em três estágios de investigação.

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‘Fita azul”: a reconstrução da memória | Adelto Gonçalves

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Fita azul (São Paulo, Editora Babel, 2011), primeiro romance do contista e poeta Edmar Monteiro Filho, um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura de 2012, surpreende da primeira à última linha pela segurança com que o seu autor desempenha o seu ofício. Escrito como se saísse da pena de uma mulher, acontecimento raro na Literatura Brasileira, o romance foi construído a partir de lembranças da mãe do autor sobre a infância e a adolescência vividas em Amparo, cidade hoje de 70 mil habitantes, estância hidromineral a 50 quilômetros de Campinas, terra de adoção de Bernardino de Campos (1841-1915), advogado e fazendeiro de café que foi um dos altos próceres da Primeira República (1889-1930) e duas vezes presidente do Estado de São Paulo (1892-1896 e 1902-1904).

O romance não está dividido em capítulos nem partes, mas em blocos que o leitor só consegue identificar plenamente na última linha, quando a memorialista revela a sua idade à época dos acontecimentos que narra.

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Dalton Trevisan e o apuro da crítica | Adelto Gonçalves

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       Nascido como tese de doutoramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), orientada pelo lendário professor Antonio Candido, Do vampiro ao cafajeste – uma leitura da obra de Dalton Trevisan (São Paulo, Hucitec, 1982), de Berta Waldman, professora-titular no Departamento de Letras Orientais da USP, ganha agora segunda edição acrescida de 17 artigos escritos nos últimos anos, com o título Ensaios sobre a obra de Dalton Trevisan (Campinas, Editora Unicamp, 2014), com apresentação de Hélio de Seixas Guimarães, prefácio de Modesto Carone e texto de orelha de Vilma Arêas.

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LETRAS-RESENHA CRÍTICA | ‘Goto’, Um Romance Pós-moderno | Adelto Gonçalves

gotosilasItararé, pequena cidade do Estado de São Paulo na divisa com o Paraná, ganhou notoriedade à época do movimento civil-militar de 1932 em que a alta burguesia paulista, desalojada do poder em 1930, tentou, de maneira desastrada, afastar pelas armas o regime instaurado igualmente à força por Getúlio Vargas (1882-1954), fazendeiro gaúcho que soube galvanizar o ressentimento das demais unidades da Federação contra a chamada política do “café com leite”.
Como se sabe, desde o advento da República, capitalistas paulistas e mineiros, praticamente, tinham o monopólio dos benefícios e benesses que a União poderia oferecer, usufruindo-os à exaustão, enquanto os demais Estados chafurdavam no subdesenvolvimento, quase todos entregues à espoliação promovida por suas oligarquias locais.
Em 1932, deu-se então o episódio da projetada batalha de Itararé, “aquela que não houve” porque as forças de um lado e de outro concluíram que não valia à pena levar adiante aquela guerra fratricida, com a capitulação das elites paulistas, que já haviam sido derrotadas em 1930, com o afastamento abrupto do presidente Washington Luiz (1869-1957). O episódio foi utilizado, de maneira jocosa, pelo jornalista, humorista e escritor Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), conhecido por Apporelly, que passou a apresentar-se sob o falso título de nobreza de barão de Itararé.

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‘Nós, poetas de 33’: uma coletânea imperdível | Adelto Gonçalves

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       Foi Fernando Mendes Vianna (1933-2006), poeta nascido no Rio de Janeiro, quem teve a ideia de organizar uma antologia com poetas brasileiros nascidos em 1933 e passou-a a Joanyr de Oliveira (1933-2009), que de pronto a aceitou. A princípio, eles iriam organizá-la juntos, mas não se sabe até que ponto Mendes Vianna chegou a trabalhar nela, antes que fosse visitado pela indesejada das gentes, como diria Manuel Bandeira (1886-1968). Assim, a tarefa passaria para os ombros de Joanyr de Oliveira, que, se levaria a cabo a missão, escrevendo-lhe até a nota introdutória, igualmente não conseguiria vê-la impressa.

O próprio Joanyr de Oliveira chegou a encaminhar os originais ao editor Victor Alegria, que assumira o compromisso de publicar o livro diante do corpo sem vida de Mendes Vianna. Colaboraria na edição o poeta Anderson Braga Horta, nascido em 1934, mas “amigo de todos os poetas e o maior dentre todos nós que nos tornamos brasilienses”, no dizer do organizador.

Depois desses percalços, Nós, poetas de 33, de Joanyr de Oliveira, sai agora com apresentação de Kori Bolívia, presidente da Associação Nacional de Escritores (ANE) de 2012 a 2014, e três textos sobre a poesia de Mendes Vianna e um apêndice sobre a vida e a obra do organizador da coletânea.  Da obra ainda faz parte uma fortuna crítica com a opinião de críticos sobre livros do organizador, com destaque para o que diz José Louzeiro (1932) a respeito de O grito submerso (1980). Segundo Louzeiro, os versos “Demônios são anjos/ nas arcadas da ventania” só poderiam partir da concepção de um mestre, pois lembram os de Camilo Peçanha (1867-1926) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916).

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Carlos Nejar: o espetáculo da palavra | Adelto Gonçalves

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Se como ensina o professor Massaud Moisés (1928), em A criação literária. Prosa II (São Paulo, Editora Cultrix, 19ª ed., 2005), prosa poética é a fusão da poesia e da prosa, caracterizada pela musicalidade, pela metaforização abundante e a divisão da frase em segmentos que recordam a cadência do verso, O feroz círculo do homem (Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2015), de Carlos Nejar (1939), preenche todos esses requisitos. Constitui, portanto, um romance escrito inteiramente em prosa poética.

Como observa o jovem escritor, jornalista e crítico Diego Mendes Sousa (1989) no posfácio que escreveu para este livro, em dez capítulos de O feroz círculo do homem, o leitor pode escutar a voz de Carlos Nejar ecoar no pensamento do relator Tibúrcio Dalmar, personagem enveredado na arte de guardar as sombras das almas no sótão de um tenda localizada em Pontal do Orvalho – entre o cimo do monte e as margens do rio João Aragem – que toma a forma de uma Caverna circular, governada pelo enigmático Círculo.

Como logo percebe o culto leitor, o livro recorre à alegoria da caverna, também conhecida como parábola da caverna, mito da caverna ou prisioneiros da caverna, passagem escrita por Platão que se encontra na obra intitulada A República (Livro VII) em que o filósofo grego procura mostrar como o ser humano pode se libertar da condição de escuridão que o aprisiona através da luz da verdade. Nessa obra, Platão discute sobre teoria do conhecimento, linguagem e educação na formação do Estado ideal.

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Cinco novelas e algumas surpresas | Adelto Gonçalves

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Com uma linguagem realista que descreve sem nenhum disfarce não só o mundo cão das favelas cariocas como as histórias de algumas das muitas vidas desfeitas pelo turbilhão produzido pela intervenção militar na vida constitucional do País em 1964, Helio Brasil contempla o leitor em Pentagrama acidental (Rio de Janeiro, Ponteio, 2014) com cinco novelas bem estruturadas e arquitetadas, não fosse ele um experiente arquiteto e urbanista, além de professor universitário com vasto currículo e experiência.

No posfácio que escreveu para este livro, o também professor Ivan Cavalcanti Proença, mestre e doutor em Literatura Brasileira, autor de obras clássicas como A ideologia do cordel, Futebol e palavra e O poeta do eu, este último sobre o poeta Augusto dos Anjos (1884-1914), diz que Helio Brasil é, hoje, um dos mais importantes ficcionistas brasileiros, embora não seja dado a procurar a divulgação de seu trabalho na mídia nem frequentar a roda-viva oficial dos intelectuais.

“Seus livros, inclusive o artesanal texto-memória, recente, sobre a infância em São Cristóvão, constituem prova de seriedade intelectual, competência e extrema lucidez na seleção de temas que compõem sua obra”, diz.

Proença aponta a novela “Corte e costura” como o carro-chefe do volume, incluindo-a entre os textos mais significativos da contemporânea ficção brasileira. De fato, poucos ficcionistas hoje no Brasil teriam tanta habilidade verbal e gênio para produzir uma narrativa tão realista como esta, sem perder o compromisso com o fazer literário, tornando os seus personagens figuras inesquecíveis para o leitor.

A novela conta a história de um casal separado pelas consequências nefastas do golpe militar, que tanta infelicidade trouxe para muitas famílias brasileiras. Loreta, 20 anos, dona de casa que fazia da atividade como costureira um meio para reforçar o orçamento doméstico, vivia no Rio de Janeiro com Erasmo, jovem professor universitário, que, de repente, envolvido nas malhas do movimento de resistência pelas armas ao regime militar (1964-1985).

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Vidas (e obras) de poetas | Adelto Gonçalves

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Desde que Caio Suetônio Tranquilo (70d.C.-122d.C.), no começo do século II, escreveu De grammaticis, coleção de resumos biográficos de gramáticos,  retóricos e poetas  romanos (Terêncio, Virgílio, Horácio e Lucano), que faz parte de uma obra mais ampla, De uiris illustribus, ficou claro que o tema sempre renderia textos excepcionais. Proclamações (Brasília, Editora Thesaurus, 2013), de Anderson Braga Horta (1936), livro que reúne dez ensaios e conferências sobre onze poetas brasileiros, segue essas pegadas e não foge à regra.

Até porque o seu autor não só é um fino e consagrado poeta como um crítico e ensaísta de alto quilate, que sabe que o seu ofício não se resume à inspiração – ainda que sem ela não exista poesia, como diria Lêdo Ivo (1924-2012) –, mas que é preciso também conhecer a técnica e saber como aplicá-la ou deter conhecimento para reconhecê-la e, ao mesmo tempo, detectar os defeitos que cometem os seus utilizadores.

Por isso, só mesmo quem domina à exaustão a técnica do fazer-poético poderia escrever o ensaio “Os erros de Castro Alves”, texto que deveria ser lido não só por candidatos ao ofício como por todos aqueles que se interessam por poesia e mesmo por alguns bardos com obra já conhecida. Munido de vasto conhecimento, o ensaísta rebate várias acusações que se apresentam infundadas e que pretendiam mostrar que o bardo baiano teria cometido deslizes de linguagem e tropeços métricos.

Para o ensaísta, não há em Castro Alves (1847-1871) nenhuma insuficiência de linguagem e muito menos erros métricos que possam tirá-lo do panteão da poesia brasileira. Muitas vezes, como diz, os pretensos erros não passam de licença poética ou palavras que seriam acentuadas de outra forma ao tempo do poeta. São os casos de blásfemo por blasfemo,  Niagara por Niágara ou nenufares por nenúfares, entre outros.

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Relatos da vida dura | Ademir Demarchi

vira-latasOs vira-latas da madrugada se passa às margens do cais santista com personagens que fazem rememorações da época do tenentismo da Coluna Prestes, passam pela Época Vargas e chegam até o período pré-golpe de 1964. Por esse dado já se poderia esperar que o Porto de Santos e sua intensa vida sindical fossem os personagens principais.

            Há um forte fundo político neste romance, no entanto o autor coloca o Porto e a vida sindical no entorno e põe à frente da cena personagens que vivem entre o bairro Paquetá e zona de prostituição nas proximidades do Centro. Trata-se de uma região decadente, até hoje, tal como é a vida das pessoas retratadas, que compreendem ex-sindicalistas, moídos no cacete repressivo, punguistas, jornaleiros, vendedores de jogo de bicho, catadores de restos que caem no transporte antes de chegar aos navios, mendigos, engraxates, prostitutas e jovens aprendizes de todo tipo de sobrevivência.

            A narração, assim, vai para as rebarbas do Porto e mostra a vida e o que pensam esses personagens. Marambaia destaca-se percorrendo todo o livro. Agora um velho decadente vendedor de apostas do jogo do bicho, que atuara na Coluna Prestes, militante comunista em viagem à União Soviética, sindicalista e ativo grevista, com numerosas prisões e cacetes levados da repressão. Seu percurso dá o tom do romance, indo da juventude encantada com a revolução até acabar-se com a loucura foquista de tacar fogo num bonde e invadir o Paço Municipal, anunciando a Revolução.

            À sua volta convive uma penca de marginais, ladrõezinhos que dão título ao livro, os vira-latas da madrugada; gente como o negro artesão Angola, cuja história se desdobra de sua vinda do Nordeste para o Sul, correndo a vida com Peremateu, um ilusionista argentino, com quem aprendeu a fazer esculturas, até que acaba só, em Santos, velho e já ensinando o ofício a um moleque, o Pingola. Angola é um inveterado jogador no bicho e no dia em que, amargurado, joga uma bolada que ganhou na venda de estatuetas, ganha, mas não leva, porque morre atropelado. Seu maior prêmio é dado por Marambaia, como vingança contra a pobreza de todos, que paga o prêmio e compra um túmulo no cemitério do Paquetá, onde era enterrada a gente fina de Santos.

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Palácio da Fazenda, um tesouro arquitetônico | Rio de Janeiro | Adelto Gonçalves

                              Convite Lancamento Tesouro (2)

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A história do Palácio da Fazenda, construção de 1943 que se destaca na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, é o que contam os arquitetos, professores e pesquisadores Helio Brasil e Nireu Cavalcanti em Tesouro (O Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro), edição comemorativa e fora do comércio, publicada com o patrocínio da Caixa Econômica Federal e o apoio das empresas Carvalho Hosken Engenharia, Petróleos Ipiranga, Lopes Machado/BKR Auditores e Top Down Sistemas.

Construído para abrigar o Ministério da Fazenda, o antigo Tesouro da época do Império e Real Erário do tempo colonial, o vetusto prédio tem sido palco de acontecimentos de relevância na história do País e até hoje é o local preferido para despachos ou encontros promovidos pelo ministro da Fazenda, a despeito da transferência do órgão para Brasília quando da inauguração da atual Capital da República.

Considerado patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, o prédio, projeto do arquiteto Luiz de Moura (1909-?), apresenta uma entrada principal baseada na arquitetura de um templo grego, ocupando uma quadra inteira de 9.360 metros quadrados de terreno e 14 pavimentos de altura. A construção abrange uma área privilegiada na Avenida Presidente Antônio Carlos, no centro da cidade do Rio de Janeiro, destacando-se na paisagem como uma das mais significativas representações do estilo neoclássico, tendo sido seu conjunto arquitetônico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

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“A corrupção é prática tão antiga quanto o Brasil” | Rivaldo Chinem

Adelto-GoncalvesAutor das biografias dos poetas Gonzaga e Bocage, o pesquisador Adelto Gonçalves desvenda a estrutura judiciária na capitania de São Paulo (1709-1822) em livro que ajuda a entender as relações entre Estado e Justiça e o movimento político que o País vive hoje

                                                                                                           Rivaldo Chinem (*)

Adelto Gonçalves, 63 anos, é jornalista desde 1972, com passagens pelos jornais A Tribuna, de Santos, O Estado de S. Paulo e Folha da Tarde e pela Editora Abril. É doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (usp). Seu trabalho de doutorado Gonzaga, um poeta do Iluminismo, sobre Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), foi publicado em 1999 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro.

Em 1999, com bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), desenvolveu em Portugal projeto sobre a vida e a obra do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), publicado em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa, sob o título Bocage – o perfil perdido.

Foi professor titular da Universidade Paulista (Unip), nos cursos de Direito e Pedagogia, e da Universidade Santa Cecília (Unisanta), no curso de Jornalismo, em Santos. É autor também de Mariela Morta (Ourinhos, Complemento, 1977), Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981; Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2015), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003), Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro/São Paulo, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012).

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A trajetória do jornalista mais premiado do Brasil | Adelto Gonçalves

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Poucos jornalistas são tão populares como José Hamilton Ribeiro (1935), já que há três décadas é visto pelo menos todas as manhãs de domingo às voltas com reportagens no programa Globo Rural, da TV Globo. Mas é ao mesmo tempo não só o jornalista brasileiro que mais Prêmios Esso acumulou, sete ao todo, como uma unanimidade entre os seus colegas, que o consideram uma referência profissional e um exemplo de ética na carreira e na vida particular.

Conhecer melhor essa trajetória é a oportunidade que oferece o livro O jornalista mais premiado do Brasil: a vida e as histórias do repórter José Hamilton Ribeiro (Secretaria Municipal de Cultura de Araçatuba-SP/Eko Gráfica, 2015), de Arnon Gomes, com prefácio de Sérgio Dávila, editor-executivo da Folha de S. Paulo. Inicialmente trabalho de conclusão de curso (TCC) em Jornalismo apresentado à Universidade Santa Cecília (Unisanta), de Santos-SP, em 2004, este livro foi reescrito pelo menos duas vezes por seu autor, o que demonstra a sua preocupação com o estilo e a apuração da informação.

II

Mestre consumado da reportagem, que influenciou gerações de profissionais com textos que marcaram época, como aqueles produzidos para a revista Realidade como correspondente na Guerra do Vietnã (1965-1975), da qual saiu mutilado, ao pisar numa mina, José Hamilton Ribeiro está em atividade desde a década de 1950, quando deixou Santa Rosa do Viterbo, cidade do Interior paulista, na região de Ribeirão Preto, perto da divisa com Minas Gerais, para estudar Jornalismo em
São Paulo na Faculdade Cásper Líbero, inaugurada em 1947 e até então a única do gênero no País. Ainda estudante, começou a trabalhar na Rádio Bandeirantes escrevendo notícias para leitura por um locutor durante a madrugada.

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História da Literatura Europeia, uma nova e fundamental disciplina | Adelto Gonçalves

Adelto-GoncalvesI

Distinguir História da Literatura de História Literária é tarefa das mais difíceis porque, muitas vezes, ambos os termos podem parecer sinônimos, mas esse é um ledo engano em que muitos historiadores costumam escorregar. Assim, História da Literatura seria a sequência de narrativas, autores, estilos literários e teorizadores de poéticas literárias, enquanto História Literária constituiria a disciplina que estuda a Literatura de um ponto de vista histórico. Ou ainda a compreensão da Literatura através dos seus contextos (políticos, econômicos, culturais).
Feitas estas distinções, Maria Luísa Malato, professora de Metodologia dos Estudos Literários e de Retórica Geral da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mestre e doutora em Literatura Comparada, partiu para compor História da Literatura Europeia: uma introdução aos Estudos Literários (Lisboa, Quid Júris, 2008), que desde o seu lançamento há sete anos tem constituído livro de referência na área e presença obrigatória na bibliografia dos cursos de Metodologia dos Estudos Literários e de Retórica nas universidades portuguesas.
Aliás, alguma editora brasileira deveria celeremente também publicar esta obra para que cumpra o mesmo caminho nas faculdades de Letras das universidades brasileiras, especialmente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), pois seria um complemento imprescindível ao que se lê em Literatura Comparada (São Paulo, Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000), da professora Sandra Nitrini.
Até porque os países de língua espanhola e portuguesa tomaram como modelo outras literaturas europeias, sobretudo a francesa, ainda que, a partir de certo momento no século XX, a literatura norte-americana tenha se tornado para os literatos desta parte do globo um novo polo de atração. Seja como for, é impossível estudar as literaturas do Brasil e dos países da América hispânica sem levar em conta as suas ligações com as diversas literaturas do continente europeu.

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O golpe visto da janela de minha casa | Adelto Gonçalves

Livro_Adelto_Gonçalves_BrasilEm 1964, eu tinha 12 anos de idade e assisti ao golpe militar da janela de minha casa. A morada de meus pais era no Largo Teresa Cristina, 27, defronte para o prédio do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, localizado à Rua General Câmara, cuja lateral direita dava para a praça. Foi por ali que chegaram os soldados da Polícia Marítima, do comandante Seco, ostensivamente armados. Da janela, vi como alguns daqueles homens de uniforme azul com metralhadoras em punho e longos bastões – que no cais eram mais conhecidos como “pés de mesa” – escalaram o muro dos fundos do sindicato, assumindo posições estratégicas.

            Depois, ouvi o estilhaçar de uma vidraça do edifício do sindicato, talvez rompida por uma granada de efeito moral ou uma pedra. E, então, percebi algumas poucas cabeças que se desenhavam nas vidraças: eram os dirigentes do sindicato acuados, provavelmente à espera de notícias que pudessem vir de Brasília sobre um eventual esquema de resistência ao golpe.

Mais tarde, ainda da janela, pude perceber uma aglomeração na Rua General Câmara com o Largo. Então, tomei coragem e desci à rua e vi quando alguns daqueles homens que estavam acuados na parte de cima do sindicato desceram as escadarias, sob a mira de metralhadoras, e entraram numa espécie de “corredor polonês” aos tapas e pescoções em direção a um caminhão coberto. Entre eles, lembro-me de ter visto Manoel de Almeida, que era o presidente do sindicato, e Rafael Babunovitch, diretor. Com outros diretores e alguns associados solidários, seriam conduzidos para o navio-prisão, que por muitos dias ficaria ancorado em frente ao porto de Santos com sua presença ameaçadora, tal como uma forca na praça principal de uma pequena cidade.

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Marquês de Pombal e padre Malagrida | as entranhas de um confronto | Daniel Pires

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Por Adelto Gonçalves

 I

Depois de publicar Padre Malagrida: o último condenado ao fogo da Inquisição (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2012), o pesquisador Daniel Pires ainda dispunha de tantos documentos sobre o assunto que resolveu escrever O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida (Setúbal, Centro de Estudos Bocagenos, 2013), que traz maiores detalhes sobre o confronto entre Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), conde de Oeiras e, depois, marquês de Pombal, secretário de Estado dos Negócios do Reino, com os jesuítas que teve o seu epílogo com a condenação do padre Gabriel Malagrida (1689-1761), já demente, ao fogo da Inquisição.

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O pícaro de Eça de Queiroz em edição ilustrada | Adelto Gonçalves

I

Depois de publicar a edição ilustrada de Clepsydra, de Camilo Pessanha (Lisboa: Livros Horizonte, 2006) e uma antologia ilustrada de Os Maias, de Eça de Queiroz (Lisboa: Parceria Antônia Maria Pereira, 2009), além de outras ilustrações queirozianas em revistas e na Fotobiografia de Eça de Queiroz: vida e obra(São Paulo, Leya, 2010), o arquiteto Rui Campos Matos (1956) acaba de lançar A Relíquia: Uma Antologia Ilustrada (Fortaleza; Fundação Waldemar Alcântara, 2013).

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Ensaio crítico resgata Gonzaga, por Ronaldo Cagiano

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Fruto de uma incursão crítica em sua vida e obra, o poeta Tomás Antônio Gonzaga acaba de merecer um justo resgate em publicação da Academia Brasileira de Letras, que em sua coleção “Série Essencial” convida um especialista para discorrer sobre autores que inauguraram as cadeiras da Casa de Machado de Assis.

Coube ao professor, crítico e ensaísta Adelto Gonçalves, um os grandes estudiosos da bibliografia do patrono da Cadeira 37, mergulhar no universo gonzaguiano (nascido no Porto em 1744), buscando nas suas raízes históricas a gênese estética de sua poesia, a partir de sua vida e de seus estudos, divididos entre a infância/juventude na Bahia, Recife e Rio de Janeiro e seu bacharelado em Coimbra.

Nesse livro, que tem a chancela editorial da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, o professor Adelto colige alguns de seus melhores poemas,  com estudos e comentários que situam a produção do autor do antológico “Marília de Dirceu” no contexto histórico em foram produzidos, na esteira do que já havia publicado em seu Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Ed. Nova Fronteira, Rio, 1999), resultando de sua tese de doutorado na USP.

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Camilo Pessanha na intimidade

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I

Depois de publicar Clepsidra e outros poemas, para o qual escreveu o prefácio e fixou o texto, com ilustrações de Rui Campos Matos (Lisboa: Livros Horizonte, 2006), e A imagem e o verbo: fotobiografia de Camilo Pessanha (Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau e Instituto Português do Oriente, 2005), o pesquisador literário Daniel Pires (1951) acaba de lançar Correspondência, dedicatórias e outros textos, de Camilo Pessanha (Campinas: Editora Unicamp; Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal), que reúne 19 cartas do poeta português que se encontravam parcial ou integralmente inéditas e 59 que estão disseminadas por livros esgotados e por periódicos de difícil acesso. Obra desde já imprescindível para quem se aventurar a escrever sobre Camilo Pessanha (1867-1928), o livro traz ainda uma minuciosa cronologia que avança até 2010, acrescentando obras, teses acadêmicas, filme e exposições realizadas sobre a vida e a obra do poeta. Nos anexos, além de dedicatórias feitas a amigos e admiradores, há dois textos da lavra do funcionário público Camilo Pessanha: um relatório encaminhado ao secretário-geral do Governo de Macau sobre a atividade pedagógica das Irmãs Canossianas na cidade e uma ata secreta do Governo de Macau, que consta de acervo do Arquivo Histórico de Macau. No primeiro documento, Pessanha, presidente de uma comissão nomeada pelo governo, avalia a atuação de uma congregação religiosa na prática educacional. De sua leitura, vê-se a influência e conseqüências em Macau da revolução republicana de 5 de outubro de 1910, depois da deposição da monarquia em Portugal.  O segundo documento, de certa maneira, relata o inconformismo do poeta diante da provável execução, se fosse extraditado, de um alto dignitário chinês, Lam-Kua-Si, perseguido pelo vice-rei de Cantão. Como observa Daniel Pires no ensaio que escreveu à guisa de prefácio, em razão da dependência de Macau em relação à China, todas as personalidades portuguesas convocadas a aconselhar o governador diante do pedido feito pelo vice-rei se colocaram a favor da extradição, com exceção de Pessanha, que justificou em separado a sua posição, ainda que não houvesse “decerto bandidos mais bestialmente cruéis do que esse Lam-Kua-Si”, como escreveria mais tarde, em 1912. É que ao poeta repugnava o comportamento indigno dos tribunais chineses bem como os métodos desumanos com que as autoridades do país faziam cumprir a pena, métodos tão abjetos que talvez só concorressem em crueldade com os que seriam praticados pelos esbirros da ditadura militar brasileira de 1964. Eis como Pessanha descreve um deles num prefácio que preparou para o livro Esboço Crítico da Civilização Chinesa, de J. António Filipe de Morais Palha, publicado em Macau em 1912: “(…) Entre os suplícios restaurados havia a sensacional morte de gaiola, em que o paciente era suspenso pelo gasnete, mas de modo a poder apoiar no chão os dedos dos pés, e deixado nessa divertida posição, de equilíbrio instável, até morrer de esgotamento”. Continuar a ler

A criação literária ao alcance de todos por Adelto Gonçalves

I

Se é difícil admitir-se que se possa ensinar Literatura, como observou Fidelino Figueiredo (1889-1967), o ensino da atividade crítica pode ser algo ainda mais questionável. Mesmo assim, ensina-se. E quem quiser pode aprender muito. É o que propõe A Criação Literária – Poesia e Prosa (São Paulo, Cultrix, 2012), de Massaud Moisés, obra anteriormente publicada em três volumes, um dedicado à poesia e dois à prosa, que acaba de ganhar uma edição revista, atualizada e unificada.

Concebida originalmente sob o título de Introdução à Problemática da Literatura, a obra, cuja primeira edição é de 1967, mereceu sucessivas impressões e constitui o melhor manual de teoria literária produzido no Brasil. Não é de admirar que ainda seja largamente utilizado nos cursos de Letras.

É claro que a imensa maioria que recorre a este livro – que é, acima de tudo, didático – é formada por aqueles que almejam uma carreira no magistério na área de Letras. Mas este livro é fundamental mesmo para quem quer seguir uma atividade cada vez menos prestigiada nestes dias, a de crítico literário.

Até porque esta não é uma carreira profissional e ninguém sobrevive como crítico ou resenhista de livros nem sobreviveu em outros tempos. Agrippino Grieco (1888-1973), grande crítico literário e ensaísta, que viveu seus últimos dias no subúrbio carioca da magra aposentadoria de ferroviário, sempre lamentou o tempo que perdera analisando obras de autores que considerava inferiores a ele em talento. Mas, se não constitui uma carreira profissional, a atividade ao menos serve não só para bem ocupar as horas de ócio como acumular erudição e, melhor ainda, estimular e exercitar os neurônios, o que, na idade madura, pode ajudar a retardar as manifestações do mal de Alzheimer. Já não é pouco.

Para piorar, nestes dias que correm, as revistas e suplementos literários, praticamente, desapareceram. E os que sobreviveram, diante de tantas dificuldades econômicas, não costumam remunerar seus colaboradores. O último, justiça se faça, que ainda pagava por colaboração era o suplemento Caderno de Sábado, que desapareceu no começo do século XXI, numa daquelas crises periódicas pelas quais passou o Jornal da Tarde, de São Paulo, até o seu fechamento às vésperas do Dia de Finados de 2012.

II

Seja como for, se ainda hoje há jovens que, contrariando a vontade paterna, queiram iniciar-se nesta atividade e tenham disposição e espaço para ler e guardar a infinidade de livros que editoras e autores vão lhe enviar pelo correio, para estes não há outro caminho que não seja começar por A Criação Literária. Afinal, por aqui, vão aprender que o verso é só uma maneira de marcar melhor a narrativa, ou seja, “é mero instrumento da narrativa, que assume valor absoluto”.

Portanto, verso não significa poesia, como sabe quem lê literatura de cordel ou os contos em versos de Geoffrey Chaucer (c.1343-1400) ou de La Fontaine (1621-1695). Na verdade, diz Moisés, a “poesia é a expressão do ‘eu’ por palavras polivalentes, ou metáforas”. São expressões que, como observou Octavio Paz (1914-1998), em O Arco e a Lira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982), foram classificadas pela retórica e chamam-se, além de metáforas, comparações, símiles, jogos de palavras, paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas etc.

Essas expressões verbais têm ritmo próprio, ou seja, são o próprio ritmo, o mundo da alma do poeta. Não se deve, porém, confundir ritmo com cadência. Para Moisés, “a cadência participa da formulação do ritmo, mas não o determina: na verdade, o ritmo engloba a cadência, como o todo implica a parte”. Já o ritmo, diz, constitui “a sucessão de unidades melódico-emotivo-semânticas, movendo-se na linha do tempo”.

É por isso que pode haver poesia em textos armados em versos ou em linhas cheias, ou seja, numa crônica, conto ou em qualquer outro texto, como, por exemplo, El jardín de senderos que se bifurcan (1941), de Jorge Luis Borges (1899-1986), que Octavio Paz define como poema. Segundo o poeta, nesse relato, “a prosa se nega a si mesma: as frases não se sucedem, obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são presididas pelas leis da imagem e do ritmo. Há um fluxo e refluxo de imagens, acentos, pausas, sinal inequívoco da poesia”. Em outras palavras: estamos diante de uma prosa poética.

III

Já poema em prosa é, antes de tudo, poema, como diz Moisés, ou seja, a sua meta consiste na expressão da poesia, enquanto na prosa poética o objetivo do ficcionista é “recriar o mundo, inventando uma história e suas personagens, ainda que numa atmosfera de permanente lirismo”. Poemas em prosa são pequenas peças líricas em que toda a primazia é do “eu”, isto é, o poeta volta-se para dentro de si, “fazendo-se ao mesmo tempo espetáculo e espectador”. Como exemplo, leia-se fragmentos do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa (1888-1935).

Nenhuma dessas formas, porém, confunde-se com o poema de forma livre, em que, segundo Moisés, o metro cede lugar ao ritmo que, sem a cadência imposta pela forma fixa, torna-se “a própria alma do verso”, na definição de Antonio Candido, em O Estudo analítico do poema ((Terceira Leitura, FFLCH/USP, 1987). Como exemplo, leia-seOito elegias chinesas (Lisboa: Edições Descobrimento, 1932), poemas traduzidos por Camilo Peçanha (1867-1926), um dos precursores do Modernismo português.

O que sustenta as Oito elegias chinesas é o ritmo, que espelha também toda a inquietação e as alterações do espírito e da sensibilidade do poeta/tradutor. Livre da camisa-de-força da forma fixa, Peçanha, como tradutor, sentiu-se à vontade nos poemas/traduções para colocar toda a tristeza de sua alma de autoexilado em Macau que se identificou com a anima de poetas chineses desterrados do tempo dos Ming (1368-1628). Para tanto, foi mais longe na subversão das formas poéticas tradicionais, suprimindo rimas, fazendo cortes bruscos, reduções inesperadas ou prolongamentos desmedidos – inclusive, adotando soluções da prosa como a divisão silábica.

Mas não é só para elucidar estas questões ligadas à teoria da poesia, aparentemente difíceis, que serve este A Criação Literária. Vai mais longe ao analisar também as formas em prosa, como o conto, a novela, o romance, a crônica e o teatro, além de outras formas híbridas e, por fim, a crítica literária, “talvez o mais espinhoso e controverso” dos problemas relativos à teoria da Literatura, como o próprio autor admite.

IV

Professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, Massaud Moisés foi professor visitante nas universidades de Wisconsin, Indiana, Valderbilt, Texas, Califórnia e Santiago de Compostela. Alguns dos seus livros, consagrados à teoria literária e às literaturas em vernáculo, constituem referência obrigatória para estudantes e estudiosos destas matérias como evidenciam as sucessivas edições que têm merecido História da Literatura Brasileira, 3 v.,  A Análise LiteráriaDicionário de Termos LiteráriosA Literatura Brasileira Através dos Textos,  A Literatura Portuguesa Através dos Textos Pequeno Dicionário de Literatura BrasileiraA Literatura Portuguesa,  Fernando Pessoa:  o Espelho e a Esfinge e Machado de Assis: Ficção e Utopia,  todos publicados pela Cultrix, A Literatura como Denúncia (Cotia-SP: Íbis, 2002) e As Estéticas Literárias em Portugal, 3 v. (Lisboa: Editorial Caminho, 2002), entre outros.

Adelto Gonçalves

A CRIAÇÃO LITERÁRIA – POESIA E PROSA, de Massaud Moisés, edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Cultrix, 2012, 782 págs. R$ 78,00. E-mail: atendimento@editoracultrix.com.br Site: http://www.editoracultrix.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

A sedução totalitária | Adelto Gonçalves

I

            Por que o século XX foi um período tão propício a experiências totalitárias? Sabe-se que Hitler, Mussolini, Stalin, Franco, Salazar, Vargas e outros ditadores menos cotados ou conhecidos não chegaram ao poder e muito menos governaram sozinhos, contando com o apoio não só de grandes homens de negócios, que sustentaram as maiores ignomínias praticadas contra seres humanos, em troca de interesses pessoais e, muitas vezes, mesq     uinhos, como do homem comum, o das ruas, o homem-massa, conforme o definiu o pensador espanhol Ortega y Gasset (1883-1955).

            Examinar a gênese do pensamento totalitário e as razões que o levaram a encantar multidões foi o que motivou a XIII Semana de Filosofia, realizada em 2010 na Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), em Minas Gerais. São os 12 estudos apresentados durante esse seminário que estão reunidos em Poder e Moralidade: o totalitarismo e outras experiências antiliberais na modernidade (São Paulo, Annablume/UFSJ, 2012), com apresentação e organização do filósofo e psicólogo José Maurício de Carvalho, professor titular de Filosofia Contemporânea do Departamento de Filosofia da UFSJ, doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro.

            Em poucas palavras, os estudos revelam que o totalitarismo é adversário do homem livre, ou seja, daquele que se percebe responsável por seu destino histórico, que escolhe e é capaz de sustentar responsavelmente suas opções, como assinala o professor José Maurício de Carvalho na apresentação que escreveu para este volume. Isso não significa que nos regimes ditos liberais não existam focos de totalitarismo, como sabe muito bem quem já trabalhou em redações de jornais e revistas e viu de perto grandes empresas e autoridades públicas procurarem asfixiar a liberdade de pensamento à custa de pressões econômicas. Sem contar que a chamada liberdade de imprensa quase sempre é a liberdade do dono do jornal de publicar o que quiser, mas não a do empregado jornalista.

                                                           II

            Para o professor Selvino Antonio Malfatti, da Universidade Federal de Santa Maria, do Rio Grande do Sul, o fenômeno totalitário é uma experiência relativamente recente na história política do Ocidente e constitui um desvio de rota da moralidade ocidental. Em seu estudo “Moralidade e Política no Totalitarismo”, Malfatti diz que o fenômeno é resultado da falência dos valores humanos e da descrença na capacidade do homem de se organizar sozinho.

            Essa é uma ideia muito antiga e que, ao final de 1797, por exemplo, serviu para o intendente-geral de Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique, organizar uma sessão da Nova Arcádia na grande sala da Real Casa Pia, no Castelo de São Jorge, em Lisboa, em homenagem ao aniversário de D. Maria, em que o acadêmico Manuel Bernardo de Sousa e Melo, presidente do encontro, defendeu “a solidez interna das monarquias reais” e condenou “a fraqueza das fórmulas republicanas”. Dirigindo-se ao príncipe regente D. João, o acadêmico dizia que “os homens não nascem bons e, por isso, onde quer que vão levam consigo a depravação de origem”.

             Dizia mais: “Portanto, os homens levarão consigo a depravação, a ambição, o ódio, a sensualidade, o ciúme, a vingança; enfim, levarão as paixões, estes ímpetos precipitados do nosso ânimo, estes monstros domésticos do nosso coração, mais indomáveis que feras exteriores, pois, desenfreados e livres, não respeitam outro direito que o da força nem conhecem outras virtudes mais que as suas mesmas satisfações”. Era o que o intendente queria que o príncipe regente ouvisse para justificar mais repressão, como se lê em Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, p. 241), deste articulista.

            Muitos anos mais tarde, do outro lado da Europa, em São Petersburgo, um morador de um prédio que fica no cruzamento da rua Koppuznetchny com a rua Dostoevskaia, antiga Iamskaïa, não muito distante da igreja do Ícone de Nossa Senhora de Vladimir, escreveria que “nada de grandioso se pode esperar do homem”, seguindo na mesma linha do acadêmico Sousa e Melo.  Esse morador chamava-se Fiodor Dostoievski (1821-1881) e ninguém como ele retratou com tanta fidelidade a humanidade em toda a sua miséria e degradação.

            Esse pensamento deve ter ficado na alma das gerações que os sucederam. Se o Portugal joanino e o Portugal salazarista como a Rússia czarista e a Rússia soviética eram países atrasados e com altos índices de analfabetismo, a conclusão a que se poderia chegar é que constituíam terreno fértil para a sedução do totalitarismo. Mas como explicar que a Alemanha, já desenvolvida à época e com altos índices de alfabetização, também se tenha deixado atrair pela insânia nazista?

                                                           III

            Diz o professor Malfatti que, em troca da adesão, o totalitarismo oferece uma ideologia que se propõe a explicar toda a vida da sociedade. “Todos devem professar a ideologia como se fosse uma fé religiosa”, diz o professor. “O ditador, rodeado de uma pequena parcela da população, submete o resto. Para tanto”, diz, “cria um partido, único evidentemente, dirigido por ele à frente de fanáticos seguidores. O passo seguinte é instaurar um sistema de terrorismo policial que invade e vasculha toda vida pública e privada dos indivíduos. O outro passo é o controle dos meios de comunicação para que só a ideologia oficial seja ouvida. Tudo isso permeado por ideais salvacionistas”. E acrescenta: “Os líderes soviéticos no período stalinista e os chefes do nazismo estavam imbuídos de que estavam cumprindo uma missão para a humanidade”.

            De fato, durante a ditadura militar (1964-1985) no Brasil, uma parte dos torturadores e de seus financiadores imaginava que estava colocando o País a salvo da ameaça comunista, mas a maior parte fazia o serviço sujo não só por sadismo e mau-caratismo como para se aproveitar de vantagens pessoais e oportunidades que se ofereciam com o saque dos despojos das vítimas.

                                                           IV

            Já José Maurício de Carvalho e Vanessa da Costa Bessa, da UFSJ, em “Totalitarismo e ética em Ortega y Gasset”, defendem que a recusa do homem-massa em assumir a sua vida é o sangue que impulsiona os governos totalitários que a Europa produziu no século passado. Para os autores, as ideias de Ortega y Gasset ainda permitem entender o fenômeno, embora o mundo de hoje seja outro e pior, pois assolado por violência urbana, pelo crime organizado associado ao tráfico de drogas, fanatismo religioso convertido em terrorismo e ameaças de desequilíbrio ecológico.

            Seja como for, para os autores, continuamos a viver um tempo de massas, tal como definiu Ortega y Gasset. Por isso, dizem, os riscos de nos depararmos com novas propostas totalitárias não estão afastadas de todo enquanto a responsabilidade com a construção do futuro não for retomada e o medo da liberdade não for vencido. “O risco é real porque poucas vezes na história humana os Estados Nacionais possuíram informações e controles tão completos da vida de seus cidadãos”, acrescentam.

            Pior ainda no Brasil de hoje em que se vive uma época de desmoralização da representação parlamentar, tal qual na Espanha pré-franquista. E essa desmoralização se dá pelos muitos parlamentares, que, em troca de vantagens pessoais e de grupos, acabam virando despachantes de contraventores, facilitadores de grandes negócios à custa do erário público – aliás, desde os tempos coloniais, o caminho mais fácil para o enriquecimento rápido. Desmoralizado o Parlamento, o caminho fica aberto à tentação totalitária. Eis aqui bem depositado o ovo da serpente.

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PODER E MORALIDADE: O TOTALITARISMO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS ANTILIBERAIS NA MODERNIDADE, de José Maurício de Carvalho (organizador). São Paulo: Annablume/Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), 232 págs., 2012, R$ 40,00. E-mail: dfime@ufsj.edu.br Site: annablume.com.br

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(*) Texto publicado na Revista Estudos Filosóficos, do Departamento de Filosofias e Métodos da Universidade Federal de São João del Rei-MG, nº 9, 2012, p. 171-173.

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

A influência russa na literatura brasileira | por Adelto Gonçalves, doutorado em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo

I

            Que a literatura russa influenciou boa parte da literatura produzida no Brasil, especialmente no final do século XIX e na primeira metade do século XX, nenhum crítico de bom senso pode colocar em dúvida. Até que ponto chegou essa influência e como seu deu, pois, na maioria, por desconhecimento do idioma russo, os autores tiveram acesso apenas a traduções de segunda mão do francês, é que nunca ninguém havia estabelecido.

Essa questão, porém, já está devidamente esclarecida e aprofundada, depois da pesquisa de proporções ciclópicas empreendida pelo professor Bruno Barretto Gomide em sua tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em junho de 2004, que saiu em livro em 2011 pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp): Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), Prêmio Jabuti 2012, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria Teoria e Crítica Literária.

As fontes deste livro foram extraídas de arquivos particulares de escritores e de uma extensa pesquisa que o estudioso fez em jornais, revistas e livros publicados entre 1887 e 1936, valendo-se também de consulta não só em arquivos públicos e de universidades em Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro como nos Estados Unidos, especialmente nas bibliotecas das universidades de Illinois, Indiana, Stanford e Califórnia.

Neste livro, a recepção da literatura russa no Brasil é estudada a partir de dois eixos: pesquisa documental da recepção crítica do romance russo e estudo da vasta bibliografia comparatista que lida com outros casos de recepção da literatura russa no Ocidente. Tudo isso acompanhado pelas discussões específicas fornecidas pela crítica literária e pela historiografia da cultura brasileira, como observa o autor na introdução.

Os primeiros textos que utilizavam os romancistas russos como contraponto a questões literárias candentes no Brasil datam da segunda metade da década de 1880. Já o final da década de 1930 marca um momento em que tais discussões perdem sua força e deixam de ser relevantes para a crítica. O trabalho conta ainda com um anexo que reproduz algumas fontes significativas, privilegiando as de mais difícil acesso.

II

            É observar que a chegada do romance russo ao Brasil foi uma consequência marginal de um processo internacional iniciado na França, que o tornou uma sensação europeia em meados da década de 1880. Foi quando surgiram as traduções em escala industrial e livros de crítica que assinalavam a recepção desses romances em língua francesa.

Gomide aponta o ensaio O Romance Russo, de Eugène-Melchior de Vogüé (1848-1910), publicado em 1886, como o elemento basilar dessa recepção, pois era a ele que recorria a maior parte dos ensaístas, inclusive no Brasil. Entre os romancistas brasileiros, Lima Barreto (1881-1922) foi o que mais se deixou influenciar pelas ideias que o romances russos traziam implícitas, especialmente a partir do prefácio que Vogüé escreveu para Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski (1821-1881).

O pesquisador observa que já havia conhecimento da literatura russa no Brasil antes mesmo da década de 1880, mas esses contatos se davam em escala diminuta. A partir daquela data, o seu “surgimento súbito” no País, em função do que ocorria na França, passou a atiçar a criação de uma literatura genuinamente nacional, como observaram ao tempo José Carlos Jr. (?-?), um crítico paraibano hoje quase esquecido e justamente “ressuscitado” por Gomide, e Clóvis Bevilacqua (1859-1944). Mas, como constata Gomide, essa interpretação não foi unânime. Para Tobias Barreto (1839-1889), por exemplo, os romancistas russos eram a negação de tudo o que a cultura francesa representava.

Para Silvio Romero (1851-1914), os russos seriam também o melhor exemplo antípoda de Machado de Assis (1839-1908). Se o escritor fluminense construía delicados estados psicológicos de suas personagens à maneira do francês Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), Romero fazia o contraste com a estética radical do choque, exemplificada por Edgar Allan Poe (1809-1849) e Dostoiévski, observa Gomide. E acrescenta: para Romero, o autor fluminense ficava “bem abaixo de Dostoiévski, Poe e até de Hoffmann (1766-1822), quando este envereda, como o próprio Machado diria, pelo distrito da patologia literária”.

Portanto, o caráter inovador da prosa russa foi imediatamente detectado pelos críticos brasileiros, que passaram a utilizá-lo largamente como termo de comparação em suas críticas e recensões. E até a apresentá-lo como um modelo de emancipação    para a literatura brasileira.

III

Na primeira parte de seu livro, Gomide trata da divulgação dos romancistas russos a partir da metade dos anos 1880, especialmente de 1883 a 1886. E apresenta exemplos do aumento vertiginoso do número de traduções e do entusiasmo nos meios intelectuais pelo novo fenômeno literário. Mostra ainda que, quando a revolução de 1917 assustou o mundo, já havia no Brasil uma tradição de três décadas de discussão do romance russo em periódicos e livros de crítica.

Portanto, associar autores como Dostoiévski, Turgueniev (1818-1883), Leon Tolstói (1828-1910) e Alexandr Pushkin (1799-1837) ao bolchevismo só podia partir de mentes obnubiladas, o que não é de admirar, pois, à época da última ditadura militar (1964-1985), o livro Juan Rulfo: Autobiografia Armada (Buenos Aires, Corregidor, 1973), de Reina Roffé, teve a sua importação barrada, por volta de 1975, porque o censor fez uma interpretação beligerante da palavra “armada”, quando o título queria dizer apenas que a autobiografia havia sido “armada” com declarações do escritor retiradas de entrevistas publicadas em épocas diversas. Santa ignorância…

Na segunda parte de seu trabalho, Gomide estuda as décadas de 1920 e 1930, quando era flagrante o impacto da revolução bolchevique. E mostra claramente que, ao contrário do que se supõe, a literatura russa nunca foi uma espécie de patrimônio da esquerda, pois intelectuais católicos, como Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), Tasso da Silveira (1895-1968) e Jackson Figueiredo (1891-1928), já discutiam sua influência na literatura mundial, especialmente a partir de Dostoiévski, Máximo Górki (1868-1936) e Leon Tolstói.

A segunda parte do livro apresenta, além de um panorama do mercado editorial da década de 1930, textos que desconfiam abertamente das interpretações geradas no fim do século e tentam cercar os romancistas russos por outros ângulos. E contestam a ideia de que o niilismo de Dostoievski e de outros escritores russos teria preparado terreno para o avanço do comunismo e a vitória dos bolcheviques em 1917, apenas porque a literatura russa sempre esteve associada a questões sociais. Na conclusão, Gomide defende que é anacrônico reler os primeiros momentos da recepção da literatura russa no Brasil de acordo com os resultados posteriores à revolução de 1917.

Como o livro vai até 1936, fora da análise de Gomide fica o recente renascimento do interesse do leitor brasileiro pelo romance russo que, a rigor, deu-se depois do lançamento, em 2001, da primeira tradução de Crime e Castigo, de Dostoiévski, feita diretamente do russo por Paulo Bezerra, pela Editora 34, de São Paulo. Em seguida, saíram vários livros traduzidos diretamente do russo por Paulo Bezerra, Boris Schnaiderman, Fátima Bianchi, Lucas Simone e outros. Em 2011, saiu também Gente Pobre, de Dostoiévski, com tradução de Luíz Avelima, pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP.

IV

            Bruno Gomide (1972) é doutor em Letras pela Unicamp, com estágio de doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Realizou cursos nas universidades de Illinois, Indiana, Cambridge e Linguística de Moscou. Foi pesquisador-visitante no Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp). É o organizador do grupo de trabalho de Literatura Russa da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).

Organizou a Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998), lançada recentemente pela Editora 34, que reúne nomes conhecidos no Brasil como Pushkin, Gógol, Dostoiévski, Tchekhov, Tolstói, Pasternak, Bábel e Nabókov e outros menos conhecidos, como Odóievski, Grin, Chalámov, Kharms, Platónov e Sorókin, num total de 40. Tem publicado artigos em periódicos internacionais, como Tolstoy Studies Journal eVopróssi Literaturi, e participado dos principais congressos de eslavística.

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 DA ESTEPE À CAATINGA: O ROMANCE RUSSO NO BRASIL (1887-1936), de Bruno Barretto Gomide. 1ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 768 págs., 2011, R$ 120,00.

E-mail: edusp@usp.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br