A Noite é dos Pássaros | Edmar Monteiro Filho | por Adelto Gonçalves

Queiramos ou não admiti-lo, somos uma Nação fundada sobre a escravidão, e não apenas dos povos africanos, oficialmente extinta há pouco mais de cem anos, mas também dos povos que aqui viviam antes da chegada da esquadra de Cabral, em 1500. De fato, não estamos sozinhos num concerto mundial em que a violência tem origem nas diferenças não apenas de cor da pele como também de crença, de origem, de convicção política e tantas outras. Mas sofremos especialmente as consequências de um feixe de misérias ocasionadas pelo tratamento de seres humanos como bestas durante centenas de anos. Ainda hoje, há os escravos com carteira assinada, os escravos sem segurança, sem garantias, os escravos humilhados pela necessidade absoluta.

Aquele que domina e escraviza entende o outro como inferior, criatura vinculada ao conceito de utilidade, seja para realizar as tarefas que o dominador não deseja ou não está apto a realizar, seja para dar prazer ou simplesmente alimentar a vaidade de deter a posse de outro ser humano – ainda que, no mais das vezes, tal domínio venha justificado pela negação da humanidade do escravizado. Assim, a escravidão nasce da diferença que se autoriza a suprimir a dignidade ao outro, na medida em lhe retira não apenas a liberdade, mas a autodeterminação.

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‘Atlas do impossível’: contos surrealistas | Edmar Monteiro Filho, por Adelto Gonçalves

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            Um livro de contos, geralmente, é o resultado da reunião de textos literários dispersos e autônomos que o autor produz ao longo dos anos, quase sempre sem um fio narrativo que os una. São também textos que escapam a qualquer critério quantitativo, ou seja, não podem ser definidos com base em sua extensão. Mas, ao contrário da novela e do romance, o conto exige, antes de tudo, a atenção concentrada do leitor para produzir nele um “efeito preconcebido, único, intenso, definido”, com observou o professor, ensaísta e investigador venezuelano Carlos Pacheco (1948-2015) em Del cuento e sus alrededores. Aproximaciones a una teoria del cuento (Caracas, Monte Ávila Latinoamericana, 1997, p. 20), com base no que dizia o poeta norte-ame ricano Edgar Allan Poe (1809-1849), para quem o “conto devia ser lido de uma assentada”.

             Atlas do impossível (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2017), de Edmar Monteiro Filho, quinto livro de contos do autor, não preenche todos esses critérios. Mas, entre os 15 relatos que o compõem, há dois que provam que a extensão em número de páginas ou palavras não é mesmo critério seguro para definir um conto. Por exemplo, o texto de abertura, “Autorretrato em espelho esférico”, tem apenas 18 linhas, enquanto aquele que encerra o volume, “Galeria”, ocupa 49 páginas, dividido em dez capítulos ou trechos, aproximando-se do que se poderia chamar de novela.

            O livro, porém, vai além. São relatos caudatários do movimento surrealista da década de 1920, liderado pelo poeta e crítico francês André Breton (1896-1966), que, tanto na pintura ou na gravura como na poesia ou na prosa, procurava incorporar elementos desconexos, formas abstratas e ideias irreais, com o objetivo declarado de escapar da lógica e da razão. Em outras palavras: levar o poder da subversão à criação.

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Um pungente retrato de um mundo marginal de Adelto Gonçalves | Edmar Monteiro Filho

ad 250Ainda hoje, nossas concepções acerca da história sofrem a contaminação de modelos baseados no chamado “senso comum”, no personalismo e em outros vícios que nosso sistema educacional teima em reproduzir. Com isso, resta esquecido que para refletir criticamente sobre os acontecimentos do passado – recente ou remoto – é preciso fazer uso de uma mescla de critérios científicos e subjetivos, trabalhados harmonicamente, em constante diálogo.

Aceitar como verdades incontestáveis as informações reproduzidas por determinadas pessoas ou por veículos de comunicação, cuja legitimidade baseia-se apenas em seus percentuais de audiência é, no mínimo, ingenuidade. Sem método para reflexão, sem análise criteriosa, toda informação é especulação. Por outro lado, os dados e os números frios, desacompanhados de interpretação, também não se traduzem em conhecimento efetivo sobre a realidade.

Mas, então, como confiar no que se vê, no que se ouve, no que se lê, sem correr o risco de reproduzir falácias ou ideias equivocadas? Questão difícil quando se sabe que a própria escrita da História ainda se debate entre o cientificismo puro ou o relativismo que a coloca como mais uma entre tantas formas de narrativa. Roger Chartier afirma que o trabalho do historiador não pode se afastar do objetivo de buscar a verdade, mesmo que tal objetivo possa ser, conceitualmente, impossível de atingir. Abandonar tal busca seria deixar o campo livre a toda sorte de falsificações, a todos aqueles que, “por traírem o conhecimento, ferem a memória”.

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