E o terramoto habitacional ainda vai no adro | Francisco Louçã, in Expresso

Um dos aspetos interessantes da evolução do discurso político é a franqueza com que alguns interesses sociais são hoje enunciados. É um novo padrão: em vez da universalidade, mesmo que camuflando uma divisão (“os portugueses de bem”), notam-se agora deslizes para estratégias do pionés. Veja-se o exemplo dos liberais: o seu pionés são os donos do Alojamento Local, a quem prometem mais dinheiro. O do governo é mais vasto: quer uma subida prolongada do preço da habitação, para seduzir este setor dos empresários do AL, de promotores imobiliários e de construtores de luxo e beneficiar o turismo, que entende ser o destino de Portugal. O resultado é um terramoto habitacional e o debate recente sobre uma medida – a proibição de compra de casa por não-residentes que não sejam emigrantes – faz luz sobre o assunto.

Se o mercado existisse, funcionaria?

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Francisco Louçã diz que desigualdade social, guerra e clima impõem ameaça de “agressividade extrema” | Lusa/RTP

“Vivemos ameaçados por uma agressividade extrema, que é o extremismo de uma guerra, a ameaça do desastre climático, o `apartheid` social, a desigualdade social o enriquecimento de alguns para o empobrecimento de muitas pessoas, a desigualdade entre homens e mulheres”, considerou Francisco Louçã.

O bloquista falava à agência Lusa no final de uma “aula”, com base em imagens, pinturas e cartazes, em que falou do que leva “da utopia à distopia”, uma aula enquadrada no Fórum Socialismo, que decorre em Viseu, e marca a `rentrée` política do Bloco de Esquerda.

“Vivemos numa sociedade que se torna muito opressiva e muito ameaçadora. A segurança das pessoas, a tranquilidade das pessoas é violentada permanentemente pelo aumento dos juros ou pela dificuldade de alugar um quarto para os filhos, ou pelos empregos precários, ou salários baixos. A vida é um susto”, acrescentou.

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O problema do Papa é a sua Igreja | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

Cumprindo um festival concebido, como é tão notório, por João Paulo II, de cuja herança se quer afastar, o Papa Francisco veio aqui deixar mais uma mensagem do fim do seu pontificado. Entretanto, agitou-se o país e os sinais locais deste empreendimento têm sido comentados: o custo extravagante e especulativa, o financiamento público (que Espanha evitou), alegando-se que esta é a missão do Estado (queria ver o mesmo num festival muçulmano), a sátira de Bordalo II e a fatwa que sofreu, o frenesim político-eleitoral. Tivemos de tudo. Falta ouvir o Papa e saber o que nos diz sobre a sua Igreja. 

O  Papa mais popular

O Papa não é o mais popular pelo contraste com o seu antecessor, nem sequer só pela afabilidade que demonstra. Ele é querido por ter aberto as portas aos pobres, por ter condenado a finança “que mata”, por ter dado um passo de aproximação aos homossexuais e, sobretudo, por ter condenado a pedofilia praticada, ocultada e porventura cultivada em setores tão amplos da sua Igreja. Com argúcia política, tem vindo a nomear cardeais reformadores e alguns são personalidades culturais vibrantes. Meticulosamente, tem procurado mudar a doutrina e virá-la para o povo. Tem contra ele uma construção imponente que é o seu palácio, a Igreja Católica.

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Era tão bom governar sem povo | por Francisco Louçã in Jornal Expresso, 20-01-2023

Dois do poemas mais conhecidos de Bertolt Brecht, que de algum modo resumem as agruras da sua vida, foram dedicados a governantes em momentos cruciais da história. Um deles, da década de 1930, parodia os discursos do governo nazi, abrindo com os seguintes versos: “Todos os dias os ministros dizem ao povo/ Como é difícil governar. Sem os ministros/ O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima”, e sabem como continua. O outro foi escrito duas décadas depois, a propósito da repressão do governo estalinista contra a revolta popular que começou em Berlim-Leste, concluindo que “O povo perdeu a confiança do governo/ E só à custa de esforços redobrados/ Poderá recuperá-la. Mas não seria/ Mais simples para o governo/ Dissolver o povo/ E eleger outro?”. Nos dois casos e em circunstâncias diferentes, os poemas respondem a tiranias. No entanto, há nesta poesia um outro traço comum, para além da sátira do discurso justificativo da prepotência, que é a desconstrução da distância. Em política, e muito atento, Brecht obrava de modo contrário ao que propunha em teatro: no primeiro caso queria denunciar e destruir a opressão baseada na distância do poder, no outro queria criar distância para evitar a identificação alienada dos espetadores com quem representava uma peça que não constituía a realidade. A realidade é suja, o teatro queria ser épico; uma engana, o outro mostra.

O processo de ocultação e de justificação narcísica pelos governantes, em todo o caso, não é uma particularidade da tirania que Brecht combatia nos dois casos. Sob formas variadas, é a própria essência da ocupação do espaço público pelo discurso do poder, ou do seu investimento na criação de um senso comum conformista. A política económica portuguesa e europeia é um exemplo transparente desse modo de dominar.

Masoquismo

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O SNS não se salva com ilusões | por Francisco Louçã | in Expresso

Quem defende o SNS já não pode escapar ao dilema entre ignorar o colapso e recusar a continuidade da ilusão sobre a estratégia presente, pois a evidência demonstra que o governo não enfrentará o problema. É preciso virar a agulha. Apresentar o atual SNS como o modelo da virtude democrática custa a derrota, pois a realidade do desespero dos profissionais, da desorganização das unidades e dos tormentos dos utentes em centros de saúde ou em urgências impõe-se sem mais argumentos e cada ano será pior, com a aposentação de mais especialistas. Graças a estes fracassos programados, os privatizadores têm a estrada aberta e, apesar de alguns floreados alucinados (descobriram a “sovietização” do SNS, seguindo o guião ideológico da associação de médicos dos EUA, que no século passado conseguiu, na vaga da Guerra Fria, impedir que fosse instalado um serviço público de saúde no seu país), insistem na proposta mais simples: deem dinheiro aos nossos amigos que eles tratam de mais utentes do SNS.

 Nesse caminho, a estratégia de desmantelamento do setor público tem-se imposto. Os investimentos são adiados, os concursos ficam parcialmente vazios, os tarefeiros recebem três a cinco vezes mais do que os seus ex-colegas numa urgência, os serviços navegam na imprevisibilidade. Na incerteza, os seguros cresceram e são um florescente ativo financeiro, que promete lucros confortáveis, graças ao controlo dos preços. A consequência é uma saúde mais cara para as pessoas: dois grupos privados já realizam a maioria dos partos na Grande Lisboa, naturalmente promovendo a cesariana como método preferencial, o que salga as contas finais; durante a fase aguda da pandemia, os hospitais privados ofereceram a sua disponibilidade por 13 mil euros e, se fosse caso grave, o doente era recambiado para o público; e as PPP, que transformaram em arte a regra do afastamento dos doentes mais caros, são elogiadas como se essa manigância fosse boa gestão. Apesar destes resultados, está montado o cenário da atrevida proposta dos grupos privados e dos seus liberais: aguentem o custo dos hospitais públicos desde que nos paguem mais, queremos os vossos impostos.

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A globalização acabou, qual é a próxima guerra? Francisco Louçã | in Jornal Expresso

A globalização foi o capitalismo feliz desde os anos 1980. Tudo se conjugava perfeitamente: uma liderança empolgante (Reagan e Thatcher; em Portugal, como fez questão de nos lembrar o próprio, foi o tempo de Cavaco Silva), guerras fáceis (as Malvinas) após fracassos monstruosos (o Vietname, depois o Irão e a Nicarágua) e, sobretudo, a grande viragem que foi sinalizada pela queda do Muro de Berlim e pelo fim da URSS. Veio então a expansão do comércio mundial, apoiada em instituições “empoderadas” para promoverem os novos ventos (a OMC, a que a China, transformada num dos grandes parceiros da globalização, aderiria em 2001) e uma vaga de liberalização económica (que deu origem à oligarquia russa com as privatizações de Ieltsin). O mundo foi aplanado pelo sucesso da globalização, que continuou nas décadas seguintes, em particular com o auge da financeirização, vencidas as barreiras herdadas do projeto de Roosevelt para a regulação da banca (Clinton assinou em 1995 a lei que enterrou o New Deal). Ideologicamente não parecia haver contraposição a esta glória, Deng Xiao Ping era um do seus arautos, triunfava sem contestação a TINA (there is no alternative, que, como noutros temas, Thatcher formulou melhor do que ninguém), a terceira via levou a social-democracia para o redil liberal, com Schroeder, Blair e, mais tarde, com Hollande. Tudo parecia conjugar-se para o que o mais entusiasta veio a chamar “o fim da história”. Não era pouco.

 Quarenta anos depois da sua fulgurante reincarnação moderna, esta globalização acabou.

Atacar o menor para ameaçar o maior.

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Como a Nato venceu a guerra sem um tiro | por Francisco Louçã | in Jornal Expresso 2/04/2022

No verão passado, terminou em desastre a única operação militar da Nato deste século, a primeira evocação do temido artigo 5º do seu tratado. As forças norte-americanas retiraram-se e os 300 mil soldados que tinham armado, um dos maiores exércitos do mundo, debandaram em poucos dias e entregaram o poder aos talibãs.

Centenas de cidadãos norte-americanos foram deixados para trás na precipitação da fuga. A Nato atingiu o seu ponto mais baixo. Poucos meses depois, a organização é já a vencedora da guerra da Ucrânia, como quer que prossiga a destruição do país. A sua vitória é total. É política e comunicacional, como é militar e estratégica, dominando adversários e aliados, pois a Nato passou a ser vista como a única garantia da Europa, enquanto Putin, que desencadeou a invasão para trucidar um país soberano em nome da saudade do império czarista, se tornou o homem mais detestado do mundo.

 Tem sido analisada a estratégia do Kremlin, que procura afirmar uma potência global, embora sem recursos para tal. A Rússia tem um PIB dez vezes inferior ao da China (há vinte anos era equivalente) e, se dispõe do segundo exército do mundo, falta-lhe capacidade para determinar o mapa europeu. Em contraste, a estratégia da Casa Branca não tem sido discutida, excepto nos próprios EUA, e talvez seja Thomas Friedman, um editorialista conservador do New York Times, quem tem estado mais atento a esse percurso, em que não há inocentes.

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A China é um exemplo da americanização da desigualdade | Francisco Louçã | in no Expresso

Já todos foram felizes em Davos. Era uma parada de estrelas, estadistas, empresários, influencers, tecnólogos, ocasionalmente alguns produtores de blockbusters, toda a cultura do pop-capitalismo contemporâneo se juntava uma vez por ano na elegante estância suíça para dar os seus sinais ao mercado ansioso. No ano passado, a pandemia arrasou a festa e transferiu-a para o mundo virtual, o que faz perder o glamour das flutes de champagne e dos encontros de negócios. Apesar dessa tragédia, houve pelo menos um dos frequentadores, Marc Benioff, um bilionário que fundou a Salesforce, uma empresa de software, que então conseguiu resumir a autocongratulação dos vencedores da crise: “temos de o dizer, os CEOs foram definitivamente os heróis de 2020”. Talvez essa saga explique como se vão definindo algumas das mudanças surpreendentes do nosso mundo.

Os heróis da crise

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A decadência do SNS é uma estratégia económica | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

O acidente do Hospital de S. João é um acidente. Terrível, um morto e vários feridos, mas nada sugere que houvesse como evitar algum comportamento problemático que tenha provocado o incêndio. Saber-se-à se o serviço tinha um atendimento adequado para acompanhar os doentes internados, em particular os que possam não seguir regras de proteção, e como é que o serviço reagiu à emergência, no que parece ter sido rápido. Em qualquer circunstância, o conselho de administração do hospital, merecidamente elogiado pelo bom desempenho durante a pandemia e pela inauguração da ala pediátrica, decidiu demitir-se, numa atitude digna, é sua a responsabilidade última pelo hospital. Fê-lo no tempo próprio, contrastando com o exemplo recente de um ministro, coisas do governo.

 O que não é acidente é o tormento que vivem os serviços de saúde. É o resultado de uma incapacidade reforçada por uma estratégia. O governo desistiu de um SNS que garante a universalidade e a qualidade do acesso à saúde e dá por certo que o setor privado determinará a nossa vida.

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Se lhe oferecem uma magia antissistema, desconfie | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

A frase trumpista de Rui Rio pode resultar simplesmente de uma sobre-representação num mundo em que não há coincidências mas sobram poses, ou pode até constituir uma revelação da sua metade obscura, o indizível de uma apetência radical, ambas as interpretações correram ontem pela tinta das gazetas e das redes sociais. Tudo ligeiramente ridículo: a “América grande” era o discurso imperial na maior potência militar e financeira do mundo, ao passo que a promessa de “Portugal grande” é assim um arremedo de coisa pouca, sem projeto económico que não seja a obediência a Bruxelas e, quando muito, a Frankfurt. Em qualquer caso, foi o suficiente para Ventura se entusiasmar: “Rui Rio aproximou-se mais do discurso antissistema – aliás ele próprio usou a expressão antissistema – do que fez durante todo o seu mandato”, disse o chefe da extrema direita, para depois concluir que “já temos um caminho para andar. Agora, vamos ver se andamos ou se não andamos”. Andando por aí fora, “Rui Rio pode ter dado o primeiro passo para conseguirmos um governo de direita em Portugal”, concluiu ele, com um brilhozinho nos olhos.

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Para o centro, direita volver | Francisco Louçã in Jornal Expresso

E, pronto, Rui Rio arrasou as previsões, o aparelho e as conveniências do seu principal opositor externo, o primeiro-ministro. Fica assim definido o quadro das eleições de janeiro, com um PSD a procurar somar votos do centro por via da polarização à direita, com o PS a procurar votos de centro usando a guerra contra as esquerdas, que procuram impedir aquele salto para o bloco central, com o PAN a oferecer-se tanto ao PS quanto ao PSD e com o CDS a lutar pela sobrevivência face ao Chega, que insinua um convite a Telmo Correia. Tudo no seu lugar, mas ainda sobram algumas incógnitas.

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“Não não existe democracia com algoritmo” | Entrevista com Francisco Louçã

No seu último livro, o economista e professor catedrático no ISEG analisa como as redes sociais e as novas tecnologias podem ser poderosos instrumentos de condicionamento da liberdade humana e garante que “Não é possível perceber o ascenso da extrema-direita hoje sem o papel das redes sociais”.

Muito mais que um terço da humanidade frequenta o Facebook, um número muito superior de pessoas se englobarmos todas as outras redes sociais. É impossível perceber a sociedade actual sem entender os efeitos dessas novas realidades tecnológicas e sociais nas nossas vidas. Segundo o autor, vivemos um sociedade de medo. Tornamo-nos cobaias do maior espaço social que existe, com a plataformização do trabalho, a vigilância de dados e a sua comercialização. Francisco Louçã aproveitou o confinamento para ler sobre a erupção das redes sociais e as suas implicações na política e na vida, criando uma espécie de ditadura do presente que esmaga o futuro e ignora o passado. Desse trabalho, resultou o livro: “ O Futuro Já Não É o que Nunca Foi, uma Teoria do Presente”.

As redes sociais e as mutações que elas implicam não são a sua área de trabalho habitual?

Sim, mas é uma preocupação crescente, acho que vamos entrar num período muito complicado e perigoso.

Para esse alerta é importante a saída de livros como o “Capitalismo de Vigilância” de Soshana Zuboff?

Já tinham saído uma série de trabalhos antes desse livro, antes de chegar ao “Capitalismo de Vigilância”. Apesar de não partir de uma análise de classes é um trabalho é muito interessante.

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Atrapalhações cubanas | Francisco Louçã

Não sei se gosta de romances policiais e se leu o “Quarteto de Havana”. Vale a pena, esses livros são alguns dos raros mas saborosos casos em que a história foge do pitoresco e escapa ao padrão que define aquele estilo literário. São, simplesmente, grandes romances. Mas, como não podia deixar de ser, há um fio condutor, que no caso é a vida difícil, quem sabe se a decadência, ou devemos chamar-lhe a persistência?, de um personagem que nos conduz pelo dia a dia de Cuba: Mário Conde foi polícia, tornou-se detetive privado, é um desenrascador, vagamente justiceiro, além de ser um gastrónomo militante, sobrevivendo encostado aos milagres da cozinha da mãe de um antigo camarada de aventuras. Navegando pelas ruas de Havana, Conde chega onde os seus antigos colegas não vão, descobre o crime de um membro do Comité Central, investiga traficâncias de diplomatas, roubos de arte, negócios de emigrados, polícias corruptos e que fecham os olhos, contorna burocratas implacáveis. Há nos livros alguma tristeza, bastante nostalgia e um gigantesca afirmação de amor pela sua terra. E perdemo-nos em intrigas sem concessões, chegamos a finais amargos, o escritor não nos facilita a vida, a rotina continua em Havana.

Leonardo Padura, o autor, é mais conhecido por outros escritos ousados, “O Homem que Gostava de Cães” ou “Os Hereges”. Mas foi com Mário Conde que começou e foi assim que foi descoberto pelos seus compatriotas. Porventura por isso, Conde regressou em “A Transparência do Tempo” para novas rodadas. Graças ao “Quarteto”, a Conde e a toda a sua obra, Padura será o escritor mais popular no seu país, onde ninguém ignora que se trata de uma voz crítica. Por isso, quando a direita festeja os protestos populares nas ruas de várias cidades, fantasiando triunfantemente a vingança de Batista, e enquanto nas esquerdas as opiniões se dividem entre defensores do regime, incluindo alguns dos seus conversos mais recentes que, ao tempo do choque entre Krutchov e Castro estavam indefetivelmente do lado soviético, e aqueles que sentem o protesto popular sobre dificuldades reais de gente real, quando tantas palavras são esgrimidas sem candura, ficamos a saber mais sobre Cuba se o ouvirmos.

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Quando os senhores são genocidas | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

O que aqui havia de novo não era a destruição, a escravatura ou sequer a desumanização das vítimas, era simplesmente a aceleração da ganância.

Há um triângulo entre o filme Apocalypse Now (1979), de Francis Coppola, o livro em que se inspira, O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad, e outro que volta ao mesmo cenário de barbárie, O Sonho do Celta (2010), de Vargas Llosa, que conta a história da história. Coppola filmou a expedição que sobe o rio vietnamita para matar Kurz, um oficial escondido na selva; Conrad, a partir da sua própria experiência como capitão de navio de transporte de marfim no Rio Congo, tinha contado a busca por Kurz, um dos responsáveis pela empresa exploradora e que se perdera algures a montante. Ao entrar “na boca do grande rio”, o capitão Charles Marlow abandona a comodidade das aparências, em que se vive sem remorso a riqueza colonial. “Antes do Congo eu era só um animal”, diz o escritor, que depois descobriu a imensidão do território do horror (o seu livro foi décadas depois criticado por despersonalizar a população africana, a vítima que fica silenciosa). Não há guerra, não há deus, não há humanidade nessa selva, só há crueldade sem limite. A industrialização da morte foi um êxito da modernidade, quando os cavalheiros enriqueceram sobre pilhas de escravos.

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Quando Rio, Santos, Ventura e Figueiredo se encontram num salão | Francisco Louçã in Jornal Expresso

É uma festa, que promete nada mais e nada menos do que abundar sobre a “reconfiguração social, política e económica para as próximas décadas”, nas vésperas da inauguração do congresso do Chega, que foi apontada para o faustoso dia 28 de maio. A caminho destas décadas tão prometedoras, a convenção do MEL junta os chefes dos quatro partidos da direita, os recentemente chegados encerram as manhãs, os que têm mais pedigree encerram os dias (Rio faltou no ano passado, vai este ano ser a estrela da companhia). Acrescenta-se a aristocracia do Observador, que veio em peso, José Manuel Fernandes, Rui Ramos e Helena Matos, mais alguns cronistas avulsos (e que injustiça esquecerem os do Sol), um painel dos notáveis do PS que são parceiros deste mundo, Luís Amado, Sérgio Sousa Pinto, Álvaro Beleza, mais um ex-governante PS que era do PSD e retornou ao PSD, Nogueira Leite, também Henrique Monteiro, não podia faltar, e mais algumas glórias laranjas, Joaquim Sarmento, Miguel Morgado e Poiares Maduro, desta vez Montenegro foi esquecido, e do CDS, Paulo Portas. Há ainda uma feira de extravagâncias: o representante dos hospitais privados, Óscar Gaspar, ou Camilo Lourenço, que escreve sobre a “deriva bloquista de Vítor Gaspar” e do FMI, lá se irão explicar ao Centro de Congressos. Numa palavra, está toda a gente que devia estar e, em vez de notarem com surpresa esta confraternização, os analistas deviam saudar o acontecimento, do qual resulta um interessante sinal convivial. Quanto mais juntos melhor, quanto mais falarem melhor.

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Eduardo Lourenço faleceu | por Francisco Louçã

Eduardo Lourenço (1923-2020)

Será lembrado como o ensaísta mais marcante das últimas décadas, e era-o. Será venerado como um exigente europeísta, que não cedia ao maniqueísmo financeiro, e era-o certamente. Será homenageado como um pensador da esquerda e um criador de pontes, como era. E deve ser recordado como um ser humano excepcional, de amizade inquebrantável e fiel às interrogações que nos levam para a frente. Adeus, Eduardo.

Vandalismo com futuro | Francisco Louçã

Ao longo do dia de hoje, o drama das eleições norte-americanas, que ainda não tem vencedor oficialmente certificado três semanas depois do dia do voto (e as contagens ainda continuam, mesmo que já não mudem nada), vai chegando ao fim.

Entretanto, foi-se convertendo numa farsa: os tuítes do presidente cessante deixaram de ser uma ameaça para serem risíveis, fracassou a convocação para a Casa Branca dos representantes da maioria republicana na assembleia estadual do Michigan para os convencer a imporem um golpe constitucional de duvidoso resultado, os anunciados processos com provas esmagadoras são amesquinhados por juízes conservadores em tribunal. Parece não sobrar nada da estratégia de Trump, que sorumbaticamente se arrasta por campos de golfe para passar o tempo, enquanto no seu país o número de casos Covid se aproxima dos duzentos mil por dia.

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É melhor não repetir o que a TVI fez com o Banif | Francisco Louçã

A desvantagem de comentar a quente é esta: não se pensa duas vezes.

José Gomes Ferreira, que conhece bem a economia e as trapalhadas do Novo Banco, veio dizer hoje ao almoço que havia um “risco indireto” para os depositantes desse banco e um risco para o Estado português, em função da decisão do parlamento de não autorizar uma transferência de 478 milhões até haver resultado de uma auditoria confiável.

Ele apressou-se logo a corrigir e a dizer que o risco era “muito indireto”, mas fez mal em ter feito a sugestão inicial. Foi assim que uma informação da TVI, aliás errada, desencadeou uma corrida ao Banif.

Esse risco de depósitos não existe no Novo Banco e é errado suscitar esse receio. Os depósitos estão seguros. O que o parlamento decidiu é de simples bom senso.

O pagamento ao Novo Banco pelo Fundo de Resolução, que só ocorre em maio, deve ser precedido de uma justificação nos termos do contrato, da certeza de que não há abuso e de que as contas estão certas. Aliás, Gomes Ferreira declara peremptoriamente que os 478 milhões nunca iriam chegar e que, portanto, a conta proposta no Orçamento era a fingir. Ele tem a certeza de que vai ser pedido mais dinheiro, tem razão e ainda bem que o revelou.

Por isso, sabe-se que haveria sempre uma nova proposta do Fundo de Resolução e do governo para subir o financiamento. Tudo em maio, como está no contrato. Não há, portanto, nenhum incumprimento desse contrato pelo Estado português. Não sabemos é se há um incumprimento por parte da Lone Star e isso vai ser apurado pela auditoria.

Que um Estado decente proteja os seus cidadãos e os depositantes do banco é de meridiana clareza.

Não vejo como se possa alegar uma obrigação que ainda não está confirmada (nem as contas do ano estão fechadas) ou como se possa aceitar que um fundo financeiro imponha a um país a obrigação de lhe dar uma fatia do orçamento, só pela sua conveniência e à margem das obrigações contratuais.

Ouvir membros do governo falarem como se fossem porta-vozes da Lone Star, afirmando que o contrato está a ser incumprido só porque não foi autorizada em novembro, e até haver auditoria competente, um pagamento aprazado para daqui a seis meses, só permite uma constatação triste de como se degradou o sentido da governação.

Seria preferível defender Portugal e a seriedade das suas contas.

Francisco Louçã

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

O que o Gambito da Rainha nos ensina sobre a vida (e a política) | Francisco Louçã in Jornal Expresso

Para bastante gente, “O Gambito da Rainha” tem sido uma acolhedora companhia no semi-confinamento em que vivemos. A série tem tido sucesso, seja porque junta uma personagem fascinante, mesmo que puramente ficcional, Elizabeth Harmon, a algum romance, pouco, ao retrato sofrido das esquinas da vida, ou ainda a uma pitada de Guerra Fria em tom de época, seja, e sobretudo, porque se constrói sobre um mistério. Esse mistério é o xadrez, dois exércitos de oito peões e oito aristocratas frente a frente num pequeno tabuleiro.

Aperte o cinto de segurança, ainda vem aí o pior | Francisco Louçã

Costa Silva disse-o na apresentação do seu plano e tem razão: ainda virá o pior, antes de podermos melhorar. Mesmo que seja ainda difícil antecipar o efeito pleno da recessão e, sobretudo, o tempo do seu impacto, os dados apresentados esta semana pela OCDE são indicadores. Nos países do G20, os mais desenvolvidos, a queda do PIB no segundo trimestre terá sido de 6,9% e, só nos Estados Unidos, de 9%. Lembra a organização que, durante a recessão de 2009, que foi provocada pelo crash financeiro do final do ano anterior, o pior trimestre registou uma queda quatro vezes menor, de 1,6% (mas que se estendeu por vários trimestres). Nestes cálculos, se houver um novo confinamento, o que para já só ocorreu em Israel, a queda anual nestes países poderá chegar aos 6%. Ou seja, perder-se-iam num ápice cinco anos de crescimento, com efeitos sociais pesados. Como as economias do G20 representam 80% do produto global, só por este efeito teríamos a segunda recessão do século XXI a arrastar o mundo para uma redução do PIB em termos absolutos, o que nunca aconteceu na segunda metade do século XX, e recuperação pode demorar mais 5 anos, diz o Banco Mundial.

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POSTAL DE FIM-DE-SEMANA | Francisco Louçã: uma história difícil | por Luís Osório

1.
Um texto difícil, uma memória que não me é fácil. Não por ser algo que esconda; na verdade os dois anos em que militei no PSR foram felizes e cobertos de experiências políticas, ilusões ideológicas e amorosas, desilusões. Mas prometi regressar a Francisco Louçã e cumpro agora o melhor que sei.

2.
Em poucas linhas: militei na extrema-esquerda trotskista entre os 19 e os 21 anos. Via Francisco, por todos conhecido como Chico, como a figura que desempenharia um papel na moralização da política portuguesa – os seus discursos eram poéticos e revolucionários; a sua superioridade retórica esmagava; as ideias e a capacidade de liderança indiscutíveis. Nunca se desviava do que considerava essencial, nunca passava noites no Bar das Palmeiras, sítio de reunião e divertimento dos jovens do PSR. Muitos bebiam cerveja, alguns fumavam haxixe e todos efabulavam sobre se estariam à altura da revolução quando e se ela chegasse. Ouvíamos Clash, Doors, Sex Pistols. Com o João Aguardela, vocalista e líder dos Sitiados, jovem banda ainda desconhecida, organizávamos na companhia do mítico José Falcão as movimentadas e inesquecíveis noites de um tempo que nunca esquecerei.

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O Momento Chernobyl de Trump e Bolsonaro? | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

Não foi o acidente nuclear de Chernobyl em 1986 que derrubou o regime soviético, que se viria a desagregar irreversivelmente com a queda do Muro em 1989 e com o golpe militar em 1991. O poder de Gorbachov, que já representava uma transição, fracassou cinco anos depois, no fim de um longo processo em que foi corroído por contradições internas, pelo esgotamento económico e pelo desgaste social, acentuado pela derrota na guerra do Afeganistão. O acidente foi somente um choque que se sobrepôs a essa exaustão. Mas, por isso, foi também um momento trágico que revelou a fragilidade do Kremlin, sobretudo pela tentativa de ocultação, pela revelação da impotência e pela impopularidade que multiplicou. O tempo de Chernobyl foi a mentira e a revelação da mentira e, com isso, o início do fim de uma era.

A pandemia pode ser o Momento Chernobyl da extrema-direita no poder em países poderosos, como os Estados Unidos ou o Brasil. O caso com maiores implicações internacionais será o de Trump que, nas suas deambulações justificativas e na verve desculpatória, revela uma obsessão pelo interesse económico de curto prazo contra a proteção das vidas. E aí entra o efeito Chernobyl: ele precisa de ocultar o desprezo pela população e, sobretudo, a sua calculista impotência perante a doença.

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27.5.20 | Querem mesmo um ensino sem aulas presenciais? | Francisco Louçã | in blog Entre as Brumas da Memória

«Confesso que fiquei surpreendido quando ouvi um dirigente sindical criticar a abertura das aulas para o 11º e 12º anos. O que começou por dizer pareceu-me convincente: é preciso garantir a segurança de alunos, professores e funcionários. Mas depois acrescentou, se bem registei, que preferia que se mantivessem as aulas à distância. Eu não prefiro. Por isso é que gostaria de ter ouvido algo mais, que temos que nos mexer para ter as condições para voltar à vida das escolas. O mais depressa possível. Sem aulas presenciais não há ensino.
É provável que sem aulas presenciais também deixe de haver professores. De facto, manda a prudência que se tenha em conta que, se o sistema de ensino for só uma telescola, alguém um dia imaginará que basta um vídeo das aulas de cada cadeira e que se pode repeti-lo ad infinitum. Umas dezenas de figurantes contratados para apresentarem um texto e um powerpoint e está dado o curso. Ponham-lhe o bastão na mão e já verão como é o vilão, saltar da telescola para a youtubescola será um ápice. Este risco profissional pode ser grave, mas ainda assim não é a única ameaça. Até sugiro aos leitores, sentindo o ceticismo de alguns que leram as últimas linhas, que esqueçam por completo esta questão. O que não se pode ignorar, em contrapartida, é que o encanto das novas tecnologias não substitui a relação entre os docentes e os alunos, a atenção ao detalhe, a aprendizagem viva, a insistência e a resposta imediata, as dúvidas durante e no fim da aula, a conversa nos intervalos, as atividades extracurriculares, a forma como os estudantes se envolvem com a escola.

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𝐕𝐀𝐌𝐎𝐒 𝐅𝐀𝐋𝐀𝐑 𝐀 𝐒É𝐑𝐈𝐎 𝐃𝐄 𝐒𝐄𝐆𝐔𝐑𝐀𝐍Ç𝐀? | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

Expresso, 28.03.2020
Antes da pandemia, o mundo estava a ser reformatado por uma nova direita. Houve quem achasse que se tratava de um intermezzo e que os tiques de Trump e Bolsonaro eram uma galeria de piadas, mas descobriu-se depressa que encabeçam um mundo novo. A vaga autoritária que lideram é a principal ameaça contra a democracia, e estavam a ganhar. Convém por isso perceber o que lhes dava a vitória: era simplesmente a capacidade de corporizarem uma socie­dade do medo. A garantia de segurança foi a sua chave para o poder. A segurança, no caso de Bolsonaro, são milícias; no caso de Trump, um nacionalismo agressivo; em todos os casos usam a cruzada evangélica. Ora, o mundo descobriu agora que essas prosápias são inseguras. Sugiro então que discutamos segurança como um valor fundamental que é preciso disputar duramente nesta tragédia que estamos a viver.

A SEGURANÇA É O HOSPITAL PÚBLICO

Quando a vida é ameaçada, o mundo vira-se para os serviços públicos de saúde, descobrindo que há algo de essencial antes de tudo, a proteção da nossa gente. Ted Yoho, um ‘trumpista’ deputado pela Flórida, reconheceu que “isto pode ser considerado medicina socializada, mas, em face de um surto, de uma pandemia, quais são as tuas opções?” Macron, ex-banqueiro de gestão de fortunas e agora Presidente francês, estendeu este “socia­lismo” a uma promessa contra a globalização: “Delegar a nossa alimentação, a nossa proteção, a nossa capacidade de cuidar do nosso quadro de vida nas mãos de outros é uma loucura […] As próximas semanas e meses necessitarão de decisões de rutura nesse sentido. Irei assumi-las.” Em todo o mundo, os neoliberais fazem fila para pedir a intervenção do Estado que salve vidas.

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Somos uma tragédia? Tem dias | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

Não sei se o pânico instalado com o coronavírus alterará a agenda do segundo congresso de um pomposo Movimento Europa e Liberdade, que se propõe nada menos do que refundar a direita na Culturgest, hoje mesmo. Seria pena, essa refundação faz tanta falta. Ao que informa o Expresso, a promoção do evento invoca as questões fundamentais da nossa existência coletiva: “Estará Portugal condenado? As novas desigualdades são superáveis? Somos uma tragédia? O Estado de Direito foi capturado pelos interesses? A ditadura do politicamente correto está a destruir-nos? Há saídas?”. O MEL não se limita a questionar, quer abrir soluções e, por isso, lança ainda a pergunta tremenda: “E quem é que protagoniza a alternativa à extrema-esquerda e ao socialismo radical?” Quem se oferece parece que tem que picar o ponto no congresso.
Candidatáveis, são bastantes. Diz-se que Portas, Júdice, Ventura, Cotrim de Figueiredo, o novel líder do CDS, Paulo Mota Pinto e Poiares Maduro abrilhantarão o evento, que os organizadores chamam de “primárias da direita”, sabe-se lá porquê. Mesmo que não conste que vão a votos, ou que apresentem currículos ou sequer propostas, os oradores passear-se-ão por estas “primárias”, que serão pelo menos um evento social, coisa grande quando se pergunta com inquietação se “somos uma tragédia”, claro que tudo por causa da “ditadura do politicamente correto”.
Candidamente, a convocatória repete os refrões brasileiros, nos termos exatos dos bolsominions, desta vez com “Portugal condenado”, a penar uma feroz “ditadura” sob um “socialismo radical”, que até foi ovacionado no dia anterior pelas associações patronais por se dispor a facilitar o lay off no contexto da epidemia. Ora, são linguagens dos dias que correm, quem ligaria a estas “primárias” se elas não prometessem sangue, Europa e liberalismo?

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A Terra é como a bolacha Maria? | Francisco Louçã

Imagine um mundo plano com apenas duas dimensões, Flatland, no qual triângulos, quadrados, pentágonos e outras figuras geométricas vivem e se movimentam. Este mundo é-nos apresentado pelo Quadrado, que um dia sonha que visita um mundo unidimensional, Lineland, que é habitado por pontos brilhantes. Estes não conseguem ver o Quadrado senão como um conjunto de pontos e linhas, e o Quadrado ressente-se desta imagem de si, porque sabe não corresponder ao que é na realidade. E é então que começam os problemas.

Afinal são três

Um dia, Flatland é visitada pela Esfera, uma habitante de Spaceland, um mundo tridimensional. A reação dos habitantes de Flatland foi semelhante à da dos de Lineland. Tal como os pontos brilhantes só conseguiam ver o Quadrado como um conjunto de pontos e linhas, também os habitantes de Flatland só conseguem ver a Esfera como um círculo. A Esfera, orgulhosa da sua tridimensionalidade, salta para cima e para baixo, de modo a que se consiga ver o círculo a expandir e a retrair e fique assim demonstrada a existência de uma terceira dimensão. Os líderes de Flatland reconhecem secretamente a existência da Esfera, mas decidem perseguir os divulgadores da notícia. O Quadrado, convertido à tridimensionalidade, tenta convencer a Esfera da hipótese da existência de uma quarta dimensão, caindo em desgraça aos seus olhos, que são incapazes de ver para além do que percecionam. O Quadrado tem, entretanto, outro sonho, no qual a Esfera o visita e lhe apresenta Pointland, um mundo adimensional composto por um único ponto. Ao contrário de Lineland, Flatland e Spaceland, onde, apesar das tensões e hierarquias, existem sociedades, em Pointland tal não é possível, porque existe apenas um habitante – o rei –, que vive preso num universo confinado a um ponto e acredita ser infinito e a única realidade existente.
Esta é, resumidamente, a deliciosa história de Flatland – O Mundo Plano, uma aventura matemática escrita por Edwin Abbott em 1884, que é um retrato mordaz da sociedade vitoriana, satirizando ditaduras e várias formas de censura, mas onde também explica conceitos físicos e matemáticos complexos.

Entra a bolacha Maria

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Notre-Dame | Francisco Louçã

Notre-Dame é nossa como o são os Budas de Bamyan, e por isso queremos preservar todos esses sinais do tempo. Notre-Dame não é bela por ser prova de alguma superioridade europeia, é-o por ser uma glória do engenho e da cultura mundiais.

Provocado por desleixo ou acidente, o incêndio que destruiu pelo menos o pináculo e o teto da catedral de Notre-Dame é um choque civilizacional que emociona e magoa quem reconheça a cultura como ela é, uma expressão da História. História e cultura são isso mesmo, a diversidade dos olhares: alguns verão a catedral como um lugar de religião, outros recordarão Lutécia, alguns descobrirão a ousadia arquitetónica do gótico nascente, outros ainda a entrada para o Quartier Latin do outro lado da ponte, alguns lembrarão Joana d’Arc ou Napoleão Bonaparte, outros ainda evocarão Victor Hugo ou até a versão Disney da paixão de Quasimodo e de Esmeralda. Mas todos reconhecerão a solenidade do tempo, os vitrais e as torres desta nossa Notre-Dame.

Notava de manhã Sena Santos, na Antena Um, que outras catedrais foram feridas pelo desastre: a de Reims, glória gótica, bombardeada pelo exército alemão em 1917, a de Coventry, bombardeada em 1940 pela aviação hitleriana, a de Dresden, arrasada pelos Aliados em 1945, todas durante as tormentas das guerras europeias. Esta, a maior, terá ardido pela incúria. Mas a perda é a mesma, o fogo roubou-nos uma parte da memória da humanidade.

Não é de hoje mas continua hoje, a tragédia persegue a nossa História. Como os generais que nas guerras europeias escolheram aqueles alvos ou aceitaram que as bombas os atingissem, os talibãs dinamitaram no Afeganistão os Budas de Bamyan e o ISIS demoliu parte das ruínas de Palmira, na Síria. Em todos os casos, foram heranças comuns da humanidade que foram destroçadas. Estes não eram patrimónios caucasianos ou árabes, africanos ou asiáticos, eram e são de toda a humanidade. Por isso, perante a desgraça, evocar particularismos proprietários seria uma forma de racismo que nega a raiz universalista de toda a cultura.

Notre-Dame é nossa como o são os Budas de Bamyan, e por isso queremos preservar todos esses sinais do tempo. Notre-Dame não é bela por ser prova de alguma superioridade europeia, é-o por ser uma glória do engenho e da cultura mundiais. Reconhecê-lo é o imenso ponto de convergência de quem se comove com estas perdas e quer defender e reconstruir o que é de toda a gente.

Pode-se por isso ceder à tentação de fazer desta tragédia um jogo (um candidato às eleições europeias não resistiu a exibir a sua mesquinhez alegando que a tristeza perante o incêndio comprova o seu discurso), ou pode-se tratar a perda como ela é: um desafio aos de hoje sobre como vivemos, respeitamos e preservamos o nosso passado comum. Um desafio a toda a gente, porque é de toda a gente.

Artigo publicado em expresso.pt a 16 de abril de 2019

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.

Vinte anos de Bloco | Francisco Louçã

Porque o Bloco passou a representar politicamente a força de um ativismo social com memória e foi sempre fiel a essa raiz.
Porque encerrou uma pré-história em que grupos testemoniais se identificavam mais pelas ideias generosas do que pela capacidade de as disputar na sociedade.
Porque restabeleceu a política de esquerda como ela é: um programa que faz, que conhece a relação de forças, que aprende na ação social com os de baixo.
Porque detesta a vaidade de quem cria um grupo ou partido se tem ou uma diferença de opinião ou a pretensão de representar a verdade de uma versão literária da história.
Porque o caminho da convergência é o da aprendizagem e o da divergência é o da fraqueza.
Porque aprendeu com uma urgência, a do referendo perdido em 1998.
Porque a luta alterglobalização batia à porta e, logo depois, a independência de Timor Leste e a oposição à guerra da Jugoslávia e à ocupação do Iraque confirmaram tanto a ofensiva do império quanto a necessidade de lhe opor um internacionalismo militante.
Porque juntar capacidades, trajetos e vontades num grande partido é a forma da política de massas.
Porque correr por fora e por dentro exige saber para onde se vai.
Porque um partido é necessário e útil quando, podendo, consegue aumentar o salário mínimo e as pensões ou parar as privatizações.
Porque o Bloco, ao fazer o seu caminho, se torna mais combativo à medida que é capaz de formular alternativas e de as apresentar como fatores decisivos no debate nacional.
Porque o Bloco foi o primeiro e, até hoje, o mais consistente dos novos partidos à esquerda que, na Europa, mas também noutros continentes, o foram replicando ou seguindo caminhos paralelos.
Porque a luta das mulheres e homens que trabalham ou estão reformados fica mais forte com uma esquerda de confiança.
Porque os jovens precários precisavam de uma força política para os seus movimentos.
Porque as lutas feministas, anti-racistas, LGBT+, ou de quem estuda precisam de uma voz política que muda a agenda nacional.
Porque ganhamos muitas vezes e perdemos outras.
Porque a política militante de esquerda é continuidade e é persistência.
Porque nos lembramos do Miguel, do João, da Helena e de tantas e tantos outros e outras.
Porque na esquerda não desistimos de nada.

Francisco Louçã

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã 

Não só é uma batalha da ADSE | Francisco Louçã

Não há só uma luta pelos pagamentos da ADSE. Há antes uma luta por todo o SNS e pelo preço da saúde. Pois é, o que tivemos até há poucas semanas foi um mero entretenimento. Mas, de repente, tudo se precipita ao mesmo tempo. Temos uma persistente greve que se mede pelo número de cirurgias que consegue adiar nos grandes hospitais públicos e não se consegue saber quem paga a greve. Temos um governo nervoso que, tendo adiado por calendário político a solução que as enfermeiras exigiam, cede tarde e depois se precipita recorrendo a uma medida tão excepcional como a requisição civil. Temos uma discussão sobre a Lei de Bases de Saúde em que se movem as pressões que, do Presidente aos partidos de direita, visam assegurar que o privado mantém o seu quinhão nos pagamentos públicos, tudo dito muito ideológico, como é bom de ver. E, agora, temos os privados a ameaçar suspender os contratos com a ADSE se esta persistir em fazer pagar os 39 milhões cobrados em custos excessivos há um par de anos.
A questão resume-se a isto: há custos imputados à ADSE que variam de um para quatro no mesmo tratamento, num lado é cinco mil euros e noutro vinte mil. Os hospitais privados querem manter o seu poder de determinar o preço, a ADSE quer uma tabela restritiva e que, ainda assim, deixa uma margem que em alguns casos vai a 40% acima do preço de mercado. É milhão a milhão que se decide esta estranha negociação que ameaça os utentes do seguro público.
Em todo o caso, a jogada dos hospitais privados é arriscada. Fingem comprometer mais de 20% da sua faturação (e, com os pagamentos pelo SNS, o Estado paga a todos os privados mais de 50% da faturação), nos cinco maiores grupos hospitalares privados são 250 milhões, mas apostam em que os utentes da ADSE preferem evitar o SNS, ou que este está pelas costuras e não consegue responder a tal aumento súbito da procura. Ora, o SNS faz 42 milhões de consultas e a ADSE soma 2,8 milhões de consultas no privado; poder-se-ia portanto calcular que mais facilmente os hospitais e centros de saúde públicos, eventualmente com alguns privados que mantêm as convenções, aguentam mais utentes, do que os hospitais privados suportam a perda de receita. E, de facto, para tudo o que é mais complicado, é sempre ao SNS que o cidadão recorre e não aos hospitais privados.
Apesar disso, os grupos privados esperam que alguns utentes troquem o seguro ADSE, que é caro, por seguros privados que tenderão a ficar ainda mais caros. Provavelmente, haverá quem o faça, mesmo que ainda esteja indefinido o curso imediato deste jogo do empurra. A situação é muito apetitosa para as seguradoras de saúde, que já abrangerão um terço da população, em grande parte devido à promoção pelas empresas entre os seus trabalhadores.
Só que é tudo uma camuflagem. Uma parte dos médicos nos hospitais privados não tem convenção com a ADSE, cujos utentes são por vezes submetidos a tratos de poleiro. E a cobertura dos produtos oferecidos para substituir o seguro público esgota-se num ápice se a patologia for complicada, vai o doente recambiado para o hospital público. Parece portanto que os grupos privados só pretendem com esta manobra que não haja limite aos pagamentos pela ADSE e que as tabelas continuem a ser generosas, não tanto de romper relações – o privado não vive sem o dinheiro público.
Há depois o problema de fundo. A ADSE, criada 16 anos antes de existir o SNS, é paga pela maioria dos funcionários públicos e acrescenta aos impostos, com a contrapartida de um acesso facilitado a análises, consultas e tratamentos. Tem lucro e é portanto sustentável. Mas a convergência entre os sistemas públicos será sempre necessária num serviço nacional mais abrangente. Esse é o maior medo dos privados.

Francisco Louçã | (no Expresso)

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

Brexit | Se todos querem que dê desgraça, assim será | Francisco Louçã

O desastre do Brexit não estava escrito nas estrelas, é antes o resultado de uma meticulosa construção em que nada foi deixado ao acaso. Começou pela intriga partidária, Cameron queria arrumar o Partido Conservador e prometeu o que não tencionava cumprir, até que uma inopinada maioria eleitoral o obrigou ao referendo. Aí chegado, pediu à Comissão Europeia a facilidade de incumprir normas dos tratados para mostrar músculo contra os imigrantes europeus e levou o que queria. Armado de demagogia contra a ameaça da vinda de trabalhadores, chegou à noite da contagem dos votos confortado pelas sondagens, mas amanheceu derrotado. E foi então que a intriga se adensou.

Vingança

Demitido Cameron, chegou May e a sua história conta-se em poucas palavras: foi a eleições para se reforçar e acabou minoritária e pendurada numa aliança com os unionistas irlandeses, e com um Labour renascido com Corbyn, um crítico das políticas liberais europeias que não lhe facilita a vida. A partir daí, foi uma penosa negociação em que a diplomacia britânica, tida como profissional, se afundou e descobriu que ninguém lhe dava a mão. May foi humilhada e despachada para fora da sala, ficando a saber o que é o bullying em versão bruxelense. A lição é esta: com a Suíça, com a Noruega, até com a Irlanda depois do seu referendo, com o Canadá, a negociação é para um acordo, com o Reino Unido é uma punição.

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Eles andam por aí | Francisco Louçã | in Jornal Expresso

Eles sempre andaram por aí, na verdade, mas as gerações mudam. A extrema-direita tem entre nós uma raiz histórica e uma base social, há alguns anos houve gente suficiente para eleger numa televisão Salazar como a figura portuguesa do século XX. Mas tentativas de fazer renascer uma política fascizante logo após a revolução, nos anos setenta, mesmo quando figuras como Spínola, Champalimaud e tantos outros apareciam a liderar e a financiar os seus grupos armados, tinham sido goradas pela infâmia. Absorvidos pouco depois do 25 de Abril em partidos tradicionais, dadas as circunstâncias do colapso lúgubre do regime ditatorial, essa direita readaptou-se, alguns chegaram a ministros, todos fizeram pela vida. E assim foram passando os anos.

Quatro décadas depois, é uma outra extrema-direita que emerge. Vale a pena discutir essa especificidade, porque esse entendimento é a condição para responder ao risco. O que há de novo é que o espaço político desta nova extrema-direita não é saudade do império, mas a globalização infeliz; não é o desfile das fardas milicianas, mas o esvaziamento democrático; não é o delírio ideológico, mas o efeito profundo da austeridade. Ela vai portanto crescer. E essa novidade faz sistema: repare que nos anos setenta as ditaduras caíam na Europa (Portugal, Espanha, Grécia) enquanto venciam em contra-ciclo na América Latina (Chile, Uruguai, Argentina), ao passo que agora o movimento trumpiano impulsiona mudanças coincidentes em todo o mundo (de Washington a Orban, Le Pen, Salvini, Bolsonaro e o que mais se verá), que tomam ou que condicionam o poder. O seu sucesso pode ser medido, os populistas governam hoje uma parte maior da população mundial do que as democracias tradicionais, ao mesmo tempo que contamina as direitas clássicas, que cedem à tentação da imitação.

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Para não cair na armadilha: A tourada que ensina a esquerda | Francisco Louçã

A excitação com a magna questão do IVA das touradas é reveladora de uma atitude, de um clima e de um risco.

A atitude é a que se poderia esperar, uma espécie de deslumbramento hiperbólico com a faena, numa espécie de competição entre toureiros que querem ganhar uma volta à praça. O touro foi “adotado pelo homem ibérico, e criado como o mais nobre dos adversários, digno de sobreviver para enfrentar o Homem até ao fim dos tempos, simulando e celebrando, com o cavalo de combate, a tradição milenar do guerreiro ibérico”, escreve Sousa Pinto, em modo de delírio poético. “Até ao fim dos tempos” é muito otimismo, mas o nosso “guerreiro ibérico” tem destas coisas. O mesmo diria da afirmação ousada, e algo constrangedora, de que não percebe poesia quem não festeja a bandarilha ou que namora o totalitarismo quem não comemora rabo e orelha.

Do outro lado, está o clima que dá por certo que, se a violência contra uma cadela é punida com pena de prisão, ou se os combates de cães são proibidos, se os sacrifícios de animais já são interditos e se a tradição nunca mais foi o que era, um dia a exibição do massacre do touro deixará de existir. 

Mas a lição para a esquerda não está nem na radicalização espetacular dos toureiros, nem na certeza tranquila de que o tempo concluirá esta querela. Está na demonstração atual do risco e da vulnerabilidade comunicacional das agendas de entretenimento. Há gente para tudo, como se viu, e sobretudo para a agitação de emoções apopléticas. Com tanta arrebatamento, o efeito de contaminação constrói um artifício de alheamento. Esse é o caldo de cultura em que tudo se confunde, pois se definem linhas de fractura apoiadas na distração. E, como 2019 é um ano de todos os perigos, a lição deste episódio taurino é de grande valia: pois saiba-se na esquerda que só ganhará quem nunca se desviar do que interessa e perderá quem deixar afirmar-se o interesse pelo desinteresse. É a vida das pessoas, mesmo a vida, o salário, a segurança no emprego, a segurança na saúde, o cuidado dos filhos, a pensão, o acompanhamento das pessoas dependentes, que tem que determinar as escolhas. Não será nunca uma bandarilha a definir os campos e os resultados.

(no Expresso)

Retirado do Facebook | Mural de Franciso Louçã

É tão chique, a indiferença perante o fascismo | Francisco Louçã

Explica Assunção Cristas que, no Brasil, não votaria em Haddad, que detesta, mas também não em Bolsonaro, pois, “apesar de ser do espaço político de centro direita, não me revejo nos extremismos de Bolsonaro e não seria capaz de votar nele”. Ele é da família (é ela ou é ele que é de “centro-direita”?) mas cheira mal.

O argumento é interessante, já foi repetido por Nuno Melo e até, para surpresa de muita gente, por Adolfo Mesquida Nunes, que costuma ser civilizado. Contrasta nitidamente com a atitude de Freitas do Amaral, fundador do CDS, que não só tomou atitude contra Bolsonaro como se empenhou em mobilizar opiniões para a derrota do fascista. No CDS, toda a gente acha que a atitude certa é calar e andar.

Francisco Assis, um homem da direita do PS, diz desassombradamente o que é evidente: o PT é comparável ao PS e à social-democracia europeia, com a qual aliás faz parte da Internacional Socialista, tratá-lo como de esquerda radical é ridículo, a sua experiência de governo diz tudo. A desculpa da direita, alegando dois “extermismos” é somente um voz de ódio e uma forma de justificar o silêncio perante Bolsonaro. A realidade é que Haddad defende a democracia e respeita a liberdade, e essa diferença faz toda a diferença.

Diz muito do estado da direita tradicional que, por puro gosto do desastre, esteja disposta a fechar os olhos e desse modo a favorecer a vitória de um fascista como Bolsonaro, cuja última intervenção pública é garantir que os seus adversários políticos vão “apodrecer na cadeia”. Nem uma palavra de Cristas sobre as ameaças, nem um comentário. É indiferente. A liberdade é para ela uma coisa tão relativa, não é?

Francisco Louçã

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

A carta de Galileo Galilei | Francisco Louçã

Foi descoberta num arquivo de Londres a carta original de Galileo ao seu colega Benedetto Castelli, um matemático da universidade de Pisa, que defendia em 1613 que a Igreja Católica estava errada, que o Sol não anda à volta da Terra, e ainda que a investigação científica deve ser livre de teologia. Pensava-se que a carta estava perdida.

Em 1615 foi denunciado e depois julgado pela Inquisição.

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

Dez anos mal contados e que contam muito | Francisco Louçã

É o décimo aniversário da crise do subprime? Não, está mal contado. É certo que a bancarrota do Lehman Brothers, em setembro de 2008, com a sua dívida de 613 mil milhões de dólares, foi, à época, a maior na história dos EUA. Mas já em 2007 vários fundos da finança-sombra tinham entrado em incumprimento e desde março de 2008 as grandes falências multiplicaram-se nos EUA. Quando o Lehman caiu já a procissão saíra do adro e no fim desse mês já ia em mais sete falências: o venerável Bear Stearns (em Março); o gigante de seguros AIG; start-ups como o IndyMac, o Washington Mutual e o Wachovia; e entidades parapúblicas como o Fannie Mae e o Freddie Mac. A resposta foi mais liquidez, nacionalizar os ativos tóxicos e concentrar a banca. Dez anos depois, estamos pior em quatro domínios.

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Em 1990 a direita recusava a vinda de Le Pen a Portugal | Francisco Louçã in Jornal Expresso

Em 1990 a direita recusava a vinda de Le Pen a Portugal. Em 2018 indigna-se porque Marine Le Pen foi desconvidada. O que fez virar a direita?

No dia 5 de julho de 1990, algumas centenas de personalidades protestaram por escrito contra a vinda de Le Pen a Portugal. Apelidaram os que com ele se reuniam em Sesimbra como “pessoas não gratas” e o Presidente da República denunciou a iniciativa. Entre quem então recusou a vinda de Le Pen estava gente grada do CDS (Freitas do Amaral, Francisco Lucas Pires, Basílio Horta, António Lobo Xavier, Abel Pinheiro, Narana Coisssoró) e do PSD, então no governo (Emídio Guerreiro, Manuela Aguiar, Pedro Roseta, Montalvão Machado, Rui Carp, Guilherme Silva).
Em 2018, em contrapartida, a direita levantou-se indignada por Marine Le Pen não vir à Web Summit. Nuno Melo, no seu estilo leve, gritou contra a má educação do desconvite. Os jovens turcos do PSD multiplicaram-se em explicações atabalhoadas sobre como estariam na primeira fila a ouvir Le Pen e a detestá-la mesmo muito. O Observador explodiu em amargura, anunciando que vivemos em “fascismo obrigatório” (Helena Matos, secundada pelo inimitável Alberto Gonçalves) ou que Le Pen foi alvo de um “ataque fascista” (Sebastião Bagulho), mais uns salamaleques de Rui Ramos e por aí adiante, há sempre um concurso de Constanças naquele panfleto quando há festa ou festança. 

O que é que então mudou na direita portuguesa para que em 1990 protestasse contra Le Pen e em 2018 acarinhasse a vinda da sua herdeira? E para que em 1990 achasse que a democracia é uma barreira e em 2018 defenda que Le Pen deve ser normalizada? Vale a pena reparar nesta transformação porque é um sinal. Há a razão pretextual: se a esquerda critica o convite a Le Pen, a direita quer Le Pen. Mas isso é só pavloviano. Há ainda a razão ideológica, relançar o refrão da Guerra Fria: a esquerda combate os fascistas por ser igual. Mas isso também é grotesco. Há outro motivo, esse mais importante, e é que a direita está encantada com Steve Bannon e Trump, achando que, como só tem a propor o sofrimento ao povo, a forma de ganhar eleições é espalhar ódio.
O episódio do convite a Le Pen, em si, não vale nada, é só uma tontice de Cosgrave. Mas a fúria convidativa da direita revela algo muito importante: a partir de agora, toda a sua política será suja. Vale tudo. Vamos ter salada ideológica, campanhas de calúnias, blogs falsos, imprensa escandalosa. Bannon é o mestre.

Francisco Louçã

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

A lição de Saramago sobre a eutanásia | por Francisco Louçã in Jornal “Expresso”

José Saramago, entrevistado em televisão por Ana Sousa Dias como só ela sabia fazer, contava a história de um velho camponês que, à beira da morte, pediu aos familiares que o ajudassem a antecipar o fim porque não suportava mais o sofrimento irremediável. Ele sabia o que queria e eles, os familiares, ajudaram-no por amizade, explicava Saramago, porque respeitaram a sua decisão, mesmo se a choravam. Acrescenta Saramago: é isso que explica a escolha de Ramon Sampedro, o marinheiro tetraplégico que, em Espanha, lutou pelo direito a terminar a sua vida. As suas “Cartas do Inferno” mostravam como, não se podendo mover, achava que estava condenado a uma sobrevivência degradante e por isso pedia ajuda para morrer. Mais Saramago: “ninguém tem o direito de dizer a uma pessoa, você vai ficar aí, ligado a esses tubos e, por isso, devemos aceitar-lhe a morte se é isso que a pessoa quer”. “Não matamos”, continua, mas respeitamos quem nos diz “por favor ajudem-me”.

Saramago fala de bondade e de um direito que entende irrecusável. Percebo que a sua visão não seja aceite pelo Cardeal, por Cavaco Silva, por Assunção Cristas, por Jerónimo de Sousa, uns porque acreditam que a vida é um dom divino e outro porque pensa que a medicina vai a caminho de garantir a perpetuidade. São consciências e portanto respeitáveis. Ninguém deve questionar os seus motivos. Mas é bastante esta razão íntima que os leva a recusarem o pedido de alguém que não quer prolongar uma vida condenada e em sofrimento? Não deveria ela valer para si mesmos e não ser imposta a outros? Saramago respondia que cada pessoa sabe de si e esse é o princípio único da liberdade. A lição de Saramago é esta: respeita a liberdade das outras pessoas.

Tudo o resto, o ajuste de contas dentro do PSD contra Rui Rio e Balsemão, as homilias inflamadas em igrejas, as manifestações do PNR, a política que promete a vida eterna, isso não vale nada. Nada disso vale hoje, não existirá amanhã. Mas a lição de Saramago ficará sempre.

(no Expresso)

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

CUIDADO, Trump descobriu o poder do dólar | Francisco Louçã in Jornal “Expresso”

Pela primeira vez desde 2001, no primeiro trimestre de 2018 a conta corrente da China está em défice. Em 2007, logo antes da crise financeira internacional, a China tinha um superávite de 10%; durante as últimas duas décadas, os seus produtos industriais baratos ajudaram a proteger o consumo nas economias mais desenvolvidas e impulsionaram o crescimento da economia mundial (e chinesa). Trata-se de uma situação excecional, em grande medida provocada por uma balança negativa de serviços (pelo aumento do turismo chinês), dado que a China continua a exportar mais mercadorias do que importa. Entretanto, a redução da poupança interna indica como a sua vida social se está a modificar. Xi Jinping está a proteger-se das tensões dentro de portas.
Este não é o único sinal de arrefecimento da economia mundial, que aliás só recuperou lentamente e de forma desigual desde a crise de 2007 e que, no caso da Europa, se prolongou durante oito anos. A China pode vir a crescer só 1% este ano, na Europa prevê-se 1,6%, no Japão antecipa-se nova recessão e nos Estados Unidos, de recuperação mais pujante, a projeção é 2,3%. Sempre menos do que se esperava há meses. São nuvens carregadas no horizonte. Só que nenhuma é mais ameaçadora do que Trump.

Armas apontadas para o Irão…

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Tambores de ódio | Francisco Louçã

Afinal, Trump é um senhor. É o nosso chefe supremo, o bombardeador-mor, o homem firme ao comando do leme. Qual instável, é uma rocha. Qual irrefletido, é um sábio. Qual desinformado, é um profeta. Tem as qualidades da decisão e da “oportunidade”, como assinala ponderadamente o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os dirigentes europeus põem-se em fila para o beija mão. A Síria está pacificada e tal era o enlevo de alguns meios de comunicação que se apressaram a noticiar as manifestações em Damasco contra o bombardeamento como se fosse a multidão a sair à rua para saudar os Tomahawks purificadores. A populaça da França e do Reino Unido, que tinha mais em que pensar, dorme tranquila. Tudo resumido, esta lição não tem novidade, não há milagre que não possa ser assegurado por uma boa carga de bombas.

A glorificação de Trump é só um episódio, talvez nem o mais importante, da cruzada de realinhamento ideológico que é sempre o prenúncio de uma estratégia de tensão e de escalada de conflitos. Sugiro ao leitor e à leitora que observe esta cruzada, a que ergue a Segunda Guerra Fria, pois ela é mais determinante do que os pretextos que a alimentam, que valem tanto como as alarmantes armas de destruição massiva que Saddam escondia no Iraque. E essa Guerra não começou no sábado, com as bombas sobre a Síria, nem vai parar por aqui.

A Segunda Guerra Fria tem um laboratório e não é no Médio Oriente, onde as leituras são sempre geoestratégicas. O seu primeiro ensaio recente foi no Brasil, onde tudo é mais terra a terra e não se pode invocar um poder oriental oculto como inimigo. Aí, a máquina de conformação montada em torno do golpe e da naturalização do regime de exceção judiciária foi de gabarito e, não por acaso, foi a primeira que chegou até nós, neste cantinho à beira-mar plantado.

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CREDO, elas são perigosas | Francisco Louçã in Jornal “Expresso”

Não é o único dos maiores escritores do nosso tempo que se comporta como um pateta, mas talvez Vargas Llosa seja particularmente exibido e insistente. Autor de livros magníficos como a “Conversa na Catedral” ou “A Guerra do Fim do Mundo” e tantos outros, Vargas Llosa teve sempre uma intervenção pública ativa: foi castrista, foi amigo e inimigo de Gabriel Garcia Marquez, redescobriu-se conservador. Mas foi recentemente que escolheu tornar-se protagonista: foi o candidato da direita à presidência do seu Peru natal, foi feito marquês por Juan Carlos I e as suas aventuras não terminaram aí, ainda há pouco andou pela Catalunha em prol do rei. Prémio Nobel da literatura em 2010, continuou a publicar e, já com os seus 80 anos, deu à estampa “Cinco Esquinas”, que deve ser o seu pior livro. A um grande escritor perdoa-se toda a escrita.

Talvez Llosa escusasse, no entanto, de perseguir fantasmas e ódios de estimação. Há duas semanas, levou para a sua coluna no El Pais um desses ódios, desta vez contra o feminismo. A acusação é tremenda: são as “Novas Inquisições”. Sentencia: “o feminismo é o inimigo mais feroz da literatura”, pior do que Trump e Putin, pior do que as religiões e ditaduras. Por causa do feminismo e nada menos do que o feminismo, a “literatura pode desaparecer”. Desaparecer? A literatura? O homem perdeu a cabeça, perguntará a leitora mais moderada? O feminismo vai terminar com a literatura? Acabam os livros, os poemas, o teatro, as conversas, a comunicação, a vida? Por força do feminismo, esse monstro tremendo cujas garras rasgam a Terra?

Sim, responde Vargas Llosa. Querem um exemplo? Ele tem um. É que a Gallimard tinha previsto publicar a obra completa de Céline e desistiu, porque incluiria textos antissemitas de um escritor monumental que foi partidário dos nazis. Só que esta recusa nada tem que ver o feminismo ou com as feministas, mas unicamente com o medo daquela editora de aparecer associada a um discurso de ódio. De passagem, Llosa cita outro caso, o de uma escritora que criticou o Lolita de Nabokov. Também é fraco exemplo pois, mesmo sendo uma narrativa sobre a pedofilia, pouco sentido fará sugerir-se a sua ocultação. A literatura, como toda a arte, deve ser livre de se exprimir em todas as facetas da vida e das opiniões humanas, porque não deveria estar sujeita a um critério de gosto, ou de preferência moral, ou de ensinamento público. A literatura é simplesmente o que os autores escrevem.

Só que nunca foi assim. O livro As Vinhas da Ira, de Steinbeck, foi proibido em alguns dos estados dos EUA ao mesmo tempo que John Ford fazia dele o filme que ganhou vários Óscares. Livros de Darwin e Sartre foram apreendidos sob Salazar, bem como Cardoso Pires, Ary dos Santos, Jorge de Sena ou Jorge Amado. Harry Potter foi proibido mais recentemente nos Emirados Árabes Unidos e Alice no País das Maravilhas já foi proibido na China. Lembra-se do CDS a manifestar-se na rua pela proibição do Je Vous Salue, Marie, de Godard? Culpa das mulheres e do feminismo? Olhe que não.

O que o feminismo tem questionado é a violência e a discriminação. Esse seu pulsar universalista contra a exclusão e o desprezo tem sido um dos contributos mais fecundos para a democratização dos tempos modernos. Por isso mesmo, a literatura que regista todas essas razões e emoções, as dos sequestradores da liberdade, as dos abusadores, as das vítimas, as da dignidade, todo esse caldo de vida humana é uma voz essencial para nos conhecermos. Vargas Llosa, cada vez mais perdido nos seus pequenos ódios e no medo pela outra, dá-nos aqui um magnífico exemplo de como podemos aprender com a fronteira escorregadia entre a arte e a vida. Ele, que gosta pouco da liberdade para os outros (e outras), tem um medo do feminismo e da voz das mulheres que é uma esplêndida homenagem do vício à virtude.

(no Expresso)

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

Eu já tive namoradas de todas as cores | Francisco Louçã

Há um momento de viragem em qualquer debate sobre racismo, comunidades minoritárias ou culturas diferentes: é quando o último argumento de autoridade é que “eu até tenho amigos pretos”. É no que estamos na defesa do candidato racista do PSD em Loures. Mas já ouvimos essa escapatória muitas vezes, não é verdade?

Voltemos um pouco atrás. Este argumento dos “amigos pretos” não é o primeiro, ele tem de ser poupado para quando for desesperadamente necessário para restabelecer a normalidade do orador, sobretudo se se sentir suspeito de deriva envergonhante. Antes dessa evocação dos amigos fora de portas, veio a substância: os outros, os “pretos”, comportam-se de modo inaceitável ou têm hábitos ou atitudes que contrastam com as “nossas” e portanto devem ser disciplinados.

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Um virtuoso do racismo | Francisco Louçã in blog “Tudo Menos Economia”

propósito das declarações homofóbicas de Gentil Martins, médico, ou das declarações xenófobas de André Ventura, dirigente e candidato do PSD em Loures, houve quem ensaiasse uma fuga indiscreta com um protesto contra o “politicamente correcto”, uma espécie de censura que intimidaria a liberdade de expressão dos coitadinhos. Aceitar essa discussão admitiria que se trate de um simples problema de linguagem, quando é uma questão de atitude social e de discriminação que fere porque pretende ferir. Lastimo esse nevoeiro, tanto mais que se conhece bem como os termos mobilizam os significados: se hoje ninguém usa a sério uma expressão do tipo “fazer judiarias”, é simplesmente porque sabemos o que foi a perseguição a judeus ao longo de séculos e que culminou nos tempos da nossa perigosa civilização.

A linguagem deste caso só é interessante porque o dirigente do PSD, tendo provocado uma tempestade política, veio reafirmar a sua posição, amparado pelo apoio de Passos Coelho e da chefatura laranja. Ou seja, fez questão de manter as suas palavras e de as realçar com mais boçalidades (desejar que o primeiro-ministro vá de férias para sempre, o que é que isso quer dizer?). Ele, doutorado em Direito e professor universitário, quer fazer-se notar por ser boçal. É o estilo que faz a sua candidatura, é aí que joga o seu destino. Ele quer ser conhecido no país pelo modo Trump.

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Em Alepo está uma fronteira da humanidade | Francisco Louçã

francisco louca02 - 200Em Alepo, a devastação da cidade lembra outros crimes desta dimensão e talvez por isso suscite estes momentos de emoção: isto é o que já vimos ou de que nos lembramos. Alepo é Faluja, ou os campos palestinianos de Sabra e Chatila, ou Grozni, ou Srebrenica, ou Gaza, ou também Varsóvia ou Guernica, os lugares onde um manto de bombas destroçou a vida das populações, alvos e reféns da guerra mais suja. Mas Alepo é também a nossa contemporânea Mosul, depois da chacina dos Yazidis pelo Daesh e onde os civis continuam aprisionados. Alepo é uma das vergonhas do século XXI e não é única.

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Fidel e o encanzinamento da direita | Francisco Louçã in jornal “Público”

che_guevara_fidel_castroO problema da direita com Fidel não é a democracia, é flutuarem no tempo ao sabor dos ventos e da vontade de ajustes de contas caseiros.

Fidel Castro | Francisco Louçã in Jornal “Público”

francisco louca02 - 200Com a morte de Fidel Castro, desaparece uma das últimas grandes figuras que marcaram o século XX. Dirigente da única revolução socialista vitoriosa no Ocidente, enfrentou o maior poder da nossa era, o de Washington, e resistiu a invasões e agressões militares, a inúmeras tentativas de assassinato, ao bloqueio permanente e a todas as pressões. Fidel sai da vida como um vencedor.

À frente de um pequeno exército guerrilheiro, de apenas cinco mil homens e mulheres (só tinha sobrevivido uma dúzia quando desembarcaram do Gramna para iniciar a luta), conquistou Havana porque o povo não tolerava mais aquela combinação de ditadura e máfia dos casinos, a subserviência e a miséria que alimentava a corte de Fulgêncio Batista. A revolução cubana tinha essas raízes na esperança de uma vida digna e é por isso que, ao contrário de outros regimes, manteve uma base popular tão expressiva e se tornou um exemplo continental.

Fidel nunca dependeu estritamente de Moscovo: tentou criar a Tricontinental para desenvolver uma acção internacionalista autónoma, desencadeou sem autorização do Kremlin a operação militar para salvar Angola da invasão sul-africana – e venceu o mais poderoso exército de África, contribuindo assim para a futura derrota do apartheid – e prosseguiu uma política latino-americana baseada na estratégia de criação de um ciclo anti-imperialista. Também é certo que, noutros casos, se submeteu a razões de conveniência (Havana, como Moscovo e Pequim, opôs-se à independência de Timor). Em qualquer caso, a sua independência reforçou a posição de Cuba.

Durante estas décadas, Cuba sofreu de tudo: um bloqueio destruidor, uma vinculação económica aos interesses da URSS que lhe impôs a monocultura do açúcar e, depois, uma transição difícil, sem petróleo e sem indústria. Sobreviveu, com grande custo, mas constituindo uma notável excepção na América Latina, com níveis de desenvolvimento distantes de outros países e com resultados notáveis, sobretudo na medicina e educação. Internamente, manteve um regime de partido único, o que se impôs sempre contra a capacidade de expressão popular e de mobilização democrática, mas, ao contrário da história trágica da URSS e da mortandade de comunistas e opositores que foi a marca de Estaline, permitiu e até estimulou formas de diversidade cultural de que são exemplo a publicação dos livros de Leonardo Padura (leu “O Homem que Gostava de Cães” ou os seus romances policiais?) ou o cinema crítico (por exemplo, “Morango e Chocolate”, de Tomas Alea em 1994, no auge do período mais difícil da economia cubana). Foi portanto uma liderança popular e marcante.

Marcelo Rebelo de Sousa, homem de direita, resumiu tudo ao dedicar a sua visita a Cuba ao esforço de conseguir um encontro com Fidel. Agora, terminou esta história que nunca absolve, mas que compreende e que luta pela memória.

Público

Duas ou três coisas que sei sobre a vida | Francisco Louçã

fl(este texto foi publicado a 12 Novembro 2010; reproduzo-o agora pela mesma razão, falar aos amigos e dedicá-lo a quem me ensina toda a vida; a foto é de 1991, com João Salaviza)

Não sei como agradecer as generosas mensagens que me mandaram. Mas lembro-me de algumas coisas que a vida me tem ensinado.

Sei que tenho uma dívida. Estive uns breves dias preso em Caxias com alguns amigos, por causa de um protesto contra a guerra na passagem do ano de 1972. Desses camaradas, um deles, que já morreu, Francisco Pereira de Moura, só o voltei a encontrar muito mais tarde, quando regressei à faculdade. Tinha sido convicto católico conservador, membro da Câmara Corporativa, mas olhou para o seu país e fez frente à ditadura. Foi por isso o primeiro candidato da oposição, foi preso, voltou a ser preso. Foi demitido de professor universitário. Chegou ao 25 de Abril, foi libertado e foi ministro, e saiu quando achou que o seu tempo tinha chegado, para voltar a dedicar-se à sua paixão, o ensino. Ele sabia da dívida que tinha para com o país, o trabalhador explorado, o pobre, a mulher sem direitos, as pessoas sem dignidade. E sabia que essa dívida se paga sempre, de todas as formas. Eu sei que todos temos essa dívida.

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Afinal a diaba sempre chegou em setembro | Francisco Louçã in “Público”

mariana mortáguaNa falta do Diabo, venha a diaba.

Passos Coelho bem avisou: é em setembro que chega o demo. E, se não chegou, então mais vale apregoá-lo, alguém acreditará. Ou, como mandam os spin doctors, se há um incêndio em minha casa é melhor atear fogo à cidade porque assim ninguém nota – ninguém nota nem as sondagens tristes, nem a sordidez do apadrinhamento por Passos Coelho do livro do Saraiva, nem a dificuldade de ter candidatos autárquicos, nem o desgosto de não ter havido sanções até agora.

Mariana Mortágua tem então mais uma medalha ao peito: conseguiu juntar de novo o PSD e o CDS, o que não estava nada fácil. Conferência de imprensa conjunta, vociferação, ataque pessoal, tudo como seria de esperar. Afinal, uma pequena taxa sobre os patrimónios imobiliários de mais de um milhão de euros é “ilegal, imoral e inconstitucional”, isto dito pelos ex-governantes que impuseram sem eficácia um imposto de selo de 1% sobre os patrimónios imobiliários de mais de um milhão de euros. Vê-los portanto rasgarem as vestes, porque o investimento vai morrer, porque os franceses se vão embora, porque os Vistos Gold já ninguém os quer, porque os poupadinhos vão ficar prejudicados, porque as heranças serão devastadas, tudo seria comovente se tivesse sentido. Pois que não, como é que se viu, uma deputada discutir soluções fiscais, então não é que ela tomou de assalto o Terreiro do Paço, oh da guarda?

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Silly Season 3: Os combates nevróticos contra o burquini | Francisco Louçã in “Público”

burkini foi proibido por várias câmaras municipais francesas, o tribunal interditou a proibição, os presidentes das câmaras insistem. Esta tragicomédia lembra o que Sartre escreveu no seu prefácio aos Damnés de la Terre: “A França, outrora, foi um grande país, tenhamos em atenção que não se torne em 1961 o nome de uma nevrose”. Foi há mais de cinquenta anos. Mas, mesmo agora, será só uma nevrose?

Parece que não, é também uma política. Valls, primeiro-ministro socialista, bem como Sarkozy, ex-presidente e candidato presidencial, precipitaram-se no apoio à extrema-direita francesa nesta proibição. Parece que, para esta gente, o fato de banho em causa lembra que aquelas mulheres são muçulmanas, e esta religião suscita comoção pública e ameaça à ordem – pelo menos no caso pessoal desses políticos.

burk-1Alguns jornais e revistas lembraram que um fato de banho deste tipo é usado por funcionários públicos na Austrália, que as mulheres judias ortodoxas usam um parecido (na imagem ao lado), ou que há uns anos em Portugal era imposto por lei que os homens cobrissem grande parte do corpo e as mulheres mais ainda, ou que as convenções e roupas mudaram ao longo dos tempos de acordo com costumes e histórias. A moda pode aliás recuperar o que tinha sido abandonado, como se verifica no anúncio que reproduzo ao lado: seria esta mulher acusada de ser uma muçulmana perigosa e obrigada pela polícia a despir-se numa praia de França? Alegar que há um padrão de roupa que é ilegalizável parece portanto um absurdo.

burk-2O argumento sobre a religião muçulmana é ainda mais grotesco porque se resume a isto: incomoda que aquelas mulheres pareçam ser o que são, muçulmanas. Um jornal francês lembrava que, em setembro de 1933, houve um jornalista que criticou os judeus a propósito da tomada do poder por Hitler na Alemanha: “É evidente que faltou prudência aos Judeus. Fizeram-se notar demasiado”. Alguns usavam kippahs na cabeça e, no caso dos judeus ortodoxos, um padrão de roupas que era identificável nas ruas (e o dos funcionários da City de Londres não é identificável nas ruas, e podem ser bem perigosos?). Fizeram-se notar e veio o nazismo obrigá-los a usarem uma estrela amarela, por via das dúvidas.

Nevrose, então? Uma política enlouquecida, correndo atrás de pretextos, ansiosa por marcar novas discriminações? Uma sociedade angustiada por fronteiras, por demarcar objectos e pessoas que possam ser detestados? Talvez seja simplesmente e somente mais um desses episódios das pequenas lutas de luz e sombra em que se testa a nossa cultura e em que se dão passos em frente ou para trás no respeito pelos outros e na conformação das nossas comunidades.

O debate sobre a legalidade do burkini é simplesmente um sintoma da profunda desorientação em França. A bússola avariou-se e isso terá sempre consequências mais surpreendentes e porventura chocantes.

Francisco Louçã in Jornal Público

Crime é crime | Francisco Louçã | in blog NOTÍCIAS DO BLOQUEIO

francisco-louca - 150Francisco Louçã, respondendo a João Miguel Tavares, no “Público”, acaba por sublinhar aspectos muito importantes do que é uma certa crónica judiciária, de que os jornais e muitos jornalistas se tornaram arautos, funcionando um pouco como tribunal de conveniência para os assuntos da corrupção. No artigo de Louçã, clarifica-se esta problemática, que tem posto por aí as ideias em estado de sítio, quando, na parte final, afirma: “Portanto, se Tavares deixasse de lado os ódios pessoais que tão mal o colocam, seria um tudo nada mais sensato e discutiria política, banca e outras malfeitorias sem ter que gritar contra toda a gente de que não gosta que “é corrupto”. Ora, não há “corrupção de esquerda e corrupção de direita”, porque crime é crime. Até lhe digo mais, caro Tavares, para o aliviar da sua angústia: eu só ponho as mãos no fogo por pessoas que conheço muito bem. O que conheço do PT, ao contrário, é o Mensalão, que condeno, ou a compra de favores, que detesto, e espero que todos os responsáveis respondam perante a justiça. Mas é perante a justiça, entende, Tavares? Não é perante juiz que faz parte do partido oposto, ou perante sentença transitada em julgado nos editoriais do Globo, porque isso seria o mesmo que entregar a presidência do nosso Supremo Tribunal de Justiça a um Octávio Ribeiro. E para isso não conta comigo”.

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Um imbróglio em Lisboa | Francisco Louçã in “Público”

francisco louca02 - 200Quem se lembrou de uma coisa destas? Admitamos que o seminário “luso-brasileiro” que vai decorrer na Faculdade de Direito de Lisboa já estava programado antes da crise desencadeada pela golpaça político-judicial em curso no Brasil. Se assim for, há uma questão a que falta responder: como é que se lembraram de marcar um seminário sobre o futuro constitucional do Brasil (e de Portugal, olha só) para o 52º aniversário do golpe que derrubou um presidente eleito e instaurou uma ditadura militar? Como não há coincidências na vida, ou fugiu o pé para o chinelo ou é uma declaração de guerra com um atlântico pelo meio. Presumo que seja o chinelo.

Também não lembraria a ninguém que o vice-presidente brasileiro, e primeiro potencial beneficiário da eventual deposição de Dilma Roussef, escolha sair do país por uns dias precisamente quando o seu partido, o PMDB, tomará a decisão de sair do governo e se juntar aos parlamentares derrubistas. Mas é isso que anuncia o programa do evento. Pior, acrescenta outros pesos-pesados da direita, estes do PSDB, José Serra e Aécio Neves, sendo que o primeiro não estava previsto no programa original. O que os levaria a levantar voo do Brasil para se limitarem a conspirar por telefone?

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O “quando” do “colapso” europeu | Francisco Louçã in “Público”

francisco loucaHá dias discuti aqui o “se” do que Assis chamou, também no PÚBLICO, de “colapso” europeu (ele referia-se ao “colapso moral” se for aprovado esta semana o acordo com a Turquia). Agora refiro-me ao “quando” de um outro colapso, o do sistema financeiro, onde se acumulam riscos vários importantes. O risco é tão evidente que o governador do BCE não fala de outra coisa.

Esse perigo tem duas facetas: deflação e estagnação. O risco de queda sucessiva da procura, em particular do investimento (esse é o primeiro efeito da deflação), mas também dos salários e pensões e portanto do consumo, conduz à redução das perspectivas de recuperação económica. É o que se está a passar nas principais locomotivas europeias que aterraram na estagnação, depois de um longuíssimo período de recessão (ou de duas recessões seguidas) em que se manteve sempre um nível elevado de desemprego. O desespero de Draghi é por isso compreensível: ele sabe que reduzir as taxas de juro tem resultados insignificantes, que a política de dinheiro barato já não tem impacto, e pede aos governos que façam o que ele não pode fazer, que aumentem a despesa … mas os governos não podem usar políticas expansivas por causa das regras orçamentais, que entre outros são drasticamente impostas pelo próprio BCE. É o círculo vicioso perfeito.

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A biblioteca de Eco e os cinco minutos de jazz | Francisco Louçã in Blog “Tudo Menos Economia”

francisco louca02 - 200As evocações homenegeatórias a Umberto Eco destacaram o filósofo que devolveu a curiosidade à filosofia, o escritor que se divertiu com os seus romances (havia nele um Salgari que nunca escondeu e que norteou a sua busca das terras incógnitas) e o homem cívico que compreendeu que a força de Berlusconi era só a nossa fraqueza, nossa, dos cidadãos desprotegidos perante o tumulto comunicacional e a perda de identidades que a pós-moderna cosmologia impõe. A vertigem do efémero era o ódio de Eco, como se pode compreendê-lo. Eco, como, entre nós, Eduardo Lourenço ou João Martins Pereira, ou Augusto Abelaira, ou Urbano Tavares Rodrigues, era o Montaigne de um tempo novo que ainda brande a modernidade contra o culto do flash, da cosmética e do pronto-a-vestir que dá conforto às transumâncias ideológicas.

Por isso mesmo, a biblioteca era a sua vida. Mas não qualquer biblioteca. Sem labirintos, como a do Nome da Rosa, embora talvez com esconderijos, porque os há sempre, uma biblioteca pessoal não deve ter mais de trinta mil livros, dizia Eco para si mesmo. É muito livro, não sei se ele os pensava poder ler todos, mais os que lá não estão e passam por nós. Na verdade, ler esses livros não é a medida de um bibliotecário, é simplesmente viver com eles, com o gosto da novidade, com o espírito do coleccionador, com o fascínio das ideias escondidas: quando lemos um bom livro nunca terminamos de o ler.

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Social democracia sempre | por Francisco Louçã | in Público (Tudo Menos Economia)

francisco louca02 - 200direita portuguesa é um fado triste, para mais cantado com voz vinda do além (ou de fora).

Passos Coelho chama-lhe “social-democracia sempre” na sua esforçada recandidatura à continuidade em que promete renovação. Ora, o nome da candidatura, esta “social democracia sempre”, é uma floresta de enganos. O PSD, está bom de ver, não é um partido social-democrata, é de há muito um partido liberal pragmático que dá muito mais importância à venda da EDP ao capital internacional, mesmo que seja ao Partido Comunista Chinês, e ao corte das pensões, que festeja, do que a qualquer política distributiva, que abomina. Social-democracia não existe em Portugal, talvez excepto num partido meritório que vale 0,7%.

Chamar à aventura de austeridade e de liberalização, que a direita protagonizou, uma “social-democracia sempre” é por isso uma graça. Em homenagem do vício à virtude, Passos Coelho devia chamar-lhe somente pelas iniciais, SDS, pois com o nome PàF a artimanha resultou e é bem melhor que ninguém se lembre de perguntar pela tal da social-democracia.

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Francisco Louçã | A quadratura do círculo venceu?

francisco louca

Triunfo de António Costa, depois de últimas horas de negociações difíceis, dizem agora alguns jornais (mesmo naqueles onde se escrevia que o Orçamento era uma geringonça e que a Comissão ia varrer esta tropa fandanga à bordoada, como ela sem dúvida merece, acrescentavam). Os corajosos porradistas foram-se desvanecendo à medida que os porta-vozes de Bruxelas iam amenizando o tom, e acabaram mesmo a comunicar altivamente que, “a bem da Pátria”, preferem ficar calados. Bruxelas reserva entretanto – e majestaticamente – a decisão de aceitar o Orçamento que só por regra de abuso institucional é sujeito à sua consideração. Até os juros desceram. Tudo termina como tinha que terminar.

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Como vivem os donos disto tudo? – Debate

DebatesBURGUESES

O MUNDO É DOS RICOS? | Francisco Louçã e Jorge Costa andam nisto há muito tempo. João Teixeira Lopes também. Os três resolveram dizer-nos como vivem os donos disto tudo e porquê.Escreveram este livro para contar a história. Como acaba assim um Banco como o BES? O mundo tem mesmo que pertencer a meia dúzia de famílias? Sempre foi assim? E não pode ser diferente? Vamos conversar com dois dos autores desta obra: Francisco Louçã e Jorge Costa. Considerem-se convidados. Apareçam. (José Teófilo Duarte)

O Muito cá de Casa é uma iniciativa da DDLX e da Câmara Municipal de Setúbal – Divisão de Cultura, Jornal SemMais e BlogOperatório.

 

Os Burgueses – Francisco Louçã

Os Burgueses

Francisco Louçã, Jorge Costa e João Teixeira Lopes

Quem São. Como Vivem. Como Mandam.

No seguimento de Os Donos de Portugal e Os Donos Angolanos de Portugal, Os Burgueses oferece-nos a caracterização de alguns dos elementos mais marcantes para a hereditariedade da vida da burguesia portuguesa no séc. XX e nos nossos dias, tocando em pontos como o consumo, a educação ou as escolas e explorando a mecânica da pertença e da transmissão da condição de burguês.

Um retrato direto, concreto e muitíssimo bem fundamentado da classe detentora do poder e da influência em Portugal do século XXI.

No portal www.osburgueses.net estão disponíveis documentos, elementos gráficos, bases de dados, resumos dos capítulos e outros materiais deste estudo.

Francisco Louçã | Entrevista com Viriato Teles

contas_08flcProf. universitário, deputado e dirigente do Bloco de Esquerda. Tinha 17 anos em 25 de Abril de 1974 e vivia em Lisboa.
Os amigos gabam-lhe a afabilidade, o sentido de humor, a clareza do discurso, a boa educação. Os adversários vêem nele um político frio e calculista. Mas todos lhe reconhecem a inteligência superior, a competência política, a combatividade. É o único dirigente político a quem os correlegionários tratam pelo diminutivo: o Chico, o camarada que dirige sem precisar de ser secretário-geral ou presidente. Um entre iguais, porém diferente de todos os outros.
O que resta da extrema-esquerda de 74-75 está hoje maioritariamente encaixado nos gavetões do poder de alterne: uns foram ministros, outros esperam vir a ser, e os que optaram por ficar de fora estão regra geral esquecidos e silenciados. Francisco Louçã é um sobrevivente, e é mais do que isso: é também o responsável pelo abanão político que nos últimos anos do século XX evitou o marasmo absoluto em que ameaçava afundar-se a Esquerda portuguesa.

Ler mais:  http://www.viriatoteles.com/net/livros/contas-a-vida/francisco-louca (FONTE)