POSTAL DE FIM-DE-SEMANA | Francisco Louçã: uma história difícil | por Luís Osório

1.
Um texto difícil, uma memória que não me é fácil. Não por ser algo que esconda; na verdade os dois anos em que militei no PSR foram felizes e cobertos de experiências políticas, ilusões ideológicas e amorosas, desilusões. Mas prometi regressar a Francisco Louçã e cumpro agora o melhor que sei.

2.
Em poucas linhas: militei na extrema-esquerda trotskista entre os 19 e os 21 anos. Via Francisco, por todos conhecido como Chico, como a figura que desempenharia um papel na moralização da política portuguesa – os seus discursos eram poéticos e revolucionários; a sua superioridade retórica esmagava; as ideias e a capacidade de liderança indiscutíveis. Nunca se desviava do que considerava essencial, nunca passava noites no Bar das Palmeiras, sítio de reunião e divertimento dos jovens do PSR. Muitos bebiam cerveja, alguns fumavam haxixe e todos efabulavam sobre se estariam à altura da revolução quando e se ela chegasse. Ouvíamos Clash, Doors, Sex Pistols. Com o João Aguardela, vocalista e líder dos Sitiados, jovem banda ainda desconhecida, organizávamos na companhia do mítico José Falcão as movimentadas e inesquecíveis noites de um tempo que nunca esquecerei.

3.
Noites em que Francisco raramente aparecia. Nunca ficava quando as luzes se apagavam, nunca bebia mais do que uma cerveja, nunca o vi a falar sobre afetos, sobre ser pai ou qualquer outra coisa que o ligasse às pessoas fora da estrita esfera política. Mesmo os mais próximos conheciam-lhe as fronteiras; não por acreditarem que ele tivesse segredos, apenas por saberem que a política e o seu exercício eram a única coisa verdadeiramente essencial. Mais nada.
Um dia perguntei-lhe se tinha amigos de direita. Respondeu-me que não, como poderia isso ser possível? Manter uma amizade com alguém que, por exemplo se alistasse no PSD e ocupasse um cargo público, seria uma contradição nos termos. Para Francisco nunca existiu, e presumo que não exista, separação entre política e amizade ou outra qualquer categoria que distingue o ser humano.

4.
Alguns que conheci no caminho diziam-me o pior. Louçã tinha o sangue de Alberto Neves, o seu avô materno. Não se podia confiar porque a única agenda que defendia era a sua própria, certamente que um dia alistar-se-ia no PS ou no PSD. Defendi-o sempre desses ódios ideológicos que o mundo político é pródigo; como poderiam julgar as pessoas pelo percurso de gente da sua família?
Apesar da ingenuidade da pergunta não me arrependo da defesa. A ortodoxia revolucionária de Louçã não era discutível, imaginá-lo a ter um percurso parecido com o avô é tão impossível hoje como há trinta anos atrás. Mas acredito que, apesar de ele o desvalorizar, isso pesava na sua memória. O anarco-sindicalista Alberto das Neves fundou o Partido Comunista e participou no primeiro e histórico Congresso do PCP, em 1923. Muito rapidamente abandonou o partido, como aconteceu aliás com tantos anarquistas desiludidos com a evolução dos comunistas para um modelo ferozmente organizado. Foi preso, trocou a metrópole por Moçambique onde a presença da PIDE era suave e só regressou a Portugal após o 25 de Abril. Acabou como deputado do PSD nas constituintes. Sim, talvez esta memória lhe fosse ou seja pesada. Certamente sentia que alguns comunistas, o olhavam com o sorriso que dedicavam aos arrivistas. Algo que nunca foi.

5.
Havia uma história que não se importava de contar. Um episódio em que o seu nome continua a ser bastas vezes esquecido. A 30 de Dezembro de 1972, um grupo de católicos contra a guerra colonial invadiu a Capela do Rato e avisou o Padre João Seabra que durante 48 horas fariam ali mesmo uma greve de fome. Nuno Teotónio Pereira e alguns outros apelaram a cristãos e não cristãos para que se juntassem à iniciativa – Louçã, com 16 anos, aceitou o desafio e juntou-se ao protesto. Mais de meia centena de pessoas acabaram presas e o jovem estudante, ateu e revolucionário, a quem todos chamavam Chico, esteve preso e isolado durante uns dias. Em Caxias foi interrogado, pressionado e aos militantes do meu tempo contou sobre a inevitabilidade do medo.
Por uma questão de limitação cronológica é o seu grande ato de bravura e, talvez por isso, não se importasse de a contar aos mais jovens. Mas sempre como um claro exemplo político de que era possível um entendimento entre pessoas diferentes – fazia-o no fundo para legitimar a esperança de que, um dia, o PSR poderia ser um partido capaz de influenciar uma plataforma mais ampla. Já não assisti a essa fase da história, saíra com o epíteto de jovem burguês condenado ao oportunismo. Já não assisti, mas aposto que Chico deve ter outra vez contado a história da tomada da Capela do Rato para provar aos seus a bondade do nascimento do Bloco de Esquerda.

6.
Do que me lembro mais? De pouca coisa, quase nada. Quando o imagino vejo um idealista que jamais prescindirá de se desviar para que outros lhe ocupem o lugar, como aliás aconteceu. Imagino-o outra vez a separar as folhas do jornal Combate na sede do PSR; recordo-o a criticar a classe política que rotulava como oportunista, a definir Deus como um embuste e a televisão como droga dura que leva à dependência e ao embrutecimento.

7.
Recordo-o a definir a História mais como uma tragédia do que como uma epopeia. Porquê, perguntei-lhe. «Porque é feita de expetativas e estas, a maioria delas, são desfeitas. Imaginar o movimento operário tradicional comunista, com socialistas e republicanos a tomar Paris quando as forças de De Gaulle estavam a centenas de quilómetros; imaginar o Maio de 68, o 25 de Abril ou a queda do franquismo, é viver com a presença da marca da derrota. Pensar a história é um exercício trágico e não deixa de ser indispensável por isso. O pensamento de curto prazo é sempre um erro que se paga caro, sobretudo quando o que pensamos é suficientemente grande».
Recordo-o a falar sobre o cinismo dos jornalistas. E das críticas que fazia aos que se viciavam com o poder. E do sorriso fechado quando lhe atirávamos com a média de 19 no ISEG, uma das maiores de sempre, e com o brilhantismo de uma tese de doutoramento a que chamou Turbulência na Economia.

Paradoxalmente estive mais próximo dele do que de qualquer outro líder político. Mas dos outros sou capaz de falar mais facilmente. Do Chico é mais difícil.

LO

Retirado do Facebook | Mural de Luís Osório

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