Obras completas II | A Casa do Mundo | Tiago Salazar | Prefácio de Miguel Sousa Tavares

Chamar hoje Velho Continente à Europa é um anacronismo. As transformações verificadas nos últimos anos originaram um admirável mundo novo, com mil encantos ainda por descobrir. Da luxuosa Riviera Basca à nova-rica Moscovo da era pós-soviética, dos históricos portos mediterrânicos da Côte D’Azur às montanhas búlgaras ou às capitais do Báltico, o viajante contemporâneo depara-se com a elegância e o charme de lugares históricos, mas descobre também novas tendências e novos mundos, onde palavras como hip, trendy ou cool são termos que caucionam a modernidade. A Casa do Mundo é um livro de apaixonadas narrativas de viagens de um escritor e repórter pasmado com o que o admirável mundo velho tem de novo . 

“”Neste livro, o Tiago Salazar mostra de que matéria é feito o seu sonho de viajante. Um homem sozinho na Casa do Mundo, sem nenhuma outra profissão de fé que não a de conhecer o mundo e nele se sentir em casa.”

Miguel Sousa Tavares

FILOSOFIA DO PÉNIS | Tiago Salazar

O título da crónica merecerá a vossa atenção. Acompanhado dos seus parceiros de carcela, o pénis diz muito de um homem. O meu pai é um velho adorador dos feitos do seu falo, e assim cresci debaixo da exortação do pénis como uma apologia de Adónis. Cedo deduzi que nada mexe tanto com a confiança do que a funcionalidade exemplar de um pénis.

Pode-se vivissecar a conduta de um homem pela sua relação com o pénis. Conheci um sujeito que para aumentar a dimensão do seu membro atava uma guita envolta num tijolo e deixava-se estar nesses preparos indo a correr medir o suposto crescimento do dito após as sevícias auto-infligidas. Esse ciliciar penoso leva à corrida de poções milagrosas, para aumentar o que a natureza não forneceu, como o famoso creme de carqueja e manjerico que se diz ter contribuído para a demografia de Al-Hama ao tempo dos árabes.

Quem não enverga um pénis digno de registo socorre-se da importância do seu manejo para consolo de quem o frequenta. Agradece a condescendência perante o desempenho. São por regra tipos aplicados, que dão o litro. Conheci outro sujeito que se queixava de borregar no acto por ter um aparelho desmedido cujo real poder vistoso só acontecia diante de uma garganta funda.

Há coisas que só acontecem aos homens, como olhar de viés para os membros dos companheiros de duche ou caserna. Diz-se que a visão do próprio pénis é enviesada como tudo o que se reflecte num espelho. Podemos ajuizar da conduta de um político pelo que fará com o seu pénis. Luis Buñuel ao ver-se impotente declarou ter-se enfim libertado do tirano. Dou agora a palavra às senhoras, pois nada mais me ocorre.

DO INÚTIL | Tiago Salazar

Que adianta ao meu íntimo mundo pessoal, e mesmo a vós, meus assíduos, se vos disser que sempre preferi o Messi ao Ronaldo, tal como o Barça ao Real Madrid. Prefiro a arte subtil e o sentido do artista que, embora sobredotado, nunca deixa de trabalhar para o colectivo que o admira. No relvado, entre colegas, e nas bancadas pasmadas, sem celebrar o golo como um vaidoso toureiro pavoneia o cravar da farpa (Messi não foi visto a fazer manguitos aos holandeses derrotados).

E depois, quase tudo em Messi me devolve a aura de Diego Armando que é inultrapassável, mas viu nele o legado alvi celeste e lhe passou o ceptro. E o rei negão que me desculpe. A Messi, bailarino de tango, só lhe falta o sentido dramático de um fadista.

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AI PORTUGAL, PORTUGAL I De que é que estamos à espera? por Tiago Salazar

AI PORTUGAL, PORTUGAL I De que é que estamos à espera? Por ora, da enxurrada de turistas, que encham os hotéis, os Airbnbs, os restaurantes, bares, clubes, tabernáculos, botequins, feirinhas, toda a sorte de veículos de animação turística de lés a lés, que larguem o pilim e não se chorem dos preços upa upa, pois isto não é Marrocos. Tudo se vende, em última instância, como num bordel.

Lava-se dinheiro. Compra-se a Imprensa e a visibilidade nas redes sociais. Vende-se a quem der mais. Vendem-se histórias de façanhas, de heróis, de lendas e narrativas. Amália, Eusébio, Pessoa, Camões, Saramago… de pins a livros. Quem não se ajeita na mercância do Comércio e das malhas tecidas pelo defunto Império, vende o cu por 7 tostões, vende o corpinho, como se vendeu o cinema Império, o Condes, o Monumental… Comprem, comprem… atraem-se os turistas e os investidores como abelhas a favos, com a lengalenga do sol, do país seguro, do inefável fado de terra santa. O Santander agradece.

E assim vamos caminhando, endividados, agarrados a empréstimos, ao correr da bola nos relvados, esperando ter um púbere Ronaldo a germinar no salão nobre da casa arrendada a um agiota e especulador que um dia garanta o sustento e orgulho das Donas Dolores. O crescimento económico reverte para as grandes empresas e seus associados, o crime compensa. Os preços sobem e o povo, triste, deixa andar. Come menos ou vai para a fila do Sidónio, deixa andar até lhe vir o cancro.

Olha o mar, o Oceano, pensa em emigrar, mas já não tem forças. E também, para onde há de ir? Os filhos que tentem a sorte. Nós por cá ficamos, submissos aos tostões do turista inculto, desinteressado e emproado, que compra suvenirs na loja do chinês made in China, que se está cagando para as belas e duras frases de Sophia, a verve visionária de Natália, quer é gastar pouco e que o sol lhe bata levemente na moleirinha.

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FAZER PELA VIDA | Tiago Salazar

FAZER PELA VIDA I Abstenhamo-nos por instantes de julgar o juiz Rosa, os labregos, o tio Ricardo, o José.

Pensemos nisto: tenham ou não arrebanhado uns milhões, e porfiado no arrebanho de formas mais ou menos ínvias, todos os visados, esses malditos corruptos e corruptores, procuraram a sua felicidade e dos familiares e amigos.

Isto é digno de atenção.

Se um amigo nos acenasse com um milhãozito para lhe fazermos um obséquio digam lá que não hesitavam?!

Estamos furiosos porque isto é um regabofe, como se sentíssemos que o José e seus comparsas tivessem sido apanhados a lamber o nosso pote de mel.

Cambada de ursos gulosos é o que é.

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O Magriço | Tiago Salazar

SINOPSE:

D. Álvaro Gonçalves Coutinho – conhecido por Magriço por causa da sua figura débil – foi celebrizado numa passagem d’Os Lusíadas, que destaca a sua coragem entre os Doze de Inglaterra, cavaleiros portugueses que, no reinado de D. João I, participaram num combate que visava lavar a honra de doze damas ofendidas e do qual saíram vencedores.
Porém, mesmo tratando-se de um cavaleiro de linhagem na Corte do Mestre de Avis, o Magriço não aceitou que o seu monarca lhe negasse casamento com a mulher que amava, partindo para a Borgonha onde lutou por mais de uma década entre os pares de João Sem Medo, que o considerou um dos mais destemidos guerreiros que alguma vez o haviam servido.
Aventureiro, defensor de causas justas e sempre na senda de glória para os seus amos, Álvaro Coutinho foi também um filho segundo, afastado da herança paterna, um homem amargo a quem a memória da desfeita do rei nunca abandonou, um guerreiro sem medo da morte, um ancião que resistiu à peste e se tornou uma espécie de eremita no fim da vida.

AVANTE | Tiago Salazar

AVANTE I Se nos víssemos como os outros nos vêem ficaríamos arrepiados, ou talvez irados, furiosos, prontos para a guerra. E vice-versa. Mas é neste vice-versa que há todo o Trabalho a fazer. Por estes dias sombrios, o PCP é “julgado” pelos seus actos públicos. É gozado pela sua festa ao arrepio da sanha do distanciamento social.

Tenho memória de um político à Lincoln, digamos assim, ou como imaginamos o pai fundador da América moderna. Chamava-se Manuel Gírio, era comunista afectivo de matriz cristã e seguidor do deus do esparguete, e nunca ocupou um cargo público notável. Foi dramaturgo e poeta mais do que tudo, como o defunto Vaclav Havel. Agora, nesta hora de suspense pandémico, esperamos um Messias goês, um dirigente com nome e feições e bravura de índio, um padre lírico ou um corajoso activista? Eu espero duas ou três coisas de um governo, governante ou líder, para me sentir pacificado com a ideia de nação valente, e voltar a ter esperança na ressurreição da ideia de pátria, além de me contentar com os gozos da língua e da escrita. Uma delas é simples: derrubar a ditadura mental.

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AMOR | Tiago Salazar

É estranho termos tão poucos laços com a natureza, com os insectos, com a rã saltitante e com o mocho que pia por entre os outeiros, chamando a sua companheira. Nunca demonstramos ter uma certa simpatia por todos os seres vivos da Terra. Se pudéssemos estabelecer uma relação intensa com a Natureza, nunca mataríamos um animal para saciar o nosso apetite, nunca feriríamos nem dissecaríamos um macaco, um cão, uma cobaia para nosso proveito. Encontraríamos outras formas de cicatrizar as nossas feridas, curar os nossos corações.

O ser humano matou e continua a matar milhões de baleias e tudo o que obtemos desse massacre pode ser conseguido por outros meios. Mas, ao que parece, o Homem gosta de matar, gosta de matar o veado em fuga, a gazela maravilhosa e o elefante pujante. Adoramos matar-nos uns aos outros. Esta chacina humana nunca se deteve em toda a história da vida do Homem na Terra. Se conseguíssemos – e é imperativo fazê-lo – estabelecer uma relação profunda e duradoura com a Natureza, com as árvores, os arbustos, as flores, a erva e as nuvens velozes, nunca mais massacraríamos outro ser humano, por motivo algum.

Assassínio organizado é sinónimo de guerra.

Tiago Salazar

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INTIMIDADES | Tiago Salazar

Se vos contar uma história baseada em factos reais vão acompanhar-me até ao fim? Vão voltar atrás, e reler, e tentar entrar na intenção do autor? Vão perorar aí em baixo, clicar numa das opções reactivas? Vão comentar com acidez ou escárnio sem clicar no gosto por desdém irritativo? Faltam aqui patilhas do não gosto, não curto, não me identifico, ou uma que me apraz, vai-te catar. Mas isto hoje é sério. Ser levado a sério implica toda uma reputação de conduta retrospectiva. Como para votar num indivíduo há que apurar do seu currículo, de públicas virtudes e impúdicas particulares. O Bill, por exemplo, ganhou ou perdeu mais pelo facto de se aprestar a um fellatio na sala oval? Entre os machos, marcou pontos de virilidade, sobretudo os de pele rosada e cheínhos. Entre as fêmeas púdicas, recebeu as ovações de porco, canalha, sacana, facínora, no pressuposto de que o adultério é um crime solitário. Não sabemos se o Bill vivia numa relação aberta e a Hillary não andava em coboiadas, ou se o casamento não era apenas um contrato social de onde a sexualidade estava arredada. Que sabemos, no fundo, dessas coisas pudibundas que alimentam o voyeurismo, aqui, a jusante, ou na Ferrante, que fala disso, desabrida como poucos?

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POLISBIGAMIA | Tiago Salazar

Eu, pecador, confesso a minha pólisbigamia: entre Lisboa e Porto, nunca virá o Diabo a escolher por mim.

Amo as duas (perdidamente). Às duas me quedo aos pés e às beiras dos seus maviosos rios. Às duas incenso as carnes de senhoras rústicas e chiques. Às duas teço odes de paixão eterna em letra de vate e bardo. Que flores suas mais me falam ao peito se apenas uma, de cada uma, me fosse dado escolher? Há uma curva na estrada, toda ela iluminada por luzes baixas quando a noite se abeira, feita sobre o cotovelo do rio como uma tiara. Ali se passa de carro mormente, mas para quem se apreste a caminhar, há um paredão discreto nas traseiras de onde melhor se avista a força do braço fluvial apenas perturbada no seu curso por pilares de ferro ou pedra das pontes que o encimam e afagam a vista.

Em Lisboa, nada mais convém à minha alegria de filho ali nado e criado do que descer ao rio, onde este leva o nome de mar e se aquieta como as palhas e espigas num palheiro defendido das batidas do vento. Entre canaviais e o lodaçal da corrente baixa, tenho em mim todas as alegrias do mundo, alheio e distraído por momentos dos seus desvarios, com o recuo prazeroso e ingénuo ao tempo das barcaças fenícias e dos sane per aqua romanos onde hoje se acolhem as paredes cobertas de pó e fuligem do beato.

Tiago Salazar

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Agustina Bessa-Luís | Tiago Salazar

AGUSTINA I Nos idos tempos de repórter de “O Diabo”, dirigido por Vera Lagoa, fui de piquete à Rua do Golgota, ao Porto, entrevistar a “Senhora Agustina”. Estávamos no final dos anos 90 do século XX e Portugal vivia as ilusões do cavaquismo, de opulência pacóvia e populismo. Havia sempre perguntas rebeldes e entrevistados notáveis. Era a regra do jogo. Lera apenas, da biblioteca herdada do meu tio António Galvão Lucas, seu correspondente próximo, “A Sibila” e o tributo apaixonado a Duhrer. Iria falar-se mais da vida e menos da obra, embora nela a fronteira se revelasse ténue. As feições de “raposa” ou raposinha, dada a sua pequena estatura, davam-lhe a ternura de uma avó, mas nenhuma frase lhe saía cândida e amável, sem um apontamento de estilo quase sempre irónico. Levou-me para a sala onde lia e por vezes escrevia e serviu-me chá e bolachas antes de premir o botão do gravador. O Inverno estava agreste e acendeu o calorífero da mesa de camilha. De vez em quando os nossos pés tocavam-se e sentia uma ternura como ligava apenas à minha avó Vessadas.

Dei por mim a pensar como seria magnífico ter uma avó Agustina, com quem pudesse falar de Embaixadas a Calígula ou de Contemplações Carinhosas de angústias e ter sempre um sorriso algures no caminho. Falámos de Yourcenar, de Mário Cláudio, do Douro, do Porto e da sua erótica soturnidade, e de futebol e política, e de literatura policial, Simenon. Quase sempre acabávamos a falar de famílias. Mostrou curiosidade sincera pelas minhas novelas do Minho e assim chegámos a Camilo, o seu autor mais amado, que dizia no seu tempo que os escritores portugueses não se ajeitavam no romance, nem ele. Nem ela, confessou, com a sua franqueza implacável. O romance exige um conhecimento dos meandros da vida que nem sempre se tem, e quem julga tê-lo, é porque não o tem. Falei-lhe de um aforismo da minha avó Francisca, que dizia haver um tempo para a formação e outro para a deformação. Ela sorriu, e disse, “cuide dela. Ela sabe”. Se a sabedoria tinha corpo estava diante de mim e tinha os pés aquecidos. A fala saía-lhe sempre avisada, ainda que se falasse de trivialidades. No fim da conversa fomos ao jardim colher flores. A memória trai-me, e não sei de botânica para saber se trouxe um lírio ou uma margarida. Mas se estiver a ouvir-me hoje, daqui lhe devolvo um amor, perfeito na justa medida de quem devolve.

Tiago Salazar

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Querido Frederico Duarte Carvalho | O Amor é uma coisa rara | Tiago Salazar

Querido Frederico Duarte Carvalho

Voltamos sempre ao amor (e à paz e a justiça, como as Misses Mundo). Um dia li esta frase, da Hélia Correia, e guardei a sua fala para sempre. “O Amor é uma coisa rara. Tão rara como um homem evolar-se pelos ares ou um analfabeto citar Cícero em correcto latim”. A Hélia (e o Jaime Rocha), duas almas antigas e floridas, vivem um amor raro. Um amor onde assenta a poesia é do domínio da raridade. Na rua chamam-me “o poeta” ou, por vezes, “fadista”. É um equívoco perdoável. Logo eu, que tenho uma obra completa de três poesias e nada sei de decassílabos, sextilhas ou sonetos.

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Querido Tiago | “era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto” | Frederico Duarte Carvalho

Querido Tiago,

Como diria o pai da Ana Margarida de Carvalho, a tua “madrinha” do PCP, “era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”. Se estas cartas fossem como um bar, então não poderíamos falar de política, religião e futebol. Como os dois últimos temas já foram abordados, só nos faltava mesmo entrarmos no campo da política. São os ventos de Abril, claro. As portas que nos abriram, sobretudo agora, quando temos as portas que o vírus nos fechou. No que diz respeito a escolhas políticas, poderia comparar isso a escolhas clubísticas e até a escolhas de amores: não se explicam. Sentem-se. Só que a minha mente gosta de encontrar lógica até nos sentimentos.

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Querido Frederico Duarte Carvalho | (…) daqui te escreve o camarada Salazar | Tiago Salazar

Querido Frederico Duarte Carvalho

Para falar de Abril e da Revolução, daqui te escreve o camarada Salazar, o único membro do Partido Comunista Português (PCP) de apelido conotado com o fascismo. Era simpatizante e votante de longa data do PCP, e passei a militante de cédula e quotas (opcionais), num Abril de há dois anos. Ninguém me sondou ou aliciou. Fui pelos meus pés, amadrinhado pela Ana Margarida De Carvalho, sem que a amizade ditasse a minha escolha.

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Querido Fred, Frederico Duarte Carvalho | Tiago Salazar … Querido Tiago Salazar | Frederico Duarte Carvalho

Querido Fred,
Frederico Duarte Carvalho

Se eu morresse agora isto seria o meu cartão de farewell:

Tiago Salazar nasceu em Lisboa, em 1972 (a 21 de fevereiro)
Formou-se em Relações Internacionais e estudou Guionismo e Dramaturgia em Londres
É (era) doutorando no Instituto de Geografia onde prepara(va) uma tese sobre A Volta ao Mundo de Ferreira de Castro
Trabalhou como jornalista desde 1991
Venceu o prémio Jovem Repórter do Centro Nacional de Cultura, em 1995
Foi formador de Escrita e Literatura de Viagens
Idealizou, escreveu e apresentou o programa Endereço Desconhecido, da RTP2
Foi Bolseiro da Fundação Luso Americana em Washington, em 2010
Foi vencedor do prémio Literatura na XVII Gala dos prémios da revista Mais Alentejo, em 2018

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Querido Tiago | Aos meus amores. Aos nossos amores. | Frederico Duarte Carvalho

Querido Tiago,

Aos meus amores. Aos nossos amores. Sim, já fui infiel. Fui a mim próprio, por não ter sabido a tempo revelar, com palavras, aquilo que tentava ocultar com actos. Sempre tive espaço para muitas mulheres nos quartos do meu coração, como qualquer homem. Só que era uma de cada vez. Lidar com uma mulher é, por si só, um mistério tão grande, um labirinto tão atractivo e profundo onde nos queremos perder e perder sem encontrar a saída, que não vejo como seja possível manter dois amores ao mesmo tempo. O que me faz ficar? O que faz saber que vale a pena acordar todos os dias e amar mais do que ontem? Não é um bom par de seios, ancas ou traseiro desejável. Não é nada disso que, para mim, faz a Vénus ser de Milo. Existe uma única coisa que sei que é capaz de sobrepor a um nariz que podia ser mais pequeno, lábios que podiam ser mais grossos, dentes em melhores condições, uma personalidade mais sociável. O que consegue minimizar os defeitos são os olhos. Os olhos. Olhos no olhar de uma mulher. É o momento em que sei que fui captivado e estou rendido a uma pessoa. É como se fosse o Mel Ferrer, no “Guerra e Paz” do King Vidor, a apreciar a Audrey Hepburn enquanto dança no grande salão com outra pessoa, e dizer para mim próprio: “Se na próxima volta ela olhar para mim e sorrir, será a minha mulher”. É assim que, em geral, tenho gerido a minha vida sentimental.

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Querido Fred, Frederico Duarte Carvalho | Estes vaivéns são como bate-bolas | Tiago Salazar

Estes vaivéns são como bate-bolas (intelectuais, sentimentais). Temo viciar-me neles para além da quarentena, e se tu me falhares, ver-me forçado a criar um interlocutor (alter-ego) do teu calibre, o que não será fácil. Isto de contar histórias há que vivê-las para contá-las. Memórias de mis putas tristes e Vivir para Contar La, de Gabo, são dois exemplos máximos de como há vidas extraordinárias no meio do furacão nefasto que é o intervalo entre nascer e morrer. E claro, ter a perícia de saber brincar-dançar com as palavras. Nós, os humanos, apesar de tudo, somos uma grande invenção. Rir da desgraça, rir da decadência, rir simplesmente, é um remédio poderoso.

Podia rir-me, por exemplo, de ter um pai que, não sendo o modelo de pai canónico, aquele que se ocupa de cuidar dos filhos antes de si próprio, me dá vontade de rir, como muitas vezes deu de chorar. O velho é um filho da mãe safado com graça, e embora tenda a repetir-se nas suas façanhas de macho alfa, tem nas suas histórias de fanfarrão um sentido profilático do humor. Penso sempre no meu pai nu ou armado, o que pode vir a dar ao mesmo. Armado, porque tudo para ele é motivo de conflito, disputa e acusação. Nu, porque sofre do vício das mulheres. Nunca estive com ele sem que deixasse de falar das mil mulheres a quem dedicou a sua pujança de garanhão.

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Querido Tiago, o que é a Felicidade? | Frederico Duarte Carvalho

Querido Tiago,

O que é a Felicidade? Um chocolate quente na sala com a chuva a cair lá fora, por exemplo? As memórias de quando fomos felizes? Li uma vez, e achei um exagero, que um estudo defende que a memória mais duradoura nas células do cérebro é a dos cheiros. Até que, um dia, senti um cheiro que me fez recuar a um tempo em que eu deveria ter três anos e percebi que sim, esse estudo é capaz de estar certo. Sou como o Woody Allen quando diz que deveríamos viver a vida ao contrário. O judeu de Nova-Iorque é da opinião de que o dinheiro da reforma deveria ser para gastarmos enquanto somos novos e, no fim, podemos morrer com um orgasmo. Falas das corridas de F1 e ainda hoje li a notícia da morte do Sterling Moss, aos 90 anos, que disse que era feliz a fazer o que gostava e, ainda por cima, lhe pagavam para isso. Como sustenta o Herman José: o dinheiro não dá felicidade, mas manda ir buscar. Contava ainda o George Best, o futebolista genial do Manchester United, que todo o dinheiro que ganhou, gastou-o em mulheres e bebida. E o que lhe sobrou, gastou-o mal gasto.

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Querido Frederico, Frederico Duarte Carvalho | Tiago Salazar

Estas partilhas, que vamos fazendo públicas, e suscitam comentários imediatos, alerto-o, por mim, e creio por ti, são a narrativa das mais puras das verdades. Por outro lado, não as considero tempo perdido ou uma forma de gastar o tédio dos dias confinado, e nunca, mas nunca, escrevê-las à pressa, descarregando-as sem as rever, cortar, limar, polir e aperfeiçoar com todos os detalhes. Prefiro espaçá-las, sem nenhum imperativo de as escrever, ou de que me respondas forçado, como se houvera um compromisso com os leitores (a não ser que estes nos digam, queremos contribuir para a vossa causa, queremos cartas diárias, e mais tarde, umas vez compiladas por um editor generoso, nos enviem uns trocos para casa).

Eis um tema na ordem de todos os dias: o custo e a paga. Isto, por exemplo, é uma troca de correspondência, mas sem pretensões agostinianas, falo de Agostinho da Silva, e as suas míticas Sete Cartas a um Jovem Filósofo, rilkianas, de Rainer Maria Rilke, autor máximo do género com as suas Cartas a um Jovem Poeta, ou mesmo do teu conhecido Christopher Hitchens, polemista autor das Letters to a young contrarian, nomeado por Gore Vidal como o seu sucessor, e em quem Susan Sontag viu brilhantismo epistolar, género onde outros tendem a praticar o cliché.

Temos um método e um objetivo: chegar às 40, número bíblico do sofrimento cristão, jornada iniciática, providencial. Porventura este falso cativeiro irá prolongar-se além desta quarentena, e aí, por mais vividos e aventureiros, teremos esgotado os superlativos temas das nossas autobiografias prematuras (somos jovens de 48 anos, tu ainda por completar).

Notemos aos que nos lêem que nunca combinamos o tema do dia. A magia de escrever, realista ou surrealista, é como tudo nasce de onde nos venham as ganas.

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Querido Fred | Tiago Salazar

Querido Fred,
Frederico Duarte Carvalho

Portas o facho da esperança ou da ironia ou fintaste a ti próprio? És tu um niilista ou um crente (nem que seja nas virtudes lenitivas do vinho?). Tu, que lês e bebes na História, achas que o mundo vai mudar para melhor ou não andaremos de crise em crise com interlúdios de fraternidade universal, até à extinção? A aldeia global não é uma grande farsa? Que sabe um inuit por aí além de um português ou que sabemos nós dos esquimós para além de iglus e beijos de nariz a dar e dar (por ora proibidos)?

Quando me vejo asfixiado, agrilhoado (como Prometeu), preso num colete de forças, atiro-me ao que me pode salvar-evadir, a escrita-a viagem, mormente, como se escrever-viajar me devolvessem o sentido de pertença a um mundo que sei condenado. A nossa geração não conhecia, até aqui, mais do que o drama dos recibos verdes. Fome, guerra, doença, miséria, são realidades para a maioria de nós desconhecidas. Haverá filhos de quem foi à guerra que padeçam de males que não serão menores, como o da rejeição e do abandono ou da violência doméstica (que também é a dos pais sofre os filhos). As nossas guerras têm sido outras: a do trabalho precário, sobretudo. Chamar guerra ao que se passa é um ultraje. Será do hino termos que ir logo apelar às armas? E os barões assinalados, os donos disto tudo, que farão eles neste momento a não ser acautelar os seus interesses, proteger as suas perdas, inventando outras formar de lucrar como lacraus e abutres e saqueadores de outroras e agoras?

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Canção de amor desesperado | Tiago Salazar

Para irmos mais além (e muito para além) precisamos do tempo do dois.
Precisamos de amar o (nosso) amor.
De reinventar o amor (com carácter de urgência)
Amor de abraços, pele, ternura pura.
Precisamos de rituais antigos e juvenis.
O psicólogo disse-me para te dizer: “Gosto muito de ti mas acho que precisamos de aprender algumas ferramentas para melhorar a nossa relação”.
Falei-lhe de amor.
De como se pode ferir mais quem mais se ama.
De como a vida sem o amor (para nós) é pela metade.
Entendo a tua vida, entendo os binómios da vida, mas preciso que me ajudes a encontrar o caminho para o “nós”.
Sem ti o meu sul não tem norte.

Tiago Salazar

Depressão | Tiago Salazar

Andrés Iniesta, um dos meus jogadores de eleição, assumiu ter sofrido de depressão, e de como a dita intrusa se instalou e lhe tirou o gosto e as sensações. “Só pensava em tomar o comprimido e dormir”. A depressão instala-se quando o sonho deixa de comandar a vida. É uma dor que desatina sem doer. É uma doença curável, mas incapacitante. Um comprimido serve de rede e um deprimido não é um atrasado mental. Pode bem ser um inadaptado à frente do seu tempo. Os deprimidos são por regras sensíveis e hiper sensíveis. Alguns são reactivos e são deprimidos ansiosos. Outros, afundam-se e estiolam. O pior para um deprimido é a indiferença e a frieza dos que o rodeiam e o tratam como um empecilho à sua felicidade parasitária. A mais premente necessidade de um deprimido (e de qualquer ser humano) é ser olhado como um ser humano, falível e vulnerável.

Tiago Salazar

Retirado do Facebook | Mural de Tiago Salazar

Mulhererengos, femeeiros e outros | Tiago Salazar

Consta, na mais recente biografia de José Saramago, escrita por Joaquim Vieira, haver uma faceta menos conhecida de Saramago, a de um machista. Cresci a ouvir histórias de escritores galifões, casados e pais de filhos, mas dados a conquistas e investidas a eito, mais ou menos consentidas. Por exemplo, só para nomear alguns, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes, David Mourão Ferreira, Baptista Bastos, ou, o mais exortado, o pintor de vulvas Henry Miller.
A propensão para o excesso deu cabo de alguns matrimónios e relações, embora muitos se mantivessem casados e as suas mulheres no silêncio. Outras, como Paula Rego ou Frida Kahlo, apesar do muito amor e da felicidade conjugal, seguiram o mesmo instinto. Por ajuste de contas ou paridade. A questão é bicuda: talvez se o ponto de partida fosse cordato não houvesse dominadores e dominados, ou vinganças ao retardador sobre o pressuposto de que ele (ou ela) não eram assim. Talvez o amor exclusivo seja raro, e a arte nascida de grandes amores um mero narcisismo.

Tiago Salazar

Retirado do Facebook | Mural de Tiago Salazar

Rejeição (e atracção) | Tiago Salazar

Desde o primeiro instante, apesar de um encantamento, um déja-vu, uma atracção inexplicável, do calor de um beijo dado, e outro, chega o momento de ambos se despirem e nenhum está despido para além do corpo. Dentro do corpo de ambos há um nervoso miudinho, a incerteza do que é o outro, quem frequentou, quantos corpos conheceu, quem fodeu, amou ou fornicou. Prevalece a vontade nervosa de mostrar um à-vontade inexistente. Estão ambos em rejeição do que se chama entrega. Duvidam, no fundo, por medo. É o medo que leva à rejeição. Um quer quase sempre mais do que o outro, embora a retração de um leve à rejeição do outro. Pode haver a suspeita de um que o outro dorme ou fode com outro. Pode haver a ideia de que a entrega total não existe, por niilismo. Pode haver a descrença fruto de relações falhadas, ou, mais atrás, de uma falha uterina, uma carência desmedida. Começa então o vaivém, do querer e não querer, do ir e voltar. A mulher pode ser romântica mas no seu íntimo desconfia e só se entrega uma em mil vezes, para algures no encontro querer sair depressa dos braços do amado. Pode querer mais, porque há um réstia de esperança nas suas capacidades de amar, de querer amar, de querer ser amada. Nunca viveu a experiência de amar e ser amada. Ou uma, ou outra, a maior parte das vezes nenhuma, caindo nas suas próprias armadilhas de caçadora de emoções. É uma amazona, ele um predador. Ambos são frágeis nas suas capacidades de se deixarem apenas o privilégio de sentir. Ambos são casados com outros, e o facto de se terem descoberto e de tardarem a encerrar os seus relacionamentos torna-os mais receosos. Rejeitam-se a amar-se.

Tiago Salazar

Retirado do facebook | Mural de Tiago Salazar

Camarada Salazar | Tiago Salazar

A motivação é um aspecto intrigante quando pensamos em validar (ou dispensar) um indivíduo. Por exemplo, o borrego manso do PSD, notório arrivista molecular, ao fantasiar (digamos assim) dados do seu percurso curricular num tempo de acesso fácil ao mais ínfimo e sórdido detalhe, põe a sua cabeça no cepo. Quem quer os laranjas mantidos no chão da sua peçonha ainda a tresandar, agradece. Quem pratica o ofício do humorismo, regozija-se. Quem se preocupa com o valor dos animais políticos, entristece-se. Por estes e por outros, se ensombra qualquer alma hoje dedicada com honestidade ao ofício mais nobre da civilização, a Política.

Hoje, para que se saiba sem intermediários, juntei oficialmente os trapinhos com a única força política viril, diria mesmo entumescida, na qual leio, vejo, oiço e sinto capacidades frontais e acções consistentes onde habitem as palavras liberdade, coragem, frontalidade e integridade. Não me movem o oportunismo, a avença, a agremiação de mais leitores. Não tenho aspirações a grande mufti ou a discursar perante tribunas de plebeus sanguinários.

Agrada-me doravante ser chamado de Camarada Salazar, erguer os copos com um líder assertivo de nome de índio, ter na linhagem de fundadores um escritor, artista e pensador dos mais combativos e brilhantes que o país conheceu e seguir uma tradição antiga, onde o mote sem dogma é trabalhar para o bem comum e não para o benefício de alguns.

P.S. Para que conste dia 3 de Abril, às 18h, no Centro de Trabalho Vitória, na Av. da Liberdade, 170, Lisboa, serão homenageados os escritores-camaradas Rui Nunes e Modesto Navarro, há 50 anos dedicados aos combates políticos e literários.

Tiago Salazar

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