Duas mulheres, de uma a mão, de outra a voz. Será que juntando-as dá uma crónica?
Nenhum corpo suporta tanta despesa. É o que qualquer um dirá de Marilyn Monroe por pouco que saiba da atribulada vida dela. Mas não, a frase disse-a eu, em 1980, se bem sei, a propósito da actriz Manuela de Freitas. Ora não é de frases que quero falar, mas sim da mão que nos ajuda quando nada nos promete pão, vinho e rosas.
Ouçam a voz de Ella Fitzgerald. Vinha lá do peito, cristalina como se no peito tivesse uma fonte, embrulhava redonda as palavras numa dicção angelina, tinha ritmo e melodia, ousando improvisos a que nem a agilidade de um Ulisses serve de analogia. E agora vejam, Ella, a cantora negra nascida na Virgínia era amiga da alabastrina Marilyn Monroe. Exagero: mesmo a amizade tem uma génese e faz a sua peregrinação. Marilyn, no filme “Os Homens Preferem as Loiras” ia ser ainda mais loira e ia cantar. O seu agente pô-la a ouvir as canções de Ella Fitzgerald e os ouvidos da actriz apaixonaram-se pela voz dessa vasta e abundante sereia negra. Um dia, em Dezembro de 1954, Ella actuou numa daquelas espeluncas onde costumava cantar, em Los Angeles, e Marilyn veio vê-la. Foi amor à primeira vista e Ella contou a Marilyn que um dos seus sonhos era cantar no Mocambo, esse clube onde vinha jantar e dançar a fina flor de Hollywood, e onde um dia uma esposa indignada espetou um garfo de sobremesa no lóbulo da orelha de Errol Flynn, como já aqui contei.
Nessa altura, nos meus tempos da SIC, viajava muito. Vi, então, o decote do século XX. Como aqui se conta.
Nudez, espécie em vias de extinção
A mulher nua é um escândalo do passado. Ou talvez não. Há dias, em Paris, num restaurante, o dono barrou a entrada a duas lábeis e decotadíssimas mulheres: a fenda da Tundavala que se lhes cavava no peito era uma anacronismo de fazer estremecer o século XXI. Há, estremeço também eu, um insidioso prurido a germinar na pele do século XXI. Ou virá o século XXI a ser o século do homem nu?
E já me belisco a mim mesmo: o maior decote que vi, não foi no peito, foi nas costas. Era o decote de Sharon Stone. Ela estava à minha frente, oferecendo o esplendor das costas nuas, o rendilhado desenho de uma perfeita coluna vertebral, das primeiras vértebras cervicais até essas nove vértebras fundidas e finais, cinco do sacro, quatro do cóccix, essa lança sacrococcígea a que se segue o que de mais sumptuário há na anatomia humana.
Eu vi: era o decote do século XX e foi nos estúdios da Warner, em Los Angeles, nuns longínquos MTV Awards, a Madona a dois passos. Houve convívio a seguir, mas a Stone levou-a o vento ou os deuses, e eu consolei-me a comer um hamburger com Danny Glover e a lamber um gelado com Valeria Golino. Lição moral: aquela foi a visão! Mais do que a roubada e fugaz visão do infame descruzar de pernas de “Basic Instinct”, a assumida resplandecência das costas de Sharon Stone, a insinuação do rotundo estuário onde desaguam, é a visão redentora. O que Sharon mostrou nessa noite, mostrava-o porque queria, sem medo e sem equívoco. Era para ver e eu vi: o traseiro decote do século XX.
Estará extinto o escândalo da mulher nua? E onde começou? No cinema? Lembro-me que, no cinema mudo, Mack Sennett despia as mulheres. Inundava as suas comédias de bathing beauties, como depois o genial Busby Berkeley, já o cinema falava e cantava, povoou de fatos de banho cor de pele os seus delírios musicais pré andy-wharolianos.
A verdade é que, sem nunca o ter encontrado, conheci James Caan à minha maneira e fiquei mesmo amigo dele. E gosto de dar uma palavra aos amigos, quando eles dão aquele passo em direcção ao infinito ou, sei lá, abismo, talvez vazio.
Fui à Mansão e não estava lá James Caan. A Mansão é a de Hugh Heffner e tinha tudo o que fez a tépida e insuportável felicidade de James Caan, o actor que agora morreu e lá viveu. Entrei. Uma orquestra de jazz tocava ao ar livre do alto dessa colina de Mulholland Drive. E o que vi tanto me enterneceria a mim como ao mais pálido e animalista sequaz do PAN: havia um vendaval de playmates – camonianas ninfas, claro –, mas também havia esquilos, macacos, tucanos, papagaios, pavões brancos e flamingos cor-de-rosa, ainda mais bonitos do que os meus flamingos do Lobito. Havia outras feras e centenas de coelhos, lots of rabbits.
As playmates levaram-nos depois para o celestial aconchego de uma sauna escavada na rocha. Olhei e nem James Caan, nem Jack Nicholson se escondiam nas caves pré-históricas, que a perversa mente de Heffner, pai da Playboy, construiu.
De boca fechada já tinha havido muitos. A primeira vez que os amantes abriram a boca foi em “The Flesh and the Devil”. E não foi para falar, que o filme ainda era mudo. Primeiro, um cigarro passa da boca de Greta Garbo para a boca de John Gilbert. “És lindíssima” sussurra ele num elegante cartão escrito. “E tu… tu és tão novinho”, responde ela noutro cartão, por ser assim, por escrito, que os actores falavam no cinema mudo.
O cigarro já está na boca dele, as mãos aflitas à procura do fósforo que logo acendem. Não sabemos se é a labareda do fósforo, se a do ardor deles, que os ilumina como lua alguma iluminou amantes. Ofuscada, Garbo sopra e apaga a ardente cabecinha do fósforo como quem pede um beijo. Sabe-se lá que lábios, se os dele, se os dela, se abriram primeiro! Sabemos só que foi a primeira vez que num filme americano se beijou à francesa.
Há beijos escritos, beijos pintados. E míticos: o de Pigmaleão insuflou vida em Galateia. Em contos de fadas, o beijo de uma mulher faz de um sapo um príncipe. Rodin aprisionou em mármore frio e nu o beijo infernal que Dante lhe inspirou. Em “Romeu e Julieta”, cantou-o Shakespeare, como quem reza, fazendo dos lábios “dois peregrinos ruborizados” onde talvez “blushing” seja tanto o rubor como a calorosa vergonha que o precede.
Mas foi no cinema que os lábios peregrinos encontraram o seu santuário. O cinema beija melhor do que a literatura, até mesmo do que o luxo da pintura de Klimt. O movimento, luz e sombras do cinema oferecem tudo ao beijo. Fazem-no ingénuo e carnal, romântico e canalha, mignon e descarado.
Pensando que inventara o beijo, o cinema fez-lhe até a pedagogia. Em “For Whom the Bell Tolls”, a loura e sueca Ingrid Bergman, na cena em que mais celestes lhe vi os olhos, é uma improvável espanhola, uma improvável camponesa e a mais improvável Maria. Apaixonou-se por Gary Cooper, americano e combatente na Guerra Civil ao lado dos republicanos. Quer, mas não sabe como beijá-lo: “Onde é que se metem os narizes. Sempre me intrigou para onde é que vão os narizes,” diz, a escaldar de coqueterie. Senhor de um nariz que não se mete onde não é chamado, Cooper roça os lábios pelos lábios dela. “Afinal não se atravessam no caminho, pois não,” e já é ela que o beija, uma, duas vezes. À americana.
À americana, Hawks mostra em “To Have and Have Not”, as vantagens do trabalho de equipa. Bacall beija um impávido Bogart para lhe provar o sabor. Deve ter gostado porque o cântaro volta à fonte e já não me lembro se é logo, ou à terceira que o lento Bogart dá ordens à boca dele para reagir à dela: “É ainda melhor quando tu ajudas!”
À americana ou à francesa, boca mais fechada ou aberta, são precisos dois para o beijo. Nem mesmo tu, ó orgulhosa e fresca boca de Keira Knightley, beijas sozinha.
Esta é, em três fragmentos a que só por inadvertida audácia se pode chamar capítulos, a história de rejeição e paixão de John Gilbert e Greta Garbo, ídolos da América e do mundo, no final dos anos 20 e começo dos anos 30. Para os mais jovens, acrescento mais informação: eram actores de cinema. E complemento: cinema era uma arte de sombras, indulgências, tesouros e cabalas, cultivada pela calada da noite em insidiosos palácios nocturnos, invisíveis durante o dia.
Heróico, viril e vil
Todo o passado é sincrético. Como sabem, John Gilbert é um actor do tempo de Homero ou Ben-Hur ou não fosse o cinema uma invenção mediterrânica. Um dos criadores desse cinema da antiguidade clássica foi Louis B. Mayer. Judeu, claro. Como Aquiles, era heróico, viril e vil. De poderoso soco. Basta vê-lo, à porta do Alexandria Hotel, aos murros a Charlie Chaplin. Foi em Los Angeles: na minha antiguidade clássica já havia América e hotéis de cinco estrelas.
Mas é de outro soco que falo. A viking Greta Garbo chegara a Hollywood. Vinha filmar “Temptress”, auto-estrada de adultérios em cadeia. Isto passou-se em 1925 e 1926, anos de lânguido aquecimento e dilatação dos corpos em Hollywood, como o provam os filmes que Mayer então produziu.
Este texto foi uma encomenda. Escrevi-o com muito gosto e com um descaramento que se baseia numa ideia simples: os poetas, os pintores, os romancistas devem ser falados, interpretados e comentados pelos seus leitores, mesmo por aqueles que, como eu, só como amadores os comentem. Recupero-o neste 10 de Junho de 2021.
Os amadores, na sua exaltada e infantil incompetência, nunca dispensarão os especialistas. Os amadores são como as criancinhas que um tolerante Cristo deixa vir a si. Mas mal do especialista que não deixe, magnânimo, sentarem-se os amadores aos pés da coisa amada.
As saudades que eu já tinha deste sol maluco e do riso desaustinado destes candengues. Estes candengues vivem perto de uma praia ao sul de Luanda. São, segundo informação do fotógrafo, LQ Geor, filhos de pescadores. Foi, confessa ele, a exuberância do riso deles que cativou o olhar do fotógrafo.
Uma vez, num jantar, as pessoas começaram a interrogar-se sobre qual era a coisa mais importante da vida. Umas disseram “amor”, outras “dinheiro”, outras “fama”. O meu pai (John Huston) disse “interesse”.
Hoje, Dia Mundial do Livro, autores, editores e livreiros estão em perigo. Tolstói ou Dostoievski, Shakespeare e Camões, Camilo ou Eça vivem, como Portugal, como o mundo, a situação calamitosa que afecta dramaticamente a nossa forma de vida, as pessoas e as empresas. Sim, os grandes romances, os grandes ensaios, os livros de ciência ou de filosofia, tal como os editores e livreiros que são a sua casa, acabam de sofrer um violento abalo. Fragilizados pelas crises económicas de 2008 e de 2011, editores e livreiros são agora, como resultado directo desta pandemia, confrontados com a mais dura ameaça que o livro já experimentou em Portugal. A espada de Dâmocles, que é a insolvência de editores e o fecho definitivo de muitas livrarias, paira sobre as nossas cabeças, sobre a cabeça dos grandes livros e dos grandes autores, o que o empobrecimento salarial dos leitores, já de si uma minoria da população, mais reforça.
(…) mas umas costas nuas! Nada se compara ao vestido de finas alças nos ombros, estuário aberto que se vem fechar sobre as cinco fundidas vértebras do sacro – incomparável é a geografia de umas costas nuas. (…)
(…) se há prazer que merece ser celebrado, é o das costas nuas. À frente, há uma planície venusiana, certo? Mas atrás! Espaços abertos, duas rasas margens de um vale com um rio de vértebras ao meio. Ebúrneas e delicadas, castanhas e bronzeadas, de acetinado ébano, cantemos, de uma mulher, e logo desta mulher, as costas nuas. (…)
(…) Mas as costas nuas! As costas nuas pedem a didáctica tensão de um Ovídio, a persistência do lento aprendiz de uma “Ars Amatoria”. (…)
Vai ser uma série de antologias de Fernando Pessoa & Companhia. A primeira – Absinto, Ópio, Tabaco e Outros Fumos – vai dar uma animada conversa. É já na 3ª feira, dia 17, na Bertrand do Chiado. Reparem bem na tremenda variedade das bocas que vão estar à conversa: Eugénia de Vasconcellos, poeta e ensaísta; Júlio Resende, compositor e pianista; Jorge Barreto Xavier, professor e programador cultural. Eu vou-me sentar ao pé deles, boca fechada está claro, que o que é bom é ouvir quem sabe. É às 18:30 e preciso que venham todos. Querem ver o convite? Já mostro! [ Manuel S. Fonseca ]
A Guerra e Paz nasceu a 10 de Abril de 2006. Faz hoje 10 anos anos de vida. Lembrei-me de escrever uma carta aberta à Imprensa. Os jornais e os livros são irmãos de armas. Vivem juntos a mesma crise, a crise da leitura popular prolongada.
Juntos podem criar futuro.
Carta Aberta à Imprensa de um irmão mais velho
Querida Irmã Imprensa,
Obrigado. Com que outra palavra poderia começar esta carta de amor e respeito? Repito, obrigado.
Eu, Guerra e Paz, já ando de braço dado contigo há dez anos. A 10 de Abril de 2006, na sessão do meu nascimento, na Fundação Gulbenkian, estávamos juntos, jornais, rádios, televisões e livros. Estreámo-nos com um novo livro de Agustina, Fama e Segredo na História de Portugal, que ainda não sabíamos que seria o último da nossa grande autora. E, ao lado de Agustina, estava outro livro, a lição ética, cívica e de sabedoria que é a Correspondência entre Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner.
Prometido aqui ao Henrique, cumpro. Num excesso de zelo, proponho mesmo tradução audaciosa. Camões tinha morrido pouco tempo antes. Esta era a Lisboa que os olhos do português tinham visto. Viam-na agora, assim, deslumbrados, os olhos de Cervantes:
Lisboa
Ao cabo destes ou poucos mais dias, ao amanhecer de um, disse um grumete, do cimo da gávea principal, donde ia descobrindo terra:
– Alvíssaras, meus senhores! Alvíssaras peço e alvíssaras mereço. Terra! Terra! E melhor seria dizer: Céu! Céu! Porque é sem dúvida a Lisboa que chegamos.
A notícia arrancou lágrimas ternas e alegres aos olhos de todos, especialmente aos de Ricla, dos dois Antónios e aos de sua filha Constanza, porque lhes pareceu terem chegado à terra prometida porque tanto ansiavam.
António lançou-lhe os braços ao pescoço, dizendo:
– Sabes agora, minha bárbara, o modo como hás-de servir a Deus, com uma relação mais copiosa, ainda que não diferente, da que te ofereço eu; verás os ricos templos onde é adorado; verás ao mesmo tempo as cerimónias católicas com que o servem e como a caridade cristã atingiu o cume. Aqui, nesta cidade, verás como os muitos hospitais são os verdugos da doença que destroem, e aquele que neles perde a vida, rodeado pela eficácia de infinitas indulgências, ganha a do Céu. Aqui, o amor e a honestidade dão-se as mãos e passeiam juntos; a cortesia não deixa que se pavoneie a arrogância, nem a valentia que se acerque a cobardia. Todos os seus moradores são agradáveis, são corteses, são liberais e são enamorados, porque são discretos. A cidade é a maior da Europa e a de melhores maneiras; nela se descarregam as riquezas do Oriente e daqui se espalham para todo o universo. O porto é de grande capacidade e encerra não somente uma multidão de navios, mas florestas móveis de árvores que os mastros das naus formam. A formosura das mulheres espanta e apaixona. A galhardia dos homens pasma, como eles dizem. Esta é, enfim, a terra que ao Céu presta santo e generosíssimo tributo.
Miguel Cervantes, “Libro Tercero de los Trabajos de Persiles y Sigismunda, Historia Setentrional”