A escandinava Greta (esta é Garbo) e a paixão por Gilbert, em três capítulos que se lêem como um fósforo | por Manuel S. Fonseca in Página Negra

Posted on  by Manuel S. Fonseca

Esta é, em três fragmentos a que só por inadvertida audácia se pode chamar capítulos, a história de rejeição e paixão de John Gilbert e Greta Garbo, ídolos da América e do mundo, no final dos anos 20 e começo dos anos 30Para os mais jovens, acrescento mais informação: eram actores de cinema. E complemento: cinema era uma arte de sombras, indulgências, tesouros e cabalas, cultivada pela calada da noite em insidiosos palácios nocturnos, invisíveis durante o dia.

Heróico, viril e vil

Todo o passado é sincrético. Como sabem, John Gilbert é um actor do tempo de Homero ou Ben-Hur ou não fosse o cinema uma invenção mediterrânica. Um dos criadores desse cinema da antiguidade clássica foi Louis B. Mayer. Judeu, claro. Como Aquiles, era heróico, viril e vil. De poderoso soco. Basta vê-lo, à porta do Alexandria Hotel, aos murros a Charlie Chaplin. Foi em Los Angeles: na minha antiguidade clássica já havia América e hotéis de cinco estrelas.

Mas é de outro soco que falo. A viking Greta Garbo chegara a Hollywood. Vinha filmar “Temptress”, auto-estrada de adultérios em cadeia. Isto passou-se em 1925 e 1926, anos de lânguido aquecimento e dilatação dos corpos em Hollywood, como o provam os filmes que Mayer então produziu.

Queriam convidar John Gilbert para acasalar com a escandinava Garbo. Gilbert ainda não a vira, nem a queria ver. Tinha na cabeça outro filme e foi contar a história a Mayer, seu boss. Ouçam-no: numa idílica Inglaterra, um rapazinho decente vive com a mãe viúva, honrando-a com amor incondicional até se apaixonar por uma prostituta que o alivia da virgindade. Uma espiral de perdição arrasta o bom moço: assaltado por esses ciúmes mouros, que Shakespeare inventou, mata o amante da amante e é condenado às galés.

“Mas que disparate de filme, um rapazinho honesto com uma prostituta”, enervou-se Mayer. Gilbert agarrou-se às artes, à “Dama das Camélias”, de Dumas, à “Anna Christie”, de Eugene O’Neill: “É a mesma coisa”, disse o actor.

Mayer chamou bastard a Gilbert e juntou-lhe este mimo: “Só um depravado é que mete uma puta na história da mãe amada e do seu filhinho.” Gilbert não se conteve: “O que é que tem? A minha mãe era puta!” Já o fulminante punho de Mayer se lhe cravava no queixo, fazendo-o morder a alcatifa. “Devia cortar-te os tomates por dizeres isso.” O invencido Gilbert levantou-se. Sem punhos, mas com voz: “Mesmo sem tomates, sou melhor do que tu.” Seguraram Mayer que o queria matar. “Maçã podre… não tem amor à mãe.”

O irrestrito amor de Mayer à mãe é uma chave para a história do cinema americano. Nesses anos de Lei Seca, Mayer tinha no estúdio um tipo encarregado de arranjar bom álcool, tinha um bordel para as visitas, dois homens para apagar as malfeitorias das suas estrelas, um gabinete médico para os abortos das actrizes. Rendido às debilidades do mundo, redimia-o o homérico amor à mãe.

A indecifrável Garbo

Ilha dos Amores em Hollywood

Era tudo proibido e havia portanto toda a liberdade. Tenho estes dois olhos que a terra há-de comer apontados a Hollywood e, em Hollywood, a essa pequena porção de paraíso que era a MGM.

Lembro a tradição que começou no Natal de 1931, já Louis B. Mayer esmurrara John GiIlbert e já Gilbert conhecera a indecifrável Greta Garbo. É Natal, estamos nos estúdios da MGM e o católico Eddie Mannix deixou partir o patrão, Louis B. Mayer, ecumeníssimo judeu. Manix dá agora as suas ordens: cada um beberá o que quiser e cada um fará sexo onde quiser com quem, consentindo, queira. É de católico! E olhem, num impulso camoniano, eriçados actores, lânguidas actrizes, electricistas faíscantes, carpinteiros de poderoso martelo, as hábeis jovens de dedal e guarda-roupa transformaram o estúdio numa cantante ilha dos amores.

Não emprestarei a débil escrita aos suspiros e ais desse reaccionário convívio anti-luta de classes que foi, por alguns anos, a secreta e nua tradição natalícia da MGM. Se escrevo é para cantar a dignidade do amor do século, esse segundo em que os falecidos imortais Greta Garbo e John Gilbert se apaixonaram. Eram as estrelas de “The Flesh and the Devil” e esbarraram um no outro nos ensaios. “Hello Greta”, disse Gilbert, com uma bonomia que, frigidérrima, a sueca logo congelou: “My name is Miss Garbo”.

Pois está claro: mal começaram a trabalhar, duas noites depois, era tiro, queda e cama. E lembro, por ser verdade: a MGM do pudico Louis B. Mayer escondia, por tradição, os leitos transgressores das suas estrelas. Mayer sentiu que este era, agora, um mundo às avessas e escancarou a informação. Com quase anúncio público, Garbo e Gilbert passaram a viver juntos e os mirones tentavam trepar os muros da mansão para ver uma ponta de lençol, uma lasca de perna ao sol na piscina, a cama de mogno africano, misteriosa madeira que confere ao amor outra funda escuridão.

Quem revir hoje “The Flesh and the Devil” vê dois corpos apalpantes com sede um do outro, beijos de boca aberta que o cinema então não dava. A desabrida paixão de Gilbert quis casar. Garbo aceitou e marcou-se a pagã festividade. A elite da MGM a postos, só faltava chegar Garbo. Ainda hoje lá estariam à espera, não tivesse Mayer desistido. Gilbert, o abandonado Gilbert, chorava na casa de banho. O patrão foi brutal: “Não te basta comê-la? Para quê casar?” Um rebate lírico-passional levou as mãos do actor ao pescoço do patrão. Matava-o ali se o católico Mannix não o viesse salvar. Gilbert voltaria, depois, pouco depois, à cama de Garbo, antes de Garbo partir para outras camas. A Gilbert, às mãos de Gilbert que quase o estrangularam, Mayer serviria fria a vingança.

Mamoulian é o caixa de óculos à frente da Garbo

Tirar a roupa

Se a história do cinema ensina alguma coisa é que vem aí, agora, depois destes anos 20 do século XXI, uma década de libidinoso aquecimento. No século do código Hays, passagem dos anos 20 para os 30, tudo era proibido. Mesmo o beijo na boca era só uma lástima de beijo na boca.

Ora, as proibições, tal como os revolucionários, não dormem. Voltaram agora. Palpita-me, por isso, que vamos viver – já estamos a viver! – uma década de libidinosa vigília proibitiva. Antecipo as consequências: toda a proibição dilata os corpos e foi essa imparável expansão humana que, subversiva, inundou Hollywood naqueles anos pudibundos.

Poderá pensar-se que eram só os homens abusadores, pés fincados no danado poder patriarcal. E já vemos o produtor Irving Thalberg, nove da manhã, a tocar à porta da campainha da casa de um argumentista que abre espantado: era a primeira visita e a amante que Thalberg procurava morava na casa ao lado.

Mas o estado de ebulição tanto foi masculino, como feminino. Com excepção de Santa Lilian Gish, também as mulheres eram cometas, cauda em fogo, no céu de Hollywood. Até Jeanette McDonald, mais virgem na hora da morte do que quando nasceu, terá amado com clandestino e nuíssimo ardor o seu agente, recusando os avanços do patrão Mayer.

Greta Garbo fez do mundo um saco de gatos. Amou, dormiu e estraçalhou John Gilbert, o Brad Pitt daquele tempo, deixando-o pendurado no dia do casamento. Depois, fugiu seis vezes de “Susan Lenox”, filme com Clark Gable, por se ter apaixonado à primeira vista por Mercedes Acosta: iam juntas nadar nuas e, juntas, iam subir montanhas (talvez vestidas), “glorioso deus e deusa – cita a talentosa Acosta – fundidos numa só. Seis semanas pareceram seis minutos”.

Mas Garbo, em fogo nos braços de Mercedes, conheceu o realizador Rouben Mamoulian. Foi no assombroso “Queen Christina”, em que Garbo usava calças. E o que eu quero ou tenho de dizer é que entraram dois pares de calças em pecaminosa combustão. Mamoulian era um desengraçado caixa de óculos (tive uns óculos iguais), mas a Garbo apaixonou-se pela tão tacteante miopia dele. Apeou a amada Acosta e fugiu seis semanas com o realizador míope. Chegaram, crê-se, a casar, mesmo se a cerimónia foi duvidosa e se os papéis não têm valor.

Elucidativo do escaldante clima moral foi o horror de Louis B. Mayer a entrar num gabinete e ver o argumentista Ben Hecht a ditar diálogos de um guião a uma assistente em estado natural, se exceptuarmos o verniz nas unhas das mãos e dos pés. Toda a proibição sufoca. Em tempos de proibição e cancelamento, que podem os corpos fazer se não tirar a roupa? Esperem mais três, cinco anos e havemos de nos voltar a amar como Garbo amou perdidamente o olímpico Gilbert, a fogosa Mercedes e o míope Mamoulian. Talvez todos ao mesmo tempo.

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