Deus, nos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen | Frederico Lourenço

Para Sophia, Deus não está ausente do mundo: está dentro dele, em cada milímetro quadrado do mundo. Basta estarmos atentos para captarmos a presença de «esse deus que se oferece, como um beijo, nas paisagens» (Dia do Mar).

Hoje de manhã, ao acordar, o pensamento levou-me à lembrança de seis anos atrás, quando tive o grato prazer de participar numa conversa íntima (só que diante de 400 pessoas) sobre a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. Os meus interlocutores eram Ana Luisa Amaral e Miguel Sousa Tavares. Fomos admiravelmente moderados por Anabela Mota Ribeiro. O auditório da Biblioteca Almeida Garrett (Porto) encheu-se para nos ouvir – e tanto a Ana Luísa como o Miguel deram pistas extraordinárias para a compreensão da poesia de uma autora que, cada vez mais, se revela aos falantes de língua portuguesa como criadora de uma obra que, na sua aparente e desarmante simplicidade, está, como a de Mozart, ao nível do maior conseguimento artístico em termos absolutos. 

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PORQUE | Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, 1958

Poema sobre o Mar | Sophia de Mello Breyner Andresen

A minha vida é o mar o abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

Sophia de Mello Breyner Andresen

Reza da Manhã de Maio | Sophia de Mello Breyner Andresen

Senhor, dai-me a inocência dos animais
para que eu possa beber nesta manhã
a harmonia e a força das coisas naturais.
Apagai a máscara vazia e vã
de humanidade
apagai a vaidade,
para que eu me perca e me dissolva
na perfeição da manhã
e para que o vento me devolva
a parte de mim que vive
à beira dum jardim que só eu tive.

Sophia de Mello Breyner Andresen

25 de Abril de 1974 | Capitão Salgueiro Maia

25 avril 1974 | La Révolution
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C’est l’aube à laquelle je m’attendais
La journée initiale entier et propre
Où nous sommes sortis de la nuit et du silence
Et libre nous habitons la substance du temps
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Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
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Sophia de Mello Breyner Andresen

Mulheres à Beira-Mar | Sophia de Mello Breyner Andresen

Confundido os seus cabelos com os cabelos 
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e
tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura
dos seus pulsos penetra nas espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus
olhos prolonga o interminável rastro no céu
branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longa
mente a virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de
ser tão verde.

Sophia de Mello Breyner Andresen

É ESTA A HORA | Sophia de Mello Breyner Andresen

É esta a hora perfeita em que se cala
O confuso murmurar das gentes
E dentro de nós finalmente fala
A voz grave do sonhos indolentes.

É esta a hora das vozes misteriosas
Que os meus desejos preferiram e chamaram
É esta a hora das longas conversas
Das folhas com as folhas – unicamente.
É esta a hora em que o tempo é abolido
E nem sequer conheço a minha face.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)
in, DIA DO MAR.

 

Poema | Sophia de Mello Breyner Andresen

ha mulheres

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
… Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens…
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Retrato de Mónica | Sophia de Mello Breyner Andresen

monica - 200Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria. Na vida, conheci muitas pessoas parecidas com Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.

«Contos Exemplares» – Sophia de Mello Breyner Andressen

Obra Poética de Sophia de Mello Breyner Andresen

Obra_poetica_SMBAChega hoje às livrarias a nova edição de Obra Poética, o livro que reúne toda a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, seguindo e atualizando os critérios de fixação de texto adotados nas edições anteriores, graças ao cuidado trabalho de Maria Andresen Sousa Tavares e Carlos Mendes de Sousa, que assinam, respetivamente, o prefácio e a Nota de Edição. O presente volume inclui ainda uma parte com vários poemas inéditos que integram o espólio da autora, em depósito na Biblioteca Nacional de Portugal.
Como diz Maria Andresen Sousa Tavares, no Prefácio a esta edição, há «poetas mais peritos, mais cultistas, mais destros e liricamente sofisticados, mais modernos, mais antimodernos e pós-modernos, melhores pensadores. Mas aqui há uma força. Uma força muito raramente atingida. Há o vislumbre de um excesso não muito cauteloso, umas vezes iluminado, outras vezes rouco (“às vezes luminoso outras vezes tosco”). Mas há, sobretudo, o poder de uma simplicidade difícil de enfrentar, por vezes inconfortável, não pela dificuldade conceptual, mas porque a simplicidade é a coisa mais complexa e, neste caso, a mais difícil, porque nem sempre oferece o flanco ao diálogo, quando busca o “dicível” do esplendor e do terror […].»

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Sophia de Mello Breyner Andresen | A Salgueiro Maia

Aquele que na hora da vitória
Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi “Fiel à palavra dada á ideia tida”
Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse.

( Sophia de Mello Breyner Andresen )

Sophia de Mello Breyner Andresen | Noite de Abril

Noite de Abril
Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera

Alguém que ela conhece.
E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Caminho