100 anos de José Saramago, (in O Memorial do Convento)

“Quando Baltasar entra em casa, ouve o murmúrio que vem da cozinha, é a voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma, ora outra, mal se conhecem e têm tanto para dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fossem falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta, Deite-me sua benção, minha mãe, Deus te abençõe, meu filho, não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.

“Carta para Josefa, minha avó” – José Saramago

“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida:

«O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.”

Retirado do Facebook | Mural de Amélia Cunha

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA | José Saramago | por Valdemar Cruz

Ainda a recuperar das ondas de choque e espanto desencadeadas pela estreia no Teatro Nacional de S. João de ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, a partir do romance de José Saramago. A encenação de Nuno Cardoso, com versão cénica de Cláudia Cedó, a par do espantoso trabalho dos actores, proporciona uma daquelas raras situações em que sentimos estar a viver um momento único. Porventura irrepetível. Romance poderoso sobre uma distopia, evolui em palco como um inquietante épico momento teatral.

Quando se pergunta para que serve um Teatro Nacional, aqui está a esmagadora resposta. Um espectáculo com esta grandeza só é possível graças a uma co-produção que envolve o TNSJ e o Teatre Nacional de Catalunya. Com actores portugueses e catalães (legendas em português e catalão) a peça, até pela sua duração, se surge como um desafio para os actores, não deixa de constituir um permanente desassossego para os espectadores. Até pela surpresa e inventividade de algumas opções cénicas.

Dali ninguém sai como entrou. Mas ninguém se devia furtar à experiência de ir ao TNSJ para, se puder olhar, ver. Se puder ver, reparar.

As Mulheres São Mais Fortes | José Saramago

Para começar, gosto das mulheres. Acho que elas são mais fortes, mais sensíveis e que têm mais bom senso que os homens. Nem todas as mulheres do mundo são assim, mas digamos que é mais fácil encontrar qualidades humanas nelas do que no género masculino. Todos os poderes políticos, económicos, militares são assunto de homens. Durante séculos, a mulher teve de pedir autorização ao seu marido ou ao seu pai para fazer fosse o que fosse. Como é que pudemos viver assim tanto tempo condenando metade da humanidade à subordinação e à humilhação?

José Saramago, in ‘L’Orient le Jour (2007)’

Retirado do Facebook | Mural de Julio Machado Vaz

DE COMO SARAMAGO NÃO PRECISOU DE UM PSEUDÓNIMO | in Vida Breve

“Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacónico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudónimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana.

Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente por Sousa.”

JOSÉ (de Sousa) SARAMAGO (Azinhaga, Golegã, 16 de Novembro de 1922

— Tías, Lanzarote, 18 de Junho de 2010), escritor português, Prémio Nobel da Literatura em 1998, in “As Pequenas Memórias”, Editorial Caminho, 2006, p. 48-49.

Foto: O menino José

História de um muro branco e de uma neve | José Saramago

Não haveria nada mais fácil no mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele, se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos, foi pensar que as crianças nascem uma única vez e que depois de nascidas se limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres humanos. A criança começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas autênticas, ambas verdadeiras.

A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro.

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A lição de Saramago sobre a eutanásia | por Francisco Louçã in Jornal “Expresso”

José Saramago, entrevistado em televisão por Ana Sousa Dias como só ela sabia fazer, contava a história de um velho camponês que, à beira da morte, pediu aos familiares que o ajudassem a antecipar o fim porque não suportava mais o sofrimento irremediável. Ele sabia o que queria e eles, os familiares, ajudaram-no por amizade, explicava Saramago, porque respeitaram a sua decisão, mesmo se a choravam. Acrescenta Saramago: é isso que explica a escolha de Ramon Sampedro, o marinheiro tetraplégico que, em Espanha, lutou pelo direito a terminar a sua vida. As suas “Cartas do Inferno” mostravam como, não se podendo mover, achava que estava condenado a uma sobrevivência degradante e por isso pedia ajuda para morrer. Mais Saramago: “ninguém tem o direito de dizer a uma pessoa, você vai ficar aí, ligado a esses tubos e, por isso, devemos aceitar-lhe a morte se é isso que a pessoa quer”. “Não matamos”, continua, mas respeitamos quem nos diz “por favor ajudem-me”.

Saramago fala de bondade e de um direito que entende irrecusável. Percebo que a sua visão não seja aceite pelo Cardeal, por Cavaco Silva, por Assunção Cristas, por Jerónimo de Sousa, uns porque acreditam que a vida é um dom divino e outro porque pensa que a medicina vai a caminho de garantir a perpetuidade. São consciências e portanto respeitáveis. Ninguém deve questionar os seus motivos. Mas é bastante esta razão íntima que os leva a recusarem o pedido de alguém que não quer prolongar uma vida condenada e em sofrimento? Não deveria ela valer para si mesmos e não ser imposta a outros? Saramago respondia que cada pessoa sabe de si e esse é o princípio único da liberdade. A lição de Saramago é esta: respeita a liberdade das outras pessoas.

Tudo o resto, o ajuste de contas dentro do PSD contra Rui Rio e Balsemão, as homilias inflamadas em igrejas, as manifestações do PNR, a política que promete a vida eterna, isso não vale nada. Nada disso vale hoje, não existirá amanhã. Mas a lição de Saramago ficará sempre.

(no Expresso)

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

Ergo Uma Rosa | José Saramago

 

Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou ventos de cabelos que sacode.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontua de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me doi de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

José Saramago 

RECORDAR O ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO | Maria Isabel Fidalgo

Faz hoje sete anos que José Saramago resolveu juntar-se a Blimunda, a sete-luas e a Baltasar, o sete-sóis. E também ao padre Bartolomeu de Gusmão. E a Scarlatti. Não sei qual o espaço onde habitam, mas ressoa a música, a passarola flutua e as vontades desprendem-se leves.
Por cá, a terra continua a arder.

Retirado do Facebook | Mural de Maria Isabel Fidalgo

Inéditos de Mário Laginha em homenagem a José Saramago e Fernando Pessoa

No dia 18 de Novembro de 2015, na companhia de Alexandre Frazão e Bernardo Moreira, o pianista Mário Laginha subiu ao palco do Pequeno Auditório do CCB para um concerto que tinha como título “A Biblioteca dos Músicos” e que integrava a programação dos Dias do Desassossego’15.

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A Viagem do Elefante – na Fundação José Saramago

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Na próxima quarta-feira, dia 17 de dezembro, às 18:30, será apresentado no auditório da Fundação José Saramago o livro A Viagem do Elefante em banda desenhada, um trabalho de João Amaral inspirado na obra homónima de José Saramago.

A apresentação deste álbum ficará a cargo de Pilar del Río, que no prefácio da obra escreveu: «o caminho até Viena é tortuoso: João Amaral sabe-o bem porque o esteve a desenhar durante mais de dois anos passo a passo. […] João Amaral estudou muito bem aquilo que José Saramago havia escrito e logo que o soube com todas as letras pintou-o para que nada na sua banda desenhada fosse falso.»

Leia mais aqui.

A Viagem do Elefante – em BD

A_Viagem_Elefante_JSJosé Saramago em BD
João Amaral adapta para banda desenhada A Viagem do Elefante.
No dia 21 de novembro, a Porto Editora publica um livro surpreendente: A Viagem do Elefante, romance de José Saramago, adaptado para banda desenhada por João Amaral. Resultado de um trabalho de quase três anos, este livro, que tem a particularidade de ser narrado pelo Nobel português, relata a viagem do elefante Salomão, um presente do rei D. João III para o arquiduque Maximiliano da Áustria, de Lisboa até Viena, guiado pelo indiano Subhro.
Como diz Pilar del Río, no prefácio que escreveu para este livro, «o caminho até Viena é tortuoso: João Amaral sabe-o bem porque o esteve a desenhar durante mais de dois anos passo a passo. […] João Amaral estudou muito bem aquilo que José Saramago havia escrito e logo que o soube com todas as letras pintou-o para que nada na sua banda desenhada fosse falso».

Leia a recensão no Acrítico, leituras dispersas.

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A maior flor do mundo, de José Saramago

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Porto Editora publica A maior flor do mundo, de José Saramago.

A maior flor do mundo, livro para crianças de José Saramago, publicado originalmente em 2001, termina com uma questão: se as histórias para crianças fossem de leitura obrigatória para os adultos, seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar? Porque esta é, sem dúvida, uma obra sublime e de leitura obrigatória, a Porto Editora publica uma nova edição deste livro, com as ilustrações originais (e premiadas) de João Caetano, já disponível nas livrarias.

Em A maior flor do mundo, Saramago estabelece um imaginativo jogo com o leitor, transformando-se em personagem. Começa assim: «As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas.

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Lanzarote em Lisboa

LanzaroteAjanelaDeSaramagoLisboa

Livro e exposição Lanzarote – A Janela de Saramago apresentados esta sexta-feira.

A 30 de maio, às 18:30, na sede do Camões-IP (Av. Liberdade, 270), será apresentado o livro Lanzarote – A Janela de Saramago, de João Francisco Vilhena e José Saramago, e inaugurada a exposição de fotografia com o mesmo nome. Esta sessão contará com a presença de Pedro San Ginés Gutiérrez, Presidente do Cabildo de Lanzarote, Catarina Vaz Pinto, Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Ana Paula Laborinho, Presidente do Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, e de Pilar del Río, Presidente da Fundação José Saramago.

«Um súbito pensamento: será Lanzarote, nesta altura da vida, a Azinhaga recuperada?», questionava José Saramago nos seus Cadernos de Lanzarote. Em 1992, o escritor decidia mudar-se com Pilar del Río para essa ilha das Canárias, um local rodeado por vulcões onde encontrou a tranquilidade que procurava e onde ergueu a sua Casa e a sua Biblioteca. Há quinze anos, após o anúncio a atribuição do Prémio Nobel, recebeu o fotógrafo João Francisco Vilhena para um passeio de que resultariam fotografias surpreendentes, expostas em dezembro desse ano em Estocolmo, e agora reunidas no livro Lanzarote – A Janela de Saramago, que a Porto Editora publicou há poucos dias. Neste livro, as fotografias jogam em harmonia com os textos de José Saramago, presentes nos Cadernos de Lanzarote, sobre a terra, a paisagem, a vida: reflexões do Nobel português sobre os temas que o marcavam. Uma combinação que resulta num livro único.

O bom e o mau ladrão

publico_fotoO Evangelho segundo Jesus Cristo, de 1991, abre com a descrição da cena do Calvário. O autor observa um quadro.

O primeiro personagem é o bom ladrão, de caracóis louros (como os anjos), semblante arrependido e sofrido. Saramago reconhece-lhe “uma dor que não remite”. Mais “retíssimo” será o mau ladrão, esse a quem o autor reconhece um “sofrimento agónico” e, portanto, mais puro, isento da trapaça de “fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade”. A escrita de Saramago reveste-se deste olhar lúcido, um olhar que percorre, que perscruta o interior da alma humana e por vezes se detém num pensamento, para de seguida retomar o seu caminho. Parágrafos extensos que se demoram, presos à ideia que vão expondo, como se fossem adivinhando o fascínio que despertam no leitor.

Como narrador, Saramago aproxima-se da postura deste mau ladrão, sendo que, entre o bom e mau, “não há nenhuma diferença… pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro.”

“Deus na obra de Saramago” é o primeiro tema para as Tertúlias de Lisboa.

A dimensão literária de Deus em Saramago

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As Tertúlias de Lisboa têm a honra e o privilégio de receber, no dia 12 de Outubro na Ler Devagar, o Sheikh David Munir e o professor José Manuel Anes para a sua sessão inaugural.

Os nossos dois convidados são crentes, ambos acreditam no Deus de Abraão, aquele que se deu a revelar nos primeiros cinco livros, fundadores das grandes religiões do Livro Sagrado. Saramago era ateu.

No entanto, a presença de Deus na obra de Saramago é inegável. Um Deus pessoal, dotado de características físicas e humores humanos. Um Deus a quem Saramago retirou a mão esquerda (no Memorial do Convento), ou emergiu numa crise existencial, como em Caím. Não sendo possível olharmos Deus no seu esplendor e glória, Saramago deu-lhe um rosto, criou-lhe uma dimensão literária e humana, segundo a tradição iconográfica católica. Podemos então dizer que Saramago era ateu de um Deus católico?

Esta dimensão literária de Deus é perfeitamente alheia ao Islão, cuja representação do sagrado ou do Profeta estão proibidas. A obra de Saramago gerou polémica entre a comunidade católica e passou incólume na comunidade islâmica.

Deus na obra de Saramago é o ponto de partida para a nossa primeira tertúlia. Seguramente, o cálice transbordará.

Acompanhe tudo aqui

 

A dimensão de Deus

Diálogo entre Deus e Caim. Deus interpela Caim:

“Que sabes tu do coração de job, Nada, mas sei tudo do meu e alguma coisa do teu, respondeu caim, Não creio, os deuses são como poços sem fundo, se te debruçares neles nem mesmo a tua imagem conseguirás ver, Com o tempo todos os poços acabam por secar, a tua hora também há-de chegar. O senhor não respondeu, mas olhou fixamente caim e disse, O teu sinal na testa está maior, parece um sol negro a levantar-se do horizonte dos olhos, Bravo, exclamou caim batendo as palmas, não sabia que fosses dado à poesia, É o que eu digo, não sabes nada de mim. Com esta magoada declaração deus afastou-se e, mais discretamente que à chegada, sumiu-se noutra dimensão.”

Caim, de José Saramago

As diversas dimensões onde Deus se some são um mistério para os homens.

Mais aqui, em breve.

José e Pilar, um filme de Miguel Gonçalves Mendes

 Este filme acompanha o dia-a-dia do casal José Saramago e Pilar del Rio, mostrando-nos o processo criativo do livro a “A Viagem do Elefante”. Momentos do cotidiano, ponteados pelas reflexões de José Saramago, enquanto Pilar, como uma abelhinha, vai cuidando do dia-a-dia do casal, da agenda de Saramago e do próprio Saramago.

Existe uma forte união entre os dois, sem que um apague o outro. Disso mesmo nos dá conta o filme, mostrando Pilar nas suas próprias iniciativas, em diversas conferências e presenças na comunicação social.

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O Cidadão Lúcido em Vez do Consumidor Irracional | José Saramago

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Já se sabe que não somos um povo alegre (um francês aproveitador de rimas fáceis é que inventou aquela de que «les portugais sont toujours gais»), mas a tristeza de agora, a que o Camões, para não ter de procurar novas palavras, talvez chamasse simplesmente «apagada e vil», é a de quem se vê sem horizontes, de quem vai suspeitando que a prosperidade prometida foi um logro e que as aparências dela serão pagas bem caras num futuro que não vem longe. E as alternativas, onde estão, em que consistem? Olhando a cara fingidamente satisfeita dos europeus, julgo não serem previsíveis, tão cedo, alternativas nacionais próprias (torno a dizer: nacionais, não nacionalistas), e que da crise profunda, crise económica, mas também crise ética, em que patinhamos, é que poderão, talvez — contentemo-nos com um talvez —, vir a nascer as necessárias ideias novas, capazes de retomar e integrar a parte melhor de algumas das antigas, principiando, sem prévia definição condicional de antiguidade ou modernidade, por recolocar o cidadão, um cidadão enfim lúcido e responsável, no lugar que hoje está ocupado pelo animal irracional que responde ao nome de consumidor.

 

José Saramago

 

1994 – Cadernos de Lanzarote

 

Vandalismo na Casa dos Bicos‏

Na madrugada de domingo a Casa dos Bicos foi alvo de um acto gratuito de vandalismo que resultou na destruição do conjunto de painéis que desde o passado mês de novembro assinalam os 30 anos da edição de Memorial do Convento e os 90 Anos de José Saramago. A Fundação José Saramago denuncia o sucedido e afirma que este tipo de vandalismo, mais do que atingir a Fundação e a Casa dos Bicos, atinge a cidade de Lisboa, a sua população e todos os visitantes da Casa, que nestes meses têm deixado testemunho do apreço por esta iniciativa de transformar o edifício numa galeria pública virada para o Tejo e para a cidade. A metáfora da destruição faz aqui todo o sentido, se associarmos os que perpetram actos contra o bem público aos que neste momento retiram a Portugal a soberania e os seus direitos, situação contra a qual parecemos indefesos, como país, como Fundação.

Para as autoridades competentes seguiu já uma denúncia do crime.

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Lanzarote homenageia José Saramago com uma oliveira de aço numa rotunda

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Lanzarote vai homenagear o filho adotivo José Saramago com uma escultura de quase cinco metros em aço, a colocar na rotunda que dá acesso ao complexo da Casa e da Biblioteca do escritor, em Tías, no dia 18 de março, segundo aniversário da abertura deste espaço ao público.

A escultura, da autoria de José Perdomo a partir de um desenho de Esther Viña, ambos de Lanzarote, representa uma oliveira feita com as letras iniciais de José Saramago – o tronco é um jota, os ramos são esses. Foi apresentada publicamente no dia 25, numa sessão em que estiveram presentes a conselheira de Cultura doHoverno das Canárias, Inés Rojas, o presidente do Cabildo de Lanzarote, Pedro san Ginés, o presidente da câmara municipal de Tías, Francisco Hernández, e a presidenta da Fundação José Saramago, Pilar del Río.

A conselheira da Cultura sublinhou que a iniciativa tem o objetivo de deixar um testemunho da permanência de José Saramago em Lanzarote, onde se instalou em 1993, repartindo a presença na ilha com as sucessivas estadas em Lisboa. Foi em Lanzarote que escreveu o Ensaio sobre a Cegueira (1995) e todas as obras que se seguiram.

O presidente do Cabildo reconheceu que Lanzarote “nunca poderá pagar” a Saramago o facto de se ter apaixonado pela ilha e de ter decidido ali viver. “Mas podemos agradecer-lhe e esta é uma maneira de fazê-lo”.

Os representantes das instituições que se juntaram nesta homenagem a Saramago pertencem a diferentes partidos, como sublinhou na ocasião Pilar del Río que destacou que o facto de se terem sentado à mesma mesa pela cultura “integra-se no espírito de Saramago”.

Pilar del Río recordou a influência que Lanzarote e a sua paisagem tiveram na obra do escritor português, como é possível verificar no texto A estátua e a pedra – que a Fundação José Saramago publicará nos próximos meses. Nesse texto, Saramago explica que o contacto com a ilha o levou a alterar o seu estilo e a forma de ver as coisas – passou a interessar-lhe mais a pedra e a sua matéria do que a estátua.

Nadine Gordimer dá voz a “O Centauro” de José Saramago

“I’m Nadine Gordimer and I’m going to read a story of the great José Saramago”: assim começa a leitura do conto “O Centauro”, incluída no livro “Objecto Quase” (1978), hoje publicada na série de short stories da versão online do jornal britânico The Guardian.

Esta gravação faz parte da série de contos escolhidos por grandes escritores que o The Guardian está a publicar desde o dia 21.

Nadine Gordimer considera que este texto é “uma fábula extraordinária”, que fala de “uma criatura imaginária, algo que é maior e melhor e diferente de um homem”. “Este é o sonho de uma criatura que é metade cavalo, metade homem, com a força física de um cavalo e a complexidade mental de um homem”,  e que aborda o conflito entre a mente e o corpo”.

A série de contos que o The Guardian publica nas semanas de Natal e Ano Novo começou com a leitura, por Zadie Smith, de “Umberto Buti” de Giuseppe Pontiggia. Seguiram-se Richard Ford a ler “The Student’s Wife”, de Raymond Carver, RuthRendell com a leitura de “Canon Alberic’s Scrapbook” de M.R.James e, ontem, Simon Callow com “A Árvore de Natal” de Charles Dickens.

Prémio Nobel da Literatura em 1991, a escritora sul-africana nasceu em Joanesburgo em 1923 e é autora de “Um mundo de estranhos”, “A história do meu filho” e “O fim dos anos burgueses”, entre outros romances.

Nadine Gordimer e José Saramago foram amigos, cruzaram-se em diversos continentes em conferências e apresentações de livros um do outro. Estiverem presentes ambos em 2001 no centenário do Prémio Nobel, em Estocolmo. Saramago participou num livro organizado por Gordimer a favor da luta contra a Sida na África do Sul e no mundo.

Nadine Gordimer