Deus, nos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen | Frederico Lourenço

Para Sophia, Deus não está ausente do mundo: está dentro dele, em cada milímetro quadrado do mundo. Basta estarmos atentos para captarmos a presença de «esse deus que se oferece, como um beijo, nas paisagens» (Dia do Mar).

Hoje de manhã, ao acordar, o pensamento levou-me à lembrança de seis anos atrás, quando tive o grato prazer de participar numa conversa íntima (só que diante de 400 pessoas) sobre a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. Os meus interlocutores eram Ana Luisa Amaral e Miguel Sousa Tavares. Fomos admiravelmente moderados por Anabela Mota Ribeiro. O auditório da Biblioteca Almeida Garrett (Porto) encheu-se para nos ouvir – e tanto a Ana Luísa como o Miguel deram pistas extraordinárias para a compreensão da poesia de uma autora que, cada vez mais, se revela aos falantes de língua portuguesa como criadora de uma obra que, na sua aparente e desarmante simplicidade, está, como a de Mozart, ao nível do maior conseguimento artístico em termos absolutos. 

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As vozes da Bíblia | Frederico Lourenço

Ou …

(Sobre mim, a minha liberdade de ler e entender as Escrituras – e de falar sobre elas – e a minha liberdade na escolha dos critérios com que estou a fazer a minha tradução da Bíblia).

Acredito que Jesus de Nazaré realmente existiu. (E digo isto apesar de já não me considerar formalmente cristão).

Acredito que Jesus interveio publicamente na Galileia e na Judeia, de uma forma que terá sido surpreendente e inovadora no contexto do judaísmo da época. Acredito que isso terá mudado a vida de muitas pessoas que ouviram o som real da voz dele; e acredito que Jesus foi crucificado em Jerusalém na década de 30 do século I.

No entanto, a metodologia histórica que escolhi seguir na minha tradução da Bíblia não me obriga a discutir se Jesus foi uma figura histórica (permitindo-me, porém, admitir que sim). O historicismo da minha metodologia incide na atitude perante os textos: obriga-me a considerar cada livro da Bíblia como entidade histórica própria, que existiu com identidade independente antes de se ter formado aquilo que veio a ser a Bíblia. Por outras palavras, não leio o Antigo Testamento pelo filtro do Novo Testamento, porque os livros do Antigo Testamento foram escritos antes de existir Novo Testamento. Não leio a Escritura judaica pelo filtro do cristianismo pela mesma razão histórica: para mim, o Antigo Testamento não é um «prelúdio» nem um «prenúncio» do Novo Testamento.

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Quem foi Jesus? | Frederico Lourenço

Quem foi o homem cujo nascimento hoje celebramos? Desde o século XIX, o estudo crítico do Novo Testamento e do primeiro cristianismo tem tentado reconstituir quem terá sido o «Jesus histórico». Em que ponto estamos desta investigação?  Vou dar-vos uma proposta de biografia do Jesus real.

Jesus nasceu em Nazaré, na fase final do reinado de Herodes, o Grande (rei que morreu em 4 a.C.). Era filho de um construtor chamado José e da sua mulher, Maria.

Jesus era o mais velho de vários irmãos e irmãs. Em casa, falava-se aramaico; mas Jesus beneficiou do facto de Nazaré estar perto de cidades gregas, como Séforis, cuja distância de Nazaré corresponde à que medeia, na nossa cidade do Porto, entre o Estádio do Dragão e a rotunda da Boavista. Em toda a volta de Nazaré, falava-se grego. De Gádara, uma das dez cidades gregas da zona, era originário o maior poeta grego do século I a.C., Meleagro. A helénica Séforis tinha um teatro; e Jesus sabia o que era o conceito grego de «actor», pois usou a palavra grega «hipócrita» numa acepção sem qualquer equivalente no aramaico falado em casa ou no hebraico da Escritura.

Jesus recebeu uma educação judaica baseada nessa Escritura e foi certamente o rapaz intelectualmente sobredotado de que vemos reflexo em Lucas 2:47. As pessoas não lhe chamaram «mestre» à toa.

Nos anos 20 do século I, Jesus contactou com o movimento de João Baptista, que apelava aos israelitas que «mudassem de mentalidade» e que, por meio do baptismo no rio Jordão, obtivessem o cadastro limpo perante Deus que, oficialmente, só podia ser obtido por meio do sacrifício de animais no templo. João Baptista atraiu a má vontade da elite sacerdotal de Jerusalém; o mesmo aconteceria com Jesus.

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Evangelhos Apócrifos | de Frederico Lourenço 

Editor: Quetzal Editores | Edição: outubro de 2022

SINOPSE

A par dos evangelhos canónicos, existem outros (combatidos a partir do século IV e excluídos no século XVI) que mostram a figura e as ideias de Jesus Cristo sob um prisma muito diferente.

Antes da imposição de uma doutrina única no século iv, o cristianismo caracterizou-se pela diversidade de pensamento. A par dos evangelhos tornados canónicos, circulavam também outros, atribuídos a nomes como Pedro, Tomé e Filipe, que davam a ver a figura de Jesus Cristo sob prismas diferenciados.

O Evangelho de Pedro emprega uma palavra que nunca ocorre nos evangelhos canónicos: «discípula». No único evangelho cuja autoria é atribuída a uma mulher (o Evangelho de Maria), a pessoa a quem Jesus confia a sua doutrina não é Pedro nem João, mas sim Maria Madalena.

Muitos destes textos permaneceram desconhecidos até à segunda metade do século xx e o seu conteúdo ainda suscita controvérsia. No entanto, os evangelhos apócrifos constituem um estímulo para repensarmos, hoje, o cristianismo de forma menos dogmática e com mais espírito de inclusão.

A finalidade deste livro é dar a ler o material greco-latino em edição bilingue, com um comentário crítico-histórico tão imparcial quanto possível, trazendo esses textos de regresso em toda a sua plenitude, traduzidos das suas fontes originais.

Evangelhos de Tiago, Tomé, Filipe, Maria, Pseudo-Mateus, Pedro, Nicodemos, Natividade de Maria, Relatos da Paixão de Cristo, Narrativa de José de Arimateia, Evangelho dos Egípcios, Místico de Marcos, Evangelho copta de Maria, Relatório de Pilatos, Descida de Cristo aos Infernos, Evangelho de José o Carpinteiro, etc.


Biografia de Frederico Lourenço

Ensaísta, tradutor, ficcionista e poeta, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é atualmente professor associado com agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e membro do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da mesma instituição.

Foi docente, entre 1989 e 2009, da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Línguas e Literaturas Clássicas (1988) e se doutorou em Literatura Grega (1999) com uma tese sobre Eurípides, orientada por Victor Jabouille (Lisboa) e James Diggle (Cambridge). Publicou artigos sobre Filologia Grega nas mais prestigiadas revistas internacionais (Classical Quarterly e Journal of Hellenic Studies) e, além da Ilíada, traduziu também a Odisseia de Homero, tragédias de Sófocles e de Eurípides, e peças de GoetheSchiller e Arthur Schnitzler.

No domínio da ficção, é autor de Pode Um Desejo Imenso (2002). Na poesia, é autor de Santo Asinha e Outros Poemas e de Clara Suspeita de Luz. Publicou ensaios como O Livro Aberto: Leituras da BíbliaGrécia RevisitadaEstética da Dança Clássica e Novos Ensaios Helénicos e Alemães (Prémio PEN Clube de Ensaio 2008). Recebeu ainda os prémios PEN Clube Primeira Obra (2002), Prémio D. Diniz da Casa de Mateus (2003), Grande Prémio de Tradução (2003), Prémio Europa David Mourão-Ferreira (2006).
Em 2016 iniciou na Quetzal a publicação dos seis volumes da sua tradução da Bíblia (que lhe valeu o Prémio Pessoa); em 2019 publicou uma Nova Gramática do Latim; em 2020, Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições e Poesia Grega de Hesíodo a Teócrito (edição bilingue em grego e português); e, em 2021, as Bucólicas de Vergílio (em latim e português).

O lugar da mulher na Igreja | Frederico Lourenço

As mulheres são as mães da Humanidade. Até os membros da Igreja Católica o “esquecem”. Todos, menos Jesus Cristo. O único que as respeitou e verdadeiramente amou. | [vítor coelho da silva]

Quando eu era jovem assistente na Faculdade de Letras de Lisboa, atrevi-me a perguntar a um catedrático de História (senhor de fama já lendária) porque é que tínhamos tantas colegas professoras na área da Literatura e tão poucas (ainda que distintíssimas) na área da História. A resposta que ele me deu há trinta anos parece hoje impensável: «a História chama menos as senhoras porque requer muito estudo».

A misoginia da atitude é arrepiante, mas (como todos sabemos) não é surpreendente. Mais tarde, já como professor em Coimbra, foi-me dito que havia dois professores catedráticos (também de geração salazarenta) que nunca tratavam a sua colega catedrática Maria Helena da Rocha Pereira por «Senhora Doutora» (como é normal entre colegas em Coimbra), mas sim por «Dona Maria Helena», embora eles entre si se tratassem por «Senhor Doutor» e ela própria os tratasse com essa deferência académica.

Se isto retrata a universidade portuguesa no século XX, estamos a ver bem o ambiente em que se teria desenrolado a discussão sobre se uma mulher tem capacidade para desempenhar as funções que, na Igreja Católica, são assumidas por padres, bispos, cardeais e papas.

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Legislativas 2022 | Frederico Lourenço

«Nunca escreves sobre política». É um comentário que oiço muitas vezes.

Talvez a minha relação com a política nunca tenha sido clara. Sou filho de dois oposicionistas do regime de Salazar (os meus pais, Manuel e Manuela, conheceram-se na sala de espera da PIDE, antes de serem submetidos a interrogatórios). Mas cresci num ambiente familiar bipolarizado: os meus avós (e logo o quarteto completo) veneravam «o Dr. Salazar» e pronunciavam a palavra «esquerda» com a mesma repugnância com que diriam (se dissessem tal palavra) «sífilis».

A minha mãe, por outro lado, pronunciava a palavra «direita» como se ela exprimisse a quinta-essência da maldade humana. À mesa, em casa dos meus avós maternos, os meus ouvidos de adolescente escutavam o meu avô a falar de esquerdistas e de «pederastas» (como ele dizia) como sendo a escória da humanidade. Depois comecei a perceber que ele evitava mais esse tipo de assunto quando estavam presentes a minha mãe e o meu tio (ambos esquerdistas convictos). Hoje pergunto-me se ele não estaria a fazer já, com o neto, uma forma de «gay conversion therapy». Seja como for, não resultou.

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À procura do túmulo de Vergílio (Nápoles, Outubro 2021) Frederico Lourenço

Desde que descobri – já não sei como – que existe em Nápoles um lugar tido como o túmulo de Vergílio, não me largou mais a ideia de ir lá prestar homenagem ao deus maior do meu panteão. Graças ao talento organizacional do André, foi possível pôr essa aventura em marcha durante uma curta estadia em Itália. O problema foi perceber onde, em Nápoles, se situava o túmulo, já que toda a investigação que eu tinha feito (com a leitura de artigos eruditos em revistas de filologia clássica) me deixara sempre uma impressão confusa. O túmulo era em Posillipo (a colina nobre de Nápoles onde vivera a aristocracia na época romana – e o próprio Vergílio, muito provavelmente – e onde vivem agora os «calciatori», vedetas do futebol), ou no sopé da colina, em Piedigrotta?

E em qual dos dois parques napolitanos dedicados a Vergílio é que se situaria? No «Parco Virgiliano» ou no «Parco Vergiliano»? (Nunca nos livraremos do problema Vergílio/Virgílio…)

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Vergílio ou Virgílio? | Frederico Lourenço

Não havendo a mínima dúvida de que o autor das «Bucólicas», das «Geórgicas» e da «Eneida» se chamava PVBLIVS VERGILIVS MARO – portanto, em português, Vergílio – porque é que as pessoas preferiram, durante toda a Idade Média e até praticamente aos dias de hoje, chamar-lhe Virgílio?

Antes de entrar nesta floresta de controvérsia, começo por uma declaração de simpatia subjectiva para com o nome «Virgílio». Acho um nome lindo, escrito assim com «i» na primeira sílaba, e envio daqui um cumprimento cordial a qualquer Virgílio (em Portugal ou no Brasil) que esteja a ler este texto. E, quanto ao poeta romano, quem sabe se ele até não gostaria de ver esta versão do seu nome? Eu não me importaria nada de ser «Friderico» em vez de «Frederico».

Objectivamente, porém, o nome latino é VERGILIVS. Verificamos isso em inscrições do período republicano e ainda do início do período imperial. Os preciosos manuscritos do século V (hoje em Florença e no Vaticano), que são os testemunhos mais antigos da obra do nosso poeta, grafam o nome, sem lugar para dúvida, como VERGILIVS, não só nos títulos das obras, como no famoso verso das «Geórgicas», que é a única passagem em que o poeta nos diz o seu nome e a sua residência: «naquele tempo me alimentava – a mim, Vergílio – a doce / Nápoles…» (Geórgicas 4.563-4; em latim, «illo Vergilium me tempore dulcis alebat / Parthenope…»).

Como surgiu, então, a forma Virgílio? E porquê?

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«Bucólicas» de Vergílio | Frederico Lourenço

Saiu hoje a minha edição das «Bucólicas» de Vergílio. É difícil encontrar palavras para dizer quanto estou grato pelo cuidado esmerado com que o livro foi concebido por Francisco José Viegas: a vinheta inspirada num desenho de Nicolas Poussin; a reprodução no interior do livro da deslumbrante Cena Campestre de Claude Lorrain (esse quadro mítico). Um enorme obrigado a toda a equipa da Quetzal que produziu este livro.

Agradeço, acima de tudo, o privilégio de vos dar a ler (pelos meus olhos – isto é, pelo resultado das minhas muitas leituras e reflexões) estes poemas sublimes.

Não são poemas ingénuos acerca de pastores. Estes textos tratam, em linguagem codificada, das maiores questões da vida humana, desde a política, à religião e ao sexo. Tratam do lugar e do poder da arte nas nossas vidas. Tratam da natureza e da necessidade de a respeitarmos – em vez de a rapinarmos.

Tratam da dor incurável do amor sem solução, mas tratam também do mistério da esperança; e da possibilidade de sermos felizes, na Terra, se o quisermos.

Como novidade absoluta na poesia latina, estes poemas olham de frente para a polarização na vida política e para os efeitos que daí advêm para vítimas inocentes.

São poemas de há 2000 anos, mas são poemas que nos falam hoje, das questões de hoje, das emoções e dos problemas que todos nós sentimos.

E como se tudo isso não fosse suficiente para partirmos à descoberta dos mistérios das «Bucólicas» vergilianas, há ainda o factor da sua musicalidade inultrapassável em latim. Na verdade: nunca se escreveu poesia auditivamente tão bela. Um milagre.

São Paulo | Frederico Lourenço

Pelo que se tem visto, lido e ouvido ultimamente, parece que Portugal descobriu a existência, na Bíblia, de um autor polarizador e polémico: São Paulo.

Quem foi este homem? O que pensar dos textos que escreveu?

Paulo é, na verdade, o único autor do Novo Testamento a cuja identidade podemos associar uma biografia real, mas a reconstituição da sua biografia esbarra de imediato contra um célebre problema: a discrepância entre aquilo que é dito sobre Paulo nos Actos dos Apóstolos e aquilo que Paulo diz sobre si próprio nas suas cartas autênticas. Este problema influi no grau de credibilidade que podemos adscrever aos dados que nos chegaram sobre a biografia de Paulo exclusivamente via Actos dos Apóstolos. Isto porque a lógica mais básica nos exige que pelo menos equacionemos a hipótese de estarem errados os elementos biográficos sobre Paulo em Actos quando estes colidem com o que é escrito pelo próprio Paulo nas suas cartas.

 Assim, para muitos estudiosos atuais, a metodologia crítica mais defensável na abordagem à biografia de Paulo implica dar primazia à credibilidade de Paulo nos pontos em que há contradição entre as cartas autênticas de Paulo e outras fontes.

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Entender o português através do latim Frederico Lourenço

Entender o português através do latimNós – portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos e tantos outros que nos exprimimos em português – usamos dezenas de palavras cujo sentido original só o latim nos pode relevar.

Por isso digo sempre: como entender um ensino secundário lusófono de que o latim está ausente? Como chegámos ao ponto de quase exterminar o latim do nosso sistema de ensino? Que crime foi este contra as gerações futuras?

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Natal 2020 | Frederico Lourenço

Quem leu o famoso romance “Brideshead Revisited” de Evelyn Waugh lembrar-se-á de uma conversa entre Charles e Sebastian sobre a fé, em que Charles se afirma não-crente e exprime a sua estranheza perante o facto de o amigo acreditar na lenda do Natal (com Reis Magos e burrinho junto da manjedoura). Diz Charles: “but my dear Sebastian, you can’t seriously believe it all… I mean about Christmas and the star and the three kings and the ox and the ass”. Ao que Sebastian responde: “oh yes, I believe that. It’s a lovely idea”.

Neste ano de pandemia, tão dilacerante para milhões no mundo (e que nos trouxe em Novembro a notícia deprimente de que Donald Trump obteve mais 11 milhões de votos do que em 2016 e, em Dezembro, mutações super contagiosas do coronavírus), a “lovely idea” do Natal é mais precisa do que nunca, capaz de consolar pessoas religiosas e pessoas sem nenhuma religião. Na verdade, não preciso de acreditar que o menino deitado na manjedoura é filho de Deus para reconhecer a espantosa beleza da ideia de que o filho de Deus pudesse estar deitado num estábulo de animais, calmamente observado por um burro e por um boi. Também não preciso de acreditar na virgindade da mãe que o deu à luz para achar “a lovely idea” a noção de que uma virgem pudesse engravidar e parir uma criança.

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Novo Livro | “LATIM DO SÉRIO” | Frederico Lourenço

Lançado hoje! (13/11/2020)

Quando, em Março de 2020, a pandemia levou a Universidade de Coimbra a substituir, até ao fim do ano lectivo, a leccionação presencial pelo ensino online, pensei em formas de manter motivada a minha turma de Poesia Latina.

Ocorreu-me a ideia de criar uma página no Facebook, a que chamei «Vergílio em Coimbra», porque a pandemia atacara no momento em que, justamente, eu me preparava para aprofundar com a turma o estudo de Vergílio. A turma de Poesia Latina tinha 19 inscritos; depressa compreendi que, no Facebook, o universo de interessados era muito maior. Também me fui dando conta de que, na caixa de comentários dos posts, iam surgindo perguntas da parte de gente não só interessada nas reflexões propostas sobre Vergílio como, ao mesmo tempo, curiosa sobre como aprender latim a partir do zero. Comecei a perceber que havia muitas pessoas em Portugal e no Brasil interessadas em saborear as nuances sublimes da poesia vergiliana – só que lhes faltava, para tal, saber latim.

Claude Lorrain e o espírito de Vergílio | Frederico Lourenço

No final da sua longa vida, o pintor seiscentista Claude Gellée (conhecido como «Lorrain» por ter nascido na Lorena) dedicou-se à leitura da «Eneida» de Vergílio, focando-se assim num texto em cujo ideal estético (a Perfeição pura e simples) viu decerto um reflexo do seu.

Sabemos que Claude leu Vergílio na tradução italiana de Annibale Caro (que saíra em Veneza, em finais do século XVI), pois, ao contrário do seu amigo e vizinho Nicolas Poussin, não obtivera uma escolaridade suficientemente sólida em latim para conseguir ler o poema na língua original. E porquê italiano – e não francês? Pela simples razão de que Claude – tal como Poussin – viveu a maior parte da sua vida em Roma; e (de novo, como Poussin) tinha aversão à ideia de viver em França. É sempre estranho vermos a historiografia francesa considerar Poussin e Claude como pintores franceses, porque a única coisa de francês que eles tiveram foi a naturalidade. A sua arte não é francesa: por um lado, todos os modelos que os inspiraram foram italianos (Rafael, Ticiano, Annibale Carracci, Domenichino); por outro, vivendo eles durante toda a sua vida adulta perto da Piazza di Spagna em Roma – e recriando eles, na sua arte, uma antiguidade romana idealizada –, a melhor forma que temos de os descrever é como artistas romanos.

Constantinopla – Florença – Coimbra | Frederico Lourenço

Entre as grandes alegrias de ser professor de Grego na Universidade de Coimbra tenho de contar o sentido histórico de continuidade que nunca deixa de me encantar. Ao vigiar hoje, na Faculdade de Letras de Coimbra, um teste de Grego em que os meus alunos tinham de responder a perguntas sobre uma passagem da comédia «Pluto» de Aristófanes, dei por mim a pensar na longa tradição – que já se estabelecera antes de ter nascido Jesus Cristo – de usar esta comédia como instrumento didáctico para o ensino do Grego. Depois, ao longo de mil anos de escolaridade grega em Constantinopla, o estudo deste texto de Aristófanes ocupou um lugar central. É, de todas as comédias de Aristófanes, a que conta um número mais elevado de manuscritos bizantinos.

Palavras dos Evangelhos | Frederico Lourenço

O quadro de El Greco na Colecção Frick de Nova Iorque, que representa Jesus a expulsar os vendilhões do templo, deu-me recentemente que pensar por duas razões.

A primeira foi a notícia lida algures de que, estando comprovado que a contemplação de grandes obras de arte aguça e refina a capacidade de atenção, existem hoje iniciativas em grupos profissionais que ninguém esperaria (como o exército ou a polícia nos EUA) programadas para ensinar futuros militares a analisar obras de arte e a memorizar os seus pormenores. Um grupo de futuros polícias foi levado, pois, à Colecção Frick de Nova Iorque, onde uma professora de História de Arte lhes propôs a análise do quadro de El Greco que vêem na imagem. A professora perguntou ao grupo o que achavam do quadro. Um dos futuros polícias disse imediatamente que mandaria prender «the guy in pink, because he’s causing all the trouble».

Uma segunda ocasião que me pôs a pensar no quadro de El Greco foi o visionamento de uma conferência proferida pelo brilhante director da Colecção Frick, Xavier Salomon (cujos vídeos no YouTube vos recomendo vivamente). Falando deste quadro, o Dr. Salomon explicou que representava um episódio do Evangelho de Mateus. Na verdade, Jesus expulsa os vendilhões do templo em cada um dos quatro Evangelhos, mas a cena pintada por El Greco não representa o episódio de Mateus, mas sim o de João. Pois é só no Evangelho de João que Jesus expulsa os vendilhões à chicotada. A passagem de João tem um carácter individual por várias razões: uma delas é que nos dá a única ocorrência no Novo Testamento da palavra «phragéllion» (φραγέλλιον), «chicote».

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O comentário mais antigo aos Evangelhos em latim | Frederico Lourenço

Em 2012, o latinista austríaco Lukas Dorfbauer fez uma descoberta sensacional no fundo de manuscritos da catedral de Colónia. Descobriu o mais antigo comentário aos Evangelhos em latim, que desaparecera de vista na época carolíngia. Escrito no século IV por Fortunaciano, bispo de Aquileia, este texto transporta-nos directamente para o cristianismo pré- e pós- constantiniano: «pré-» porque quando Fortunaciano nasceu, no início do século IV, o cristianismo era ainda uma religião ilegal, cujos adeptos a praticavam com risco de vida; «pós-» porque Fortunaciano teve a fortuna (quiçá plasmada no seu nome) de pertencer à geração que viveu com alegria a despenalização da fé cristã e se confrontou com a realidade surpreendente de um novo cristão no seu meio: o próprio imperador Constantino. Este supremo benfeitor da igreja (que não viu incompatibilidade entre ser cristão e mandar matar a mulher e o filho, entre muitas outras acções condenáveis à luz dos ensinamentos de Jesus) legou ao cristianismo uma tensão que até hoje não está resolvida: e essa tensão reside na permissibilidade de alguém se intitular cristão, e de ser incentivado nessa auto-percepção pela hierarquia esclesiástica (sobretudo se for rico e poderoso), sem precisar de pôr em prática quase nada do que Jesus ensinou. Penso muito em Constantino cada vez que vejo a corte de pastores evangélicos à volta de Trump e de Bolsonaro – e, para não batermos só nos evangélicos, não esqueçamos como os vários papas nunca deram a Pinochet, a Franco ou a Salazar motivo para auto-questionarem a sua identidade de bons católicos.

 

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Voltar aos Evangelhos, dia após dia | Frederico Lourenço

Levado pela curiosidade e ajudado pela propensão poliglota com que tive a sorte de nascer, em 57 anos de vida já li muitos textos em várias línguas. Mas os quatro textos a que volto sempre são os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, que leio todos os dias em grego e também nas luminosas traduções latinas conhecidas como «Vetus Latina» e «Vulgata» (no caso dos Evangelhos, «Vulgata» designa no fundo a «Vetus Latina» retocada por Jerónimo).

Por estranho que pareça, o facto de eu ter publicado uma tradução dos Evangelhos e de eles fazerem parte do meu quotidiano não trouxe o efeito que eu previa de familiaridade, muito menos o que eu receava de banalidade. Estes textos, que conheço de trás para a frente, nunca me são familiares, porque são todos os dias uma descoberta fulminante; e, em vez de o meu estudo operar um efeito de banalização, o que acontece é que estes textos se me tornam cada vez mais especiais, mais únicos – e, ao mesmo tempo, mais enigmáticos, mais ambíguos, mais difíceis de entender.

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Amor sexual e bem-aventurança | Frederico Lourenço

As pessoas que se interessam por temas cristãos e sabem um bocadinho de grego conhecem a palavra que está em causa quando, nos Evangelhos, Jesus fala de amor: «agápē» (ἀγάπη). Trata-se de uma palavra que podemos distinguir de outras duas palavras gregas que significam «amor»: philía (φιλία) e érōs (ἔρως). A ideia de uma expressão sexual do amor pode estar implícita em «philía» e é explícita em «érōs», mas à partida «agápē», o amor de que fala Jesus, é aquilo que um padre com quem conversei há muitos anos chamou o «amor desinteressado».

Eu falava-lhe na minha homossexualidade e nas questões daí decorrentes para o católico que eu tentava ser; e a solução que ele me deu foi que não havia mal no facto de eu ter um namorado, desde que fosse um «amor desinteressado». Ele não o disse explicitamente, mas percebi que a ideia dele era que estaria tudo bem se vivêssemos «como irmãos».

Esta exigência de que eu deveria viver como irmão do homem que eu amava e com quem eu partilhava a minha vida foi recomendada no século XX porque se tratava de um casal constituído por dois homens. Se fôssemos um casal constituído por pessoas de sexos diferentes e casados pela igreja teríamos podido dar expressão sexual ao nosso amor.

No entanto, nos primeiros séculos do cristianismo, mesmo casais heterossexuais eram desafiados a viver como irmãos num casamento isento de sexo. A «moda» veio logo com São Paulo (1 Coríntios 7), mas a literatura cristã apócrifa dos séculos II-III está a abarrotar de histórias e de exemplos que dão como ideal da vida de casados a virgindade permanente de ambos os esposos.

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Cristãos celibatários e eunucos e o problema da palavra «sic» | Frederico Lourenço

Antes de mais, uma epígrafe: «nenhum homem sem testículos e sem pénis pode fazer parte da assembleia (ecclēsia) de Deus» (Deuteronómio 23:1).

Assim, sim; já podemos começar.

A imagem que veem aqui reproduzida é um maravilhoso quadro de Rubens, pertencente à Wallace Collection de Londres. Nele vemos Jesus, Pedro, mais dois discípulos adultos e o jovem Discípulo Amado. E vemos os futuros cristãos, representados sob a forma de ovelhas. A metáfora das ovelhas vem da boca do próprio Jesus, que se descreveu a si mesmo como o «bom (ou belo) pastor» e disse a Pedro para apascentar as ovelhas dele (isto é, de Jesus). Jesus lá teria razões, que a razão desconhece, para pensar nos seus futuros seguidores como animais de rebanho. Mas ao menos que sejamos ovelhas pensantes.

Uma palavra que assumiu especial importância nas discussões à porta fechada sobre o celibato dos padres nos primeiros anos do concílio de Trento foi a palavra «sic», que aparece, no episódio que inspirou o quadro de Rubens, na tradução latina do Evangelho de João (21:22).

A palavra significa «assim»; porém, em João 21:22 é um erro de tradução, pois o que Jesus diz em grego não é «assim» mas «se». No entanto, como a palavra grega ἐάν corresponde, em latim, a «si», facilmente se percebe como «si», devido a erro de cópia, deu «sic».

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Jesus, mestre do Bem | Frederico Lourenço

Se é verdade que os quatro evangelhos canónicos retratam Jesus como profeta, não é menos evidente para quem lê estes mais maravilhosos de todos os textos que a sua figura central, Jesus de Nazaré, é retratado também como mestre. A palavra «mestre» (em grego «didáskalos») é usada como forma de alguém se dirigir a Jesus pela primeira vez, no evangelho mais antigo, em Marcos 4:38. Neste evangelho, há uma dúzia de ocorrências da palavra «mestre», em que tanto os discípulos de Jesus como pessoas do público em geral se lhe referem por meio dessa palavra.

Marcos também nos clarifica o conteúdo da didáctica praticada por este extraordinário «didáskalos»: trata-se de um «ensinamento novo» (διδαχὴ καινή, Marcos 1:27). Nunca é de mais sublinhar a novidade cortante daquilo que Jesus veio ensinar. Jesus – com a doutrina de «fazei bem àqueles que vos odeiam» (Lucas 6:27) – veio ensinar à humanidade a novidade absoluta do Bem.

Mencionei que, em Marcos, tanto os discípulos como o público em geral se dirigem a Jesus com a interpelação «mestre». Curiosamente, a situação é subtilmente diferente nos evangelhos de Mateus e de Lucas. Nestes dois evangelhos, o público em geral usa a palavra «mestre» para referir Jesus, mas os discípulos não lhe chamam διδάσκαλος. Chamam-lhe «senhor» (κύριος) e, em Lucas, temos a situação curiosa de Jesus ser chamado por um nome que está ausente de todos os outros livros do Novo Testamento: trata-se da palavra homérica «epistátês» (ἐπιστάτης), que ocorre pela primeira vez na literatura grega no Canto 17 da Odisseia.

O termo em Homero significa algo como «suplicante», mas na literatura grega da época clássica tem o sentido de «comandante». No «Édipo em Colono» de Sófocles, o deus Posídon é referido como o «epistátês» de Colono, ou seja «divindade tutelar de Colono». Quando os discípulos de Jesus no Evangelho de Lucas aplicam ao seu mestre esta palavra ausente de todo o restante Novo Testamento, estão a aplicar-lhe uma palavra cheia de História.

Voltando a «mestre» como «didáskalos»: a palavra também é usada por Lucas com referência a João Baptista (Lucas 3:12). Há muitas semelhanças entre Jesus e João Baptista que ressaltam da leitura dos quatro evangelhos. Entre as diferenças, no entanto, há uma fundamental: João Baptista preconizava o ascetismo. Jesus, não.

Isso está claríssimo logo a partir de Marcos 2:18. O prazer da vida humana fazia parte da maneira de Jesus estar na terra – e os seus discípulos, contrariamente aos de João, não jejuavam: apreciavam o prazer da boa mesa e do bom vinho. Esta desvalorização do ascetismo e da abstinência por parte de Jesus está clara em Mateus 9:19; 11:18, Lucas 7:33-34. Toda a gente sabe o que Jesus fez perante a perspectiva de dar água a beber numa festa: transformou-a em vinho.

O cristianismo que se estabeleceu a partir do «ensino novo» de Jesus pautou-se, na sua obsessão pela abstinência, por João Baptista. Estabeleceu a ideia de que o prazer terreno é mau, que é preciso jejuar, que há uma incompatibilidade básica entre espiritualidade e corporalidade: que o corpo é, de alguma forma, intrinsecamente profano. Os apetites humanos são para NÃO satisfazer, na doutrina do cristianismo, à boa maneira de João Baptista. No entanto, não foi esse o ensinamento do mestre do Bem, Jesus.

Por isso, uma das frases mais deliciosas de Jesus é a que ocorre quando Jesus, já ressuscitado e, para todos os efeitos, já só com corpo espiritual, aparece aos discípulos e diz: «Rapazes! Tendes algo para comer?!» (João 21:5)

Comamos, pois. Não martirizemos o nosso corpo. Porque o mestre do Bem nos ensinou que fazer bem ao corpo faz bem.

(na imagem: Jesus e João Baptista por Guido Reni)

Frederico Lourenço

Retirado do Facebook | Mural de Frederico Lourenço

 

Domingo de Páscoa, ou o Túmulo Vazio | Frederico Lourenço

Há quase dois mil anos, numa madrugada de domingo em Jerusalém, três mulheres iam a caminho de um sepulcro recentemente talhado na rocha. Estavam muito preocupadas: como remover a enorme pedra que fora utilizada para fechar a sepultura? Já nascera o sol e elas levavam consigo perfumes que tinham comprado para embalsamar o morto. Esta etapa do rito fúnebre estava deslocada da ordem correta, pois o que teria sido normal era que tivessem embalsamado o morto antes de fecharem a sepultura com a pedra. Mas não aconteceu assim. O sepultado tinha morrido (e de morte bem cruel) quando estava para começar o sábado judaico. Não houvera tempo para tratar o seu corpo com perfumes.

Ao chegarem ao túmulo, as mulheres viram, com espanto, que alguém já removera a pedra. Entraram dentro do túmulo: e foi aí que ficaram apavoradas. O morto tinha desaparecido. Lá dentro, estava sentado um jovem, vestido de branco, que elas não conheciam. O jovem diz às três mulheres: “é Jesus, o Nazareno, que procurais, o crucificado? Ressuscitou. Não está aqui” (Marcos 16:6). O jovem recomenda às três mulheres que vão dizer a Pedro e aos outros discípulos que Jesus foi à frente, rumo à Galileia: na Galileia é que eles o verão. As mulheres fogem do sepulcro, dominadas por um misto de tremor e de tresloucamento (a palavra grega é “ékstasis”, donde vem a nossa palavra êxtase). Só que elas não obedeceram às instruções dadas pelo jovem. Na verdade, aquelas mulheres “nada disseram a ninguém. Tinham medo, pois” (Marcos 16:8).

É nestes termos que o mais antigo relato da ressurreição de Jesus nos descreve o momento arrepiante em que Maria Madalena, Maria (mãe de Tiago) e Salomé depararam com o túmulo vazio. O Evangelho de Marcos termina assim, no ar, como que (musicalmente falando) em cadência interrompida. É sabido que, posteriormente, cristãos anónimos, insatisfeitos com este final abrupto, trataram de escrever mais umas frases em jeito de continuação, também para que o final do Evangelho de Marcos condissesse com o final dos outros três Evangelhos canónicos, em que os discípulos têm “experiências imediatas” de Jesus ressuscitado, nas quais Jesus conversa (e até come) com eles.

As palavras proferidas por Jesus ressuscitado e as circunstâncias em que essas palavras são ditas (que desmentem, no caso de Lucas, o que o jovem vestido de branco diz às mulheres no Evangelho de Marcos) apresentam diferenças significativas quando comparamos os Evangelhos. Diferenças que levantam obrigatoriamente perguntas e nos obrigam a pensar.

A pergunta mais imediata é imensamente sugestiva para todos aqueles agnósticos que, como eu, se interessam pela fascinante figura histórica que foi Jesus de Nazaré; e deveria ser basilar para crentes que veem n’Ele o Filho de Deus. E a pergunta é esta: qual é o grau de fidedignidade dos relatos que lemos nestes quatro Evangelhos a respeito da ressurreição de Jesus? Todos eles falam num túmulo vazio. Mas donde lhes veio essa informação? Já mencionámos que Marcos, que redigiu o mais antigo relato que conhecemos sobre o túmulo vazio, nos diz que as supostas testemunhas oculares (as três mulheres) ficaram tão apavoradas que não contaram nada a ninguém.

Ora em nenhum momento do seu Evangelho nos é dito por Marcos que ele, o evangelista, presenciou pessoalmente aquilo que nos está a narrar. O mesmo vale para Mateus e para Lucas. Também é facto que, se os três se arrogassem o estatuto de testemunhas oculares, ainda maiores seriam as nossas dificuldades com estes textos fundadores do Cristianismo. É que os relatos dos evangelistas não são coincidentes. E se há quatro versões distintas, a lógica mais básica impede-nos de aceitar que as quatro possam ser verídicas. Podem estar as quatro erradas. Mas não podem é estar todas certas.

Em Lucas, tal como em Marcos, temos como testemunhas Maria Madalena e Maria (mãe de Tiago); mas Lucas não as faz acompanhar por Salomé, como em Marcos, mas sim por uma tal de Joana. Além destas três mulheres, há outras (não nomeadas) que estão também com elas. Este “coro trágico” de mulheres é exclusivo do Evangelho de Lucas. Em vez de elas verem um jovem sentado dentro do túmulo, estas mulheres descritas por Lucas veem dois homens. Estão vestidos de trajes resplandecentes e dão às mulheres a notícia fulminante de que Jesus ressuscitou. Tal como as mulheres em Marcos, as do Evangelho de Lucas também ficam apavoradas. Mas ao contrário do que fazem as duas Marias e Salomé em Marcos, em Lucas as mesmas Marias e Joana contam tudo aos apóstolos.

No entanto, estes não lhes dão crédito e (de forma bastante machista) acham que elas estão a dizer uma “parvoíce” (Lucas 24:11). Pedro, porém, não deve ter achado as mulheres assim tão parvas: levanta-se e vai a correr até ao sepulcro, para ver o que se passa com os seus próprios olhos. Olha lá para dentro e não vê nada. Só vê, abandonadas, as ligaduras com que o corpo de Jesus tinha sido envolto aquando da sepultura.

Consideremos agora o relato de Mateus: no caso deste Evangelho, são só duas as mulheres que chegam ao túmulo no domingo de manhã. São as nossas já conhecidas Marias (a Madalena e a mãe de Tiago). Unicamente neste Evangelho, dá-se um sismo. As duas Marias veem então um anjo do Senhor “com aspeto de relâmpago” (Mateus 28:3). Os guardas que estão a guardar o túmulo ficam “como mortos” (estes guardas só existem no Evangelho de Mateus; mais nenhum evangelista os refere). O anjo informa as duas mulheres que Jesus ressuscitou. Elas saem depressa, eufóricas de alegria (e não apavoradas, como em Marcos e Lucas).

De repente, acontece uma coisa com que nem Marcos nem Lucas tinham sonhado: aparece-lhes Jesus em pessoa. Diz-lhes “não temais” (embora elas não estivessem com medo) e dá-lhes a incumbência de transmitir aos “irmãos” Dele a mensagem de que devem ir até à Galileia: será na Galileia que o contemplarão. E assim acontece em Mateus e em João (mas não em Lucas). Repare-se que, no Evangelho de Mateus, nenhum discípulo de Jesus (nem sequer Pedro) vai ao túmulo para ver, com os próprios olhos, o que se passou: mas isso sucede (como referimos) em Lucas. E acontece também em João.

É no Evangelho de João que encontramos o relato mais divergente sobre as circunstâncias relativas ao túmulo vazio. A diferença fulcral é que só neste Evangelho nos é dito que o autor do texto viu com os seus próprios olhos aquilo que está a descrever. João afirma categoricamente que viu o túmulo vazio: foi o primeiro a vê-lo, aliás (João 20:8), antes mesmo de Pedro. No Evangelho de João, as três mulheres (que vão ao túmulo em Marcos e Lucas) e as duas mulheres (de Mateus) estão agora reduzidas a uma só: Maria Madalena.
Madalena é o verdadeiro denominador comum dos quatro relatos sobre o túmulo vazio. É ela que chega sozinha ao túmulo no domingo de manhã: ainda estava escuro (contrariamente ao que nos diz Marcos, que afirma explicitamente que já nascera o sol). Ao ver a pedra removida da entrada, Madalena desata a correr. Vai dar logo a notícia a Pedro e ao discípulo “que Jesus amava” (João 20:2), que, por sua vez, se põem também a correr. Vão todos em alvoroço até ao túmulo, mas quem corre mais depressa é o próprio autor do Evangelho, o discípulo amado. É ele que chega primeiro ao túmulo. Espreita lá para dentro e vê os panos depostos. Pedro chega logo de seguida e entra no túmulo. O discípulo amado entra atrás dele. “Viu e acreditou”.

Quando, muitos anos mais tarde, o discípulo amado escreveu o seu Evangelho, comentou a propósito deste momento que nem ele nem Pedro tinham compreendido o que tinham diante dos olhos, pois “ainda não conheciam a passagem da Escritura, segundo a qual Ele tinha de ressuscitar dos mortos” (João 20:9). Nós, leitores modernos, podemos considerar perdoável este alegado desconhecimento da Escritura por parte dos dois discípulos, atendendo ao facto de em nenhuma passagem do Antigo Testamento se encontrar escrita noção semelhante.

Pedro e o evangelista voltam “para junto dos seus” e só Madalena fica sozinha a chorar no exterior do túmulo. Por entre as lágrimas, ela espreita lá para dentro e vê dois anjos sentados. Os anjos (que tinham acabado de descer do céu, ou então eram visíveis apenas para Madalena, já que Pedro e João não os tinham visto) dão-se conta do choro dela e perguntam-lhe porque está a chorar. Madalena responde “porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram”. Madalena volta-se depois para trás e, nas palavras do evangelista, vê Jesus sem saber que era Jesus. Também Ele lhe pergunta a razão do choro. Julgando estar a falar com o jardineiro, Madalena pergunta-Lhe (num momento de subtil ironia poética digna da tragédia grega) se foi Ele que levou o corpo d’Ele. Jesus diz o nome dela: “Maria!”
É nesse momento (supremamente arrepiante mesmo para quem já leu o Evangelho de João centenas de vezes) que Madalena percebe.

A propósito das descrições divergentes do que se passou no túmulo vazio, dissemos acima que, quando temos quatro relatos que não coincidem sobre determinada realidade, somos impedidos pela lógica mais básica de aceitar que os quatro possam ser simultaneamente verídicos. Ou bem que estava um jovem sentado dentro do túmulo vazio (Marcos), ou dois homens (Lucas) ou um anjo (Mateus) ou dois anjos (João). Ou bem que foram três mulheres ao túmulo (Marcos e Lucas), duas mulheres (Mateus) ou só uma mulher (João). Estas personagens não cabem todas dentro e à porta do túmulo ao mesmo tempo. E mesmo que decantássemos a questão de modo a nos focarmos só na oscilação entre uma figura masculina (jovem ou anjo) e duas figuras masculinas (homens ou anjos), mesmo assim não faz sentido admitirmos que ambas as versões possam ter validade equivalente. Aceitando como realidade factual que Jesus foi crucificado numa sexta-feira da década de 30 do século I da nossa era e que, no domingo de manhã, o túmulo, onde tinha sido colocado o cadáver, estava vazio, temos de perguntar: o que aconteceu nessa sexta-feira? O que aconteceu nesse domingo de manhã? Qual será a verdade da ressurreição de Jesus? Qual será a verdade do túmulo vazio?

A resposta do crente é – claro está – a própria crença, território que não me compete pisar. O ateu encontrará talvez uma explicação racional no boato que Mateus pretende combater no final do capítulo 27 do seu Evangelho: os discípulos fizeram desaparecer o corpo de Jesus, de modo a dar a ilusão de que tinha ressuscitado. O túmulo estava vazio porque o corpo fora propositadamente removido.

Para aqueles que, como eu, não são crentes nem ateus, mas que leem de espírito aberto estes textos indispensáveis, constituirá porventura ressurreição suficiente o facto de, neste mundo onde Jesus de Nazaré morreu, podermos afirmar que, bem vistas as coisas, Ele afinal não morreu. Porque a verdade é esta: tanto crentes como não-crentes andaremos às voltas com Jesus nas nossas cabeças, enquanto houver seres humanos na Terra.

Frederico Lourenço

Retirado do Facebook | Mural de Frederico Lourenço

Sepultar Jesus | Frederico Lourenço

O problema da celebração da Páscoa para o agnóstico é a terceira das suas três etapas (sendo elas: crucificação; deposição no túmulo; ressurreição).

Para quem prefere manter uma posição distanciada relativamente ao modo como o Novo Testamento narra a biografia de Jesus, custa aceitar a ideia de que o homem a quem injustamente torturaram e mataram supera milagrosamente o horror do que lhe aconteceu ressuscitando ao terceiro dia.

O horror da última sexta-feira da sua vida é crível: é 100% consentâneo com o horror da realidade humana. O sentimento (de perda, de exaustão emocional e de infinita tristeza) vivido pela mãe do defunto e pelos seus amigos é compreensível, necessário e intensamente humano. O que acontece de sábado para domingo – o inexplicável regresso à vida depois da morte – obriga a um salto de raciocínio que a Razão trava à partida. Só podemos aceitar a ideia de que à morte se segue a vida (ainda para mais eterna) se aceitarmos que isso só pode fazer sentido num plano irracional.

Mas permaneçamos no terreno do racional. O Evangelho de Mateus (27: 57) conta como um homem de Arimateia chamado José se dirigiu a Pilatos e obteve dele a permissão para enterrar o corpo de Jesus. “E levando o corpo” (escreve o evangelista) “José envolveu-o num pano de linho lavado e depô-lo num túmulo recente, que mandou cavar na rocha”. O laconismo discreto das palavras de Mateus não deixa espaço para a consideração do estado emocional de José; das duas mulheres (ambas de nome Maria) que o evangelista inclui neste episódio diz-se apenas que ficaram sentadas em frente do sepulcro. Mas facilmente conseguimos imaginar o estado de espírito com que permaneceram ali sentadas: esse estado de choque, decorrente do luto profundo, foi descrito por um poeta em Roma mais ou menos na altura em que Jesus teria 8 anos de idade. A mulher enlutada descrita por esse poeta queda-se, imóvel, com o rosto pálido e sem pinga de sangue, com os olhos parados e a língua congelada dentro da boca (Ovídio, Metamorfoses 6, 303-6). O horror daquilo a que as duas Marias tinham assistido no lugar chamado Gólgota outra coisa decerto não permitiria.

Quanto às emoções de José de Arimateia, essas só 1700 anos depois é que encontrariam quem as soubesse intuir e descrever. Não apenas por palavras, mas acima de tudo por música. “Quero ser eu a enterrar Jesus” canta o solista da última das quatro árias para Baixo da “Paixão Segundo São Mateus” de Johann Sebastian Bach. “Faz-te puro, meu coração”.

Que sentido tem esse “quero ser eu a enterrar Jesus?” De que serviu declarar isto numa igreja em Leipzig mais de 1700 anos após o acontecimento? E de que servirá hoje, quase 2000 anos depois, a um ex-católico como eu a ideia de que continua válido o sentimento de responsabilidade individual experimentado por José de Arimateia no enterro de Jesus? Quero ser eu a enterrar Jesus porquê? Que significado tem para mim esse gesto?

Para o agnóstico, a acção de José de Arimateia – o Enterro de Jesus – é justamente o momento da história pascal que mais apela à sua participação. Se eu tenho dúvidas de que Jesus tenha sido filho de Deus, se eu não sei se existe Deus (embora intua irracionalmente que Ele existe), não me fará sentido a “forte união ao sacrifício de Cristo na cruz” (que, já agora, um padre católico me recomendou em tempos como “cura” para a homossexualidade). Muito menos me fará sentido a ressurreição.

Sepultar Jesus é outra coisa. É um gesto de desvelo, de homenagem a este homem que poderá (ou não) ter caminhado sobre a água, que terá conseguido (ou não) restituir a visão aos cegos e que terá feito (ou não) a multiplicação de pães. Foi um homem que morreu traído por um amigo e renegado por outro; foi um homem que teve a coragem de criticar fariseus, de escorraçar vendilhões e que afirmou “amém vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos céus” (Mateus 19: 23). Pregou o amor ao próximo, chamou “filhos de Deus” aos que promovem a paz e prometeu o “reino dos céus” aos que sofrem perseguição por causa da justiça.

Dar, como José de Arimateia, enterro condigno a este homem é – independentemente da religião que se formou em seu nome – homenagear o melhor que existe na natureza humana. Ao mesmo tempo, é voltar ao minuto zero, ao pré-Cristianismo, antes de Jesus ter (ou não) ressuscitado dos mortos: é voltarmos atrás na História, ao último momento em que nos podemos concentrar apenas nele – na sua vida e na sua morte. Antes da sua ressurreição. Antes de outros se terem interposto entre ele e nós e antes da fixação da igreja na figura mediadora de Maria. Pois este momento da deposição no túmulo permite-nos esquecer tanto São Paulo como todos os protagonistas vindouros das lutas assassinas entre seitas cristãs; permite-nos esquecer Constantino, Justiniano, os Reis Católicos, Luís XIV, D. João V, Pinochet e todos os outros ditadores e bilionários a quem a acomodatícia igreja de Cristo sancionou o devaneio de que professavam uma religião inspirada na vida de Jesus; permite-nos esquecer papas e inquisidores, católicos e luteranos, ortodoxos e calvinistas. Permite-nos esquecer dogmas e concílios, teólogos e missionários, conversões forçadas e autos-de-fé, Fátima e outras árvores-das-patacas similares.

Estarmos, uma vez por ano, ao lado de José de Arimateia a enterrar Jesus (e a sentir o luto intenso pela sua morte tão injusta) é homenagearmos a vida dele. E homenagearmos a vida de Jesus é o primeiro passo na percepção de que, em última análise, somos nós que podemos (por meio da forma como vivemos a nossa própria vida) assegurar que a vida admirável deste admirável defunto não tenha sido vivida em vão.

Frederico Lourenço

Retirado do Facebook | Mural de Frederico Lourenço

FOTO: The Entombment of Christ / El Entierro de Cristo // 17th c. // Adriaen van der Werff

Sexta-feira Santa | Frederico Lourenço

Apesar de, no plano racional, me considerar ex-católico e profundamente céptico em relação a todas as religiões, a sexta-feira santa nunca será para mim um dia como outro qualquer.

De manhã à noite o meu pensamento está involuntariamente dominado pela imagem do homem pregado na cruz, esse homem singular portador de três identidades (Filho de Deus; ou apenas um nazareno histórico chamado Jesus; ou somente personagem da narrativa dos evangelistas). A ideia de pregar alguém numa cruz, depois de se lhe ter cuspido em cima e chicoteado de forma cruel, é persistentemente perturbadora, talvez porque nela conseguimos focar a indignação que o conhecimento da história humana nos obriga a repartir por tantas realidades análogas.

Torturas e execuções são o pão quotidiano da humanidade desde que ela deixou de ser constituída por caçadores-recolectores e passou a organizar-se em torno de um modo de vida sedentário. A civilização (não esquecer a ligação etimológica com «civitas») que nasceu da descoberta da agricultura há 12000 anos trouxe no seu encalço a escravatura, a guerra, as hierarquias sociais e a vocação das ideologias políticas e religiosas para cercear a liberdade de pensamento.

Desde então, muitos seres humanos foram torturados e executados (por vezes com crueldades ainda piores do que as sofridas pelo Nazareno); a própria crucificação já era coisa banal no mundo antigo quando Jesus foi crucificado. Basta dar este exemplo: na mesma Jerusalém, no século anterior, 800 judeus sofreram no mesmo dia a crucificação enquanto as mulheres e os filhos eram degolados à vista dos crucificados.

De alguma forma, a imagem da crucificação de Jesus propõe à nossa consideração uma espécie de sinédoque visual do sofrimento humano: é a parte abarcável que nos põe em confronto com um todo inabarcável – pois desse todo fazem parte as masmorras da Inquisição, da Gestapo e da KGB; dele fazem parte genocídios de povos inteiros; dele fazem parte as tragédias de hoje na Síria e no Iraque; dele fazem parte toda a fealdade hedionda do ser humano.

Pensarmos, pois, com toda a nossa compaixão no homem de Nazaré pregado na cruz é, assim, uma pequena tentativa de abarcarmos o inabarcável. É darmos um nome a um sofrimento que é global, milenar e anónimo.

imagem: a Crucificação de Guido Reni (século XVII), na igreja de San Lorenzo in Lucina (Roma), onde está enterrado Poussin.