As vozes da Bíblia | Frederico Lourenço

Ou …

(Sobre mim, a minha liberdade de ler e entender as Escrituras – e de falar sobre elas – e a minha liberdade na escolha dos critérios com que estou a fazer a minha tradução da Bíblia).

Acredito que Jesus de Nazaré realmente existiu. (E digo isto apesar de já não me considerar formalmente cristão).

Acredito que Jesus interveio publicamente na Galileia e na Judeia, de uma forma que terá sido surpreendente e inovadora no contexto do judaísmo da época. Acredito que isso terá mudado a vida de muitas pessoas que ouviram o som real da voz dele; e acredito que Jesus foi crucificado em Jerusalém na década de 30 do século I.

No entanto, a metodologia histórica que escolhi seguir na minha tradução da Bíblia não me obriga a discutir se Jesus foi uma figura histórica (permitindo-me, porém, admitir que sim). O historicismo da minha metodologia incide na atitude perante os textos: obriga-me a considerar cada livro da Bíblia como entidade histórica própria, que existiu com identidade independente antes de se ter formado aquilo que veio a ser a Bíblia. Por outras palavras, não leio o Antigo Testamento pelo filtro do Novo Testamento, porque os livros do Antigo Testamento foram escritos antes de existir Novo Testamento. Não leio a Escritura judaica pelo filtro do cristianismo pela mesma razão histórica: para mim, o Antigo Testamento não é um «prelúdio» nem um «prenúncio» do Novo Testamento.

Também não leio as cartas de Paulo pelo filtro dos Evangelhos, porque quando Paulo escreveu as suas cartas os Evangelhos ainda não tinham sido escritos. Nem leio os Actos dos Apóstolos pelo filtro das cartas de Paulo, porque o autor dos Actos mostra claramente nunca ter lido uma única linha que Paulo escreveu (apesar de ele eleger Paulo como herói da sua narrativa e ser considerado pela tradição da Igreja alguém que conheceu pessoalmente Paulo, tradição em relação à qual o teólogo e o historiador terão necessariamente de discordar).

Mesmo dentro do grupo constituído pelas cartas autênticas de Paulo, não as leio como bloco monolítico, mas como textos que mostram Paulo a mudar e a evoluir na abordagem às mesmas problemáticas. Na Carta aos Romanos, são abordados temas que já tinham sido tratados na Carta aos Gálatas; mas a Carta aos Romanos mostra-nos como Paulo pensou mais e melhor sobre os mesmos assuntos e encontrou uma maneira mais satisfatória, mais lógica e mais convincente de os abordar.

Em vez de encarar a Bíblia como um bloco monolítico escrito pela mesma pessoa ou por pessoas diferentes que afinaram todas pelo mesmo diapasão (diapasão esse que, em termos teológicos, será a «inspiração do Espírito Santo»), a metodologia histórica reconhece que os livros da Bíblia tiveram muitos autores; autores que escreveram em contextos cronológicos, históricos, geográficos e até teológicos muito diferentes. Por isso, o Antigo Testamento não nos dá a ver um só judaísmo, mas vários judaísmos. Todos sabemos como, nos livros de Levítico e Deuteronómio, os sacrifícios de animais são apresentados como absolutamente obrigatórios aos olhos de Deus. E todos reparamos como, nalguns livros proféticos (Isaías e outros), os sacrifícios são apresentados como absolutamente irrelevantes aos olhos do mesmo Deus.

Aquilo que Deus alegadamente «quer» de nós muda radicalmente no Antigo Testamento, quer estejamos a ler o Pentateuco, os Profetas ou o meu livro predilecto, Eclesiastes. São muitas vozes acerca de Deus; são muitas vozes atribuídas a Deus. E porque não hão-de ser muitas? Deus, existindo, não será mais do que a soma das 600 000 palavras que compõem a Bíblia Hebraica?

Se, sob o prisma da leitura histórica, o Antigo Testamento nos dá a ler judaísmoS (e não um só judaísmo), o mesmo diremos dos cristianismoS veiculados pelo Novo Testamento. A teologia implícita do Evangelho de Marcos é diferente da do Evangelho de João; a Carta de Tiago dá-nos uma voz contrária à de Paulo; dentro dos textos atribuídos a Paulo, há divergências maiores e menores na forma de o(s) epistológrafo(s) paulino(s) encarar(em) a questão de como ser cristão (palavra, já agora, que só ocorre três vezes em todo o Novo Testamento e que Paulo nunca emprega).

Claro que a leitura teológica tentou (e, na opinião de muitos crentes ao longo dos séculos, conseguiu) a quadratura do círculo que é compatibilizar todas estas vozes diferentes que nos falam a partir das páginas da Bíblia, como se a Bíblia tivesse uma mensagem coesa e unitária. Essa quadratura do círculo, embelezada pela patine de uma tradição teológica secular, parece-me perfeitamente legítima em contexto religioso e afigurar-se-á, acima de tudo, espiritualmente válida. O círculo pode tornar-se (porque não?) num belo quadrado aos olhos do crente; se o não-crente olha para o mesmo círculo e continua a ver um círculo, não há problema nisso.

Seja como for, a leitura histórica, que é a minha, ocupa-se somente da realidade objectiva dos textos. Por isso, pode posicionar-se fora da necessidade teológica de compatibilização. Não precisa das seculares metodologias exegéticas para mostrar que o círculo pode ser visto como quadrado, porque a leitura histórica valoriza e aceita, como coisa maravilhosa, a fascinante e discrepante polifonia da Bíblia.

(imagem: Louis de Silvestre, «Noli me tangere»)

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