Palavras dos Evangelhos | Frederico Lourenço

O quadro de El Greco na Colecção Frick de Nova Iorque, que representa Jesus a expulsar os vendilhões do templo, deu-me recentemente que pensar por duas razões.

A primeira foi a notícia lida algures de que, estando comprovado que a contemplação de grandes obras de arte aguça e refina a capacidade de atenção, existem hoje iniciativas em grupos profissionais que ninguém esperaria (como o exército ou a polícia nos EUA) programadas para ensinar futuros militares a analisar obras de arte e a memorizar os seus pormenores. Um grupo de futuros polícias foi levado, pois, à Colecção Frick de Nova Iorque, onde uma professora de História de Arte lhes propôs a análise do quadro de El Greco que vêem na imagem. A professora perguntou ao grupo o que achavam do quadro. Um dos futuros polícias disse imediatamente que mandaria prender «the guy in pink, because he’s causing all the trouble».

Uma segunda ocasião que me pôs a pensar no quadro de El Greco foi o visionamento de uma conferência proferida pelo brilhante director da Colecção Frick, Xavier Salomon (cujos vídeos no YouTube vos recomendo vivamente). Falando deste quadro, o Dr. Salomon explicou que representava um episódio do Evangelho de Mateus. Na verdade, Jesus expulsa os vendilhões do templo em cada um dos quatro Evangelhos, mas a cena pintada por El Greco não representa o episódio de Mateus, mas sim o de João. Pois é só no Evangelho de João que Jesus expulsa os vendilhões à chicotada. A passagem de João tem um carácter individual por várias razões: uma delas é que nos dá a única ocorrência no Novo Testamento da palavra «phragéllion» (φραγέλλιον), «chicote».

Como já tive ocasião de afirmar várias vezes, a leitura pormenorizada dos quatro Evangelhos revela quatro textos que são muito diferentes uns dos outros, mesmo atendendo ao facto de, basicamente, o Evangelho de Marcos estar quase todo presente nos de Mateus e de Lucas, que fizeram «copy-paste» de Marcos e também de um texto perdido com dizeres de Jesus (conhecido como «Q»); a essa receita comum a Mateus e Lucas, cada um deles juntou ingredientes próprios, os quais individualizam de tal modo cada um dos seus evangelhos que temos de reconhecer estarmos perante objectos textuais bem distintos.

Um dos aspectos saborosos da distinção entre os Evangelhos é o «filtro fotográfico» (digamos assim, anacronicamente) das palavras, por meio das quais a vida de Jesus nos é narrada. A presença cumulativa de certas palavras – ou a sua ausência – alteram o filtro; ou, para propor outra analogia, alteram as nuances de sabor e de perfume. Um texto que repita muitas vezes a mesma palavra acaba por estar de algum modo carimbado com a marca dessa palavra.

O caso mais óbvio do selo próprio que certa palavra pode dar a um texto do Novo Testamento é a relativamente curta 1.ª Carta de João, onde a palavra «amor» (ἀγάπη) ocorre 19 vezes. A mesma palavra, na extensíssima obra de Lucas (contando o Evangelho e os Actos dos Apóstolos), que corresponde a 30% do Novo Testamento, ocorre só uma vez. Mateus usa-a uma só vez também; e no mais antigo dos Evangelhos, o de Marcos, o número de ocorrências da palavra «amor» é zero. Por outro lado, no Evangelho de João lemos «amor» sete vezes.

Vejamos agora «verdade» (ἀλήθεια):
Mateus: 1
Marcos: 3
Lucas: 3
João: 20

«Sabedoria» (ϲοφία):
Mateus: 3
Marcos: 1
Lucas: 6
João: 0

«Circuncisão» (περιτομή):
Mateus: 0
Marcos: 0
Lucas: 0
João: 2
(Paulo: 23)

«Judeus» (Ἰουδαῖοι):
Mateus: 0
Marcos: 1
Lucas: 0
João: 30
Actos: 80
(Paulo: 4)

«Fariseus» (Φαριϲαῖοι):
Mateus: 31
Marcos: 12
Lucas: 27
João: 20
Actos: 9
(Paulo: 1)

«sinagoga» (ϲυναγωγή):
Mateus: 9
Marcos: 8
Lucas: 15
João: 2
Actos: 19
(Paulo: 0)

Vinte vezes «verdade» em João – mas uma só vez em Mateus. Por outro lado, no evangelho aparentemente mais tocado pela sabedoria (João) a palavra «sophia» nunca ocorre. Nas epístolas autênticas de Paulo (retratado nos Actos dos Apóstolos como pregador incompreendido das sinagogas), a palavra «sinagoga» nunca ocorre. E no evangelho descrito por muitas pessoas como o «evangelho dos judeus» (Mateus), nunca encontramos a palavra «judeu».

Paulo, o fariseu, só emprega tal palavra uma vez; por outro lado, como opositor ferrenho da circuncisão, é compreensível que seja o apóstolo complicado a dar-lhe o maior «tempo de antena» nos seus escritos.

A palavra «fariseu» é o termo preferido de Marcos, Mateus e Lucas para a sua polémica anti-judaica. Nos seus evangelhos, Mateus e Lucas empregam «judeu» zero vezes; e a palavra ocorre só uma vez em Marcos. João, por outro lado, ataca os judeus em ambas as frentes: não só sob a identidade de «fariseus» (20 vezes) como sob a identidade de «judeus» (30 vezes). No cômputo geral, temos em João 50 marcas de polémica anti-judaica, mais do que em qualquer outro evangelho. Mais: em João até encontramos a sugestão de que Pilatos entregou Jesus aos judeus para ser crucificado por eles (19:16).

Este versículo é curioso do ponto de vista da sua transmissão textual, porque embora a sua segunda parte tenha conhecido muitas redações diferentes nos abundantes manuscritos deste evangelho, a primeira parte não oscila e mostra uma uniformidade espantosa: «então ele [Pilatos] entregou-o [Jesus] a eles [judeus], para que fosse crucificado» (em grego: τότε οὖν παρέδωκεν αὐτὸν αὐτοῖϲ ἵνα ϲταυρωθῇ).

Sem dúvida, «a eles» (αὐτοῖϲ) é uma palavra aqui terrível, porque só pode ser mentira. A crucificação era um castigo romano; só o poderio romano em Jerusalém teria autoridade para o impor. Mas João tudo faz para ilibar Pilatos e os romanos da responsabilidade pela morte de Jesus e transfere a culpa para quem, na prática, não a podia ter. Claro que o seu texto reflecte as guerras culturais (como diríamos hoje) do cristianismo nascente (pró-romano e anti-judaico), mas não deixa de ser problemático para mim que o meu evangelho preferido – justamente aquele em que ocorre mais vezes a palavra «verdade» – seja também aquele que está ferido de uma inverdade muito básica.

Frederico Lourenço 

Retirado do Facebook | Mural de Frederico Lourenço

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