O lugar da mulher na Igreja | Frederico Lourenço

As mulheres são as mães da Humanidade. Até os membros da Igreja Católica o “esquecem”. Todos, menos Jesus Cristo. O único que as respeitou e verdadeiramente amou. | [vítor coelho da silva]

Quando eu era jovem assistente na Faculdade de Letras de Lisboa, atrevi-me a perguntar a um catedrático de História (senhor de fama já lendária) porque é que tínhamos tantas colegas professoras na área da Literatura e tão poucas (ainda que distintíssimas) na área da História. A resposta que ele me deu há trinta anos parece hoje impensável: «a História chama menos as senhoras porque requer muito estudo».

A misoginia da atitude é arrepiante, mas (como todos sabemos) não é surpreendente. Mais tarde, já como professor em Coimbra, foi-me dito que havia dois professores catedráticos (também de geração salazarenta) que nunca tratavam a sua colega catedrática Maria Helena da Rocha Pereira por «Senhora Doutora» (como é normal entre colegas em Coimbra), mas sim por «Dona Maria Helena», embora eles entre si se tratassem por «Senhor Doutor» e ela própria os tratasse com essa deferência académica.

Se isto retrata a universidade portuguesa no século XX, estamos a ver bem o ambiente em que se teria desenrolado a discussão sobre se uma mulher tem capacidade para desempenhar as funções que, na Igreja Católica, são assumidas por padres, bispos, cardeais e papas.

Talvez se dissesse que a Teologia requer muito estudo, além da competência necessária em Grego, Latim e Hebraico. No romance «Middlemarch» da autora oitocentista George Eliot (que escreveu com um pseudónimo masculino para ser levada a sério), um helenista afirma que a conjugação do verbo grego é demasiado difícil para o cérebro da mulher. Esta afirmação já foi refutada vezes sem conta; e a própria Universidade de Cambridge elegeu pela primeira vez, no século XX, uma mulher para a cátedra régia de Grego – uma mulher que, significativamente, assinou os seus extraordinários trabalhos como helenista «P.E. Easterling», decerto para desmontar à partida o preconceito com que seria lida se assinasse os seus artigos e livros com o seu nome próprio, Patricia (sempre conhecida, entre colegas e amigos, como «Pat»).

Tive a sorte de conhecer Pat Easterling em 1998, numa recepção na Faculty of Classics em que conheci também Mary Beard. Falou-se no que Cambridge tinha sido até praticamente aos anos 70 (um conclave de homens, tipo Vaticano); e a Mary, referindo-se a essas figuras patriarcais do passado, comentou a rir: «Pat would have been their nightmare».

Nos primeiros séculos do cristianismo, o pesadelo equivalente para homens ortodoxos era a figura de Maria Madalena. Seria mesmo verdade que ela tinha tido grande importância no estabelecimento do cristianismo após a morte de Jesus? Tanto mais que esse facto não era mencionado nos textos elegidos como canónicos do Novo Testamento. Embora outros textos – evangelhos «apócrifos» (isto é, «secretos») – referissem de modo iniludível a importância daquela mulher.

Importância essa que sujeitava também os cristãos ao escárnio da misoginia pagã. Uma das razões pelas quais muitos intelectuais pagãos achavam o cristianismo ridículo nos séculos II e III é que havia cristãos integrados em grupos cuja liderança inicial coubera a mulheres. Sabemos concretamente de quatro nomes: Maria Madalena, Salomé, Marta e Marcelina (remeto para a p. 619 da minha edição dos Evangelhos Apócrifos, que estará nas livrarias a partir de 6 de outubro).

Houve cristãos de mentalidade fechada que fingiram desconhecer a existência de tais grupos. E é certo que as escrituras tornadas canónicas nos espantam com o facto de a palavra «discípula» ocorrer uma só vez em todo o Novo Testamento. Trata-se de Actos dos Apóstolos 9:36 – onde, ainda para mais, a palavra foi apagada da tradução da Bíblia mais lida em Portugal (que não é, como é sabido, a minha…).

Já antes Lutero apagara da sua tradução do Novo Testamento a única figura feminina a quem se reconhece o estatuto de «apóstolo» (uma mulher chamada Júnia, a quem ele deu o nome masculino de Júnias: «grüßet den Andronikus und den Junias…» Actos 16:7).

E todos sabemos a desvalorização a que Maria Madalena foi submetida: sem a mínima sustentação na escritura quer canónica, quer apócrifa, o papa Gregório Magno retratou-a pela primeira vez como prostituta arrependida numa homilia composta no século VI.

Estava decidido, a partir daí, o lugar de Maria Madalena na Igreja.

No final do século XIX foi descoberto, no Egipto, o Evangelho de Maria Madalena (intitulado simplesmente «Evangelho de Maria»). Sem querer entrar em teorias da conspiração, a tipografia em que a primeira edição deste evangelho ia sair foi destruída por um incêndio em 1912, perdendo-se assim toda composição do texto para impressão (e todo o trabalho do especialista Carl Schmidt). Depois vieram duas guerras mundiais. O texto só viria a ser publicado pela primeira vez, por W.C. Till, em 1955.

É um texto perfeitamente bombástico: porque neste evangelho, a pessoa a quem Jesus confia a sua doutrina não é Pedro, mas sim Maria Madalena (perante o ressentimento e o ciúme de Pedro).

Com a publicação iminente da minha edição dos Evangelhos Apócrifos, já houve jornalistas que me perguntaram «como é que a Igreja reagiu a estes textos, nomeadamente ao de Maria Madalena?»

A resposta é simples, porque, já desde a Antiguidade, a facção mais ortodoxa do cristianismo tem sempre adoptado as mesmas duas estratégias em relação à escritura apócrifa: (1) desvalorizar; (2) ignorar. E é preciso dizer que, durante muitos séculos, a reacção principal foi simplesmente esta: queimar.

A Igreja Católica teria alguma coisa a beneficiar da reflexão sobre os apócrifos Evangelhos de Tomé (publicado pela primeira vez em 1959) e de Maria Madalena? É certo que, na altura em que estes textos foram dados a conhecer ao mundo, a Igreja preparava-se para a fase de grande reforma, que foi o Concílio Vaticano II. Em inícios dos anos 60, a Igreja não estava no momento certo para aferir e avaliar o impacto de dois evangelhos novos. E os teólogos que lhes deram alguma atenção fizeram-no na atitude condescendente de que a doutrina cristã está fechada há muitos séculos e não há mais reflexões a fazer.

No entanto, um aspecto que muitos cristãos (inclusive católicos) sentem hoje é que, no Vaticano II, ficou de fora a discussão sobre o papel da mulher e sobre a legitimidade perfeitamente argumentável – tomando em consideração elementos dos Evangelhos Apócrifos, mas também a única discípula e a única apóstola tantas vezes negadas do Novo Testamento – da ordenação de mulheres.

Há um texto apócrifo, encontrado no Egipto em 1945, que descreve Maria Madalena como «uma mulher que compreende tudo». O que é ver nela algo de bem diferente relativamente ao cliché da prostituta arrependida. Eu não tenho dúvida: estou certo de que a conjugação do verbo grego, ao cérebro dela, nunca causou a menor dificuldade.

Retirado do Facebook | mural de Frederico Lourenço 

(na imagem: Maria Madalena imaginada pelo pintor italiano Rutilio Manetti em 1620).

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