Europa e cultura | Guilherme d’Oliveira Martins | in DN

A Comissão Europeia e a Europa Nostra anunciaram os prémios do património cultural 2022, entre os quais se encontram o Convento dos Capuchos em Sintra, na categoria de Conservação e adaptação a novos usos e o projeto Museu na Aldeia, que envolve 13 museus e 13 aldeias em Leiria, na categoria Envolvimento e sensibilização dos cidadãos. Do Convento dos Capuchos falei aqui na crónica de 15 de fevereiro, e devo dizer que se trata de um prémio justíssimo. Entre os galardoados, encontra-se ainda a Igreja de Santo André em Kyiv, na Ucrânia, mercê de uma ação de conservação que devolveu aos ucranianos e à humanidade um monumento de grande valor comum, funcionando o monumento como um museu que acolhe serviços religiosos, eventos científicos e educacionais e concertos de música de câmara.

Se falo do reconhecimento da defesa e salvaguarda do património cultural, como realidade viva, refiro, a propósito desta iniciativa europeia, a necessidade de uma cultura de paz que obriga a que tomemos consciência de que a defesa do património não se refere apenas aos monumentos ou às “pedras mortas”, mas aos direitos fundamentais das pessoas, à memória e à dignidade humana.
Como disse o poeta Heinrich Heine: “onde se queimam livros (ou objetos de memória, lembramos nós), acaba-se a queimar pessoas”. É, pois, a memória que está em causa e os direitos e deveres que a acompanham. Lembre-se o que ocorre neste momento na Ucrânia: segundo a UNESCO, mais de 150 monumentos, museus ou sítios foram danificados ou destruídos – 70 templos religiosos, 30 edifícios históricos, 18 centros culturais, 15 museus e 7 bibliotecas. 45 em Donetsk, 40 em Kharkiv e 26 em Kyiv. Exemplos? A Catedral da Assunção em Kharkiv, bem como diversos pavilhões da Universidade Nacional das Artes na mesma cidade; o teatro de Marioupol; o museu da artista Maria Pryimachenko de Ivankiv (Kyiv). Por outro lado, os Museus de Arqueologia e de Arte Moderna de Odessa estão sob ameaça ou o centro da cidade de Lviv, classificado pela UNESCO.

Tem havido grupos de voluntários que estão a guardar obras em subterrâneos e a embalar estátuas e diversos bens de valor indiscutível, e há ações de solidariedade dos museus e dos profissionais da cultura. Como lembrou

Audrey Azoulay diretora-geral da UNESCO, o direito internacional é muito claro: segundo a Convenção de Haia de 1954, o património cultural, sob as suas diversas formas, deve ser protegido em ações de guerra. Contudo, a situação atual repete o que tragicamente aconteceu em Dubrovnik, Vukovar, Sarajevo, Bagdad ou Palmira. Hoje vivemos uma situação de emergência, sem se ver até onde nos levará uma guerra que faz tábua rasa sobre valores, princípios e regras, baseando-se apenas no ódio. A dimensão ética da cultura não pode ser esquecida, a democracia e a liberdade como sistemas de valores têm de afirmar-se através de uma cidadania ativa. Não falamos de regras puramente formais nem da indiferença, assente no cinismo, referimos a capacidade de lembrar para que não se repita e de esquecer para que não haja vingança e ressentimento.

A Europa precisa de pensar e de ouvir a Cultura, como expressão da criatividade, do inconformismo e de uma ética de convicção, de compromisso e de responsabilidade. Num cenário de guerra e de incerteza temos de levantar a bandeira da reflexão, da justiça e da humanidade. Não há democracia sem liberdade, nem igualdade sem reconhecimento das diferenças e do respeito mútuo. Memória, património cultural, salvaguarda do legado para as gerações futuras e consciência das fragilidades humanas estão na ordem do dia. Como afirmou Denis de Rougemont: “a conquista suprema da Europa chama-se dignidade humana e a sua verdadeira força está na liberdade”.


Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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