COM JAMES CAAN NA MANSÃO DA PLAYBOY | por Manuel S. Fonseca

A verdade é que, sem nunca o ter encontrado, conheci James Caan à minha maneira e fiquei mesmo amigo dele. E gosto de dar uma palavra aos amigos, quando eles dão aquele passo em direcção ao infinito ou, sei lá, abismo, talvez vazio.

Fui à Mansão e não estava lá James Caan. A Mansão é a de Hugh Heffner e tinha tudo o que fez a tépida e insuportável felicidade de James Caan, o actor que agora morreu e lá viveu. Entrei. Uma orquestra de jazz tocava ao ar livre do alto dessa colina de Mulholland Drive. E o que vi tanto me enterneceria a mim como ao mais pálido e animalista sequaz do PAN: havia um vendaval de playmates – camonianas ninfas, claro –, mas também havia esquilos, macacos, tucanos, papagaios, pavões brancos e flamingos cor-de-rosa, ainda mais bonitos do que os meus flamingos do Lobito. Havia outras feras e centenas de coelhos, lots of rabbits.

As playmates levaram-nos depois para o celestial aconchego de uma sauna escavada na rocha. Olhei e nem James Caan, nem Jack Nicholson se escondiam nas caves pré-históricas, que a perversa mente de Heffner, pai da Playboy, construiu.

Se ainda me lembro, conheci James Caan no Regimento de Infantaria de Luanda. Não é que ele lá tenha feito a tropa. Mas havia no meio desse imenso quartel uma daquelas esplanadas-cinema tropicais – tal como havia outra na 7.ª esquadra. Numa das minhas noites adolescentes exibiu-se “Rain People”, o filme de Coppola a que a distribuição portuguesa deu um título lamechas: “Chove no Meu Coração”. Mas chovia, sim senhor. Chovia no filme, chovia na cabeça de Shirley Knight, a protagonista, e choveu em mim mal vi James Caan. Caan andava à boleia e era de uma intranscendente ingenuidade. Tinha nele toda a candura da América. Descobriríamos, depois, que o Caan desse filme jogara futebol americano na universidade e um traumatismo craniano lhe provocara um atraso mental irreversível.

Mais tarde, pela mão de Coppola, conheci outro Caan. Era já Sonny, um dos filhos de Don Corleone, no primeiro “Padrinho”. Peito peludo, embora sem atingir o estilo símio que me caracteriza, tão macho como a rapaziada da minha Vila Alice, incapaz de dirigir o pululante desejo, perplexo perante as nuances e contradições do mundo, o que lhe desencadeia fúrias honestas e unilaterais.

O que quero dizer é que James Caan, o actor que agora morreu, nunca se livrou destas duas personagens, a de “Rain People” e a de “O Padrinho”. A inocência e a fúria com palas moravam nele como cidades geminadas. Casou não sei que infinidade de vezes. Num dos divórcios ficou a morar no olho da rua, para que a vida confirmasse o que a arte de Coppola inventara em “Rain People”. O prosaico Heffner salvou-o. Pô-lo a morar na mansão da Playboy, como se pusesse um menino guloso na dispensa cheia de marmelada.

Todos o conheciam: os esquilos subiam por ele acima, e há uma foto dele com um esquilo ao ombro e a angélica playmate Dorothy Stratten risonha e espantada, ainda sem adivinhar que um ciumento namorado a assassinaria. Conheciam-no os valets que arrumavam carros e ai de quem lhe tocasse no Jaguar Roadster. Nem mais: está ele a sair da mansão e de outro carro saem Jack Nicholson e uma eléctrica e resplandecente mulher. Embrulham-se um no outro, com incontrolável vontade, tombando sobre o capot do Jaguar de Caan. Estarrecido, o valet diz-lhe: “Mr. Caan, tiro já o seu carro!” Caan, um sereno Caan de “Rain People”, diz-lhe: “Meu filho, não tentes tirar a carne da boca do leão que come. Quando acabarem, estou na cozinha.”

Um dia, o infinito e a transcendência a baterem-lhe na cabeça, Caan abandonou a Mansão. Deu uma explicação cabal. Atormentavam-no, no meio daquele oceano de delícias, impulsos suicidas: “O melhor é eu matar-me, melhor do que isto já nunca mais vou ter!”

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.