O decote do século XX | Manuel S. Fonseca

Nessa altura, nos meus tempos da SIC, viajava muito. Vi, então, o decote do século XX. Como aqui se conta.

Nudez, espécie em vias de extinção

A mulher nua é um escândalo do passado. Ou talvez não. Há dias, em Paris, num restaurante, o dono barrou a entrada a duas lábeis e decotadíssimas mulheres: a fenda da Tundavala que se lhes cavava no peito era uma anacronismo de fazer estremecer o século XXI. Há, estremeço também eu, um insidioso prurido a germinar na pele do século XXI. Ou virá o século XXI a ser o século do homem nu?

E já me belisco a mim mesmo: o maior decote que vi, não foi no peito, foi nas costas. Era o decote de Sharon Stone. Ela estava à minha frente, oferecendo o esplendor das costas nuas, o rendilhado desenho de uma perfeita coluna vertebral, das primeiras vértebras cervicais até essas nove vértebras fundidas e finais, cinco do sacro, quatro do cóccix, essa lança sacrococcígea a que se segue o que de mais sumptuário há na anatomia humana.

Eu vi: era o decote do século XX e foi nos estúdios da Warner, em Los Angeles, nuns longínquos MTV Awards, a Madona a dois passos. Houve convívio a seguir, mas a Stone levou-a o vento ou os deuses, e eu consolei-me a comer um hamburger com Danny Glover e a lamber um gelado com Valeria Golino. Lição moral: aquela foi a visão! Mais do que a roubada e fugaz visão do infame descruzar de pernas de “Basic Instinct”, a assumida resplandecência das costas de Sharon Stone, a insinuação do rotundo estuário onde desaguam, é a visão redentora. O que Sharon mostrou nessa noite, mostrava-o porque queria, sem medo e sem equívoco. Era para ver e eu vi: o traseiro decote do século XX.

Estará extinto o escândalo da mulher nua? E onde começou? No cinema? Lembro-me que, no cinema mudo, Mack Sennett despia as mulheres. Inundava as suas comédias de bathing beauties, como depois o genial Busby Berkeley, já o cinema falava e cantava, povoou de fatos de banho cor de pele os seus delírios musicais pré andy-wharolianos.

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