Querido Frederico Duarte Carvalho | (…) daqui te escreve o camarada Salazar | Tiago Salazar

Querido Frederico Duarte Carvalho

Para falar de Abril e da Revolução, daqui te escreve o camarada Salazar, o único membro do Partido Comunista Português (PCP) de apelido conotado com o fascismo. Era simpatizante e votante de longa data do PCP, e passei a militante de cédula e quotas (opcionais), num Abril de há dois anos. Ninguém me sondou ou aliciou. Fui pelos meus pés, amadrinhado pela Ana Margarida De Carvalho, sem que a amizade ditasse a minha escolha.

Seguia o discurso e o trabalho do camarada João Ferreira, e predispus-me a apoiá-lo nas eleições para a Câmara de Lisboa na falange do sector intelectual. Assinei os papéis sentado num banco de jardim em Belém, entregues pelo camarada Tiago Santos, que me perguntou se estava ciente da minha decisão e de quantos inimigos iria fazer a partir do momento do facto revelado. Ri-me e disse-lhe que todas as vezes que escrevia corria esse risco. Todas as escolhas trazem vicissitudes, ou como dizia o tio do Homem-Aranha “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. No PCP sempre tinha as costas mais largas se precisasse dos índios apache. Vi-me então pela primeira vez a observar a partir de dentro como funciona um partido e é também disso que te vou falar no dia 25 de Abril.

No dia do matrimónio escrevi este texto:

A motivação é um aspecto intrigante quando pensamos em validar (ou dispensar) um indivíduo. Por exemplo, o borrego manso do PSD, notório arrivista, ao fantasiar (digamos assim) dados do seu percurso curricular num tempo de acesso fácil ao mais ínfimo e sórdido detalhe, põe a sua cabeça no cepo. Quem quer os laranjas mantidos no chão da sua peçonha ainda a tresandar, agradece. Quem pratica o ofício do humorismo, regozija-se. Quem se preocupa com o valor dos animais políticos, entristece-se. Por estes e por outros, se ensombra qualquer alma hoje dedicada com honestidade ao ofício mais nobre da civilização, a Política.
Hoje, para que se saiba sem intermediários, juntei oficialmente os trapinhos com a única força política viril, diria mesmo entumescida, na qual leio, vejo, oiço e sinto capacidades frontais e acções consistentes onde habitem as palavras liberdade, coragem, frontalidade e integridade. Não me movem o oportunismo, a avença, a agremiação de mais leitores. Não tenho aspirações a grande mufti ou a discursar perante tribunas de plebeus sanguinários.
Agrada-me doravante ser chamado Camarada Salazar, erguer os copos com um líder assertivo de nome de índio, ter na linhagem de fundadores um escritor, artista e pensador dos mais combativos e brilhantes que o país conheceu e seguir uma tradição antiga, onde o mote sem dogma é trabalhar para o bem comum e não para o benefício de alguns.

Um dia, enquanto repórter do Tal & Qual, fui bater à porta do camarada Cunhal para lhe vender um plano de adesão à TV Cabo, onde me empregara para gozar de credibilidade. Não passei da soleira, onde fui atendido pela Fernanda Barroso, a sua companheira de longos anos. Tinha esperança de ser recebido numa sala com um psiché ornado de bustos de Marx, Engels e Lenine, e diante de um samovar ou um copo de três a transbordar de vodka, extrair elementos para a crónica de um encontro clandestino com o grande líder. Fernanda despachou-me com gentileza, não sem antes me desejar boa sorte nas vendas, e me perguntar se as condições de trabalho eram dignas, quase a ponto de dizer que se precisasse de alguma coisa passasse pela Soeiro Pereira Gomes. Assim se gorou uma visita ao poder, mas não deixaria de contar no jornal o mesmo que agora te conto com outros recortes literários. O Tal & Qual não colhia amizade no partido e uma proposta de entrevista pelas vias normais seria negada. A ideia, de resto, era infiltrar um repórter afoito na casa do líder mais zeloso da sua intimidade, e dali sair com prosa para um texto neo-realista.

Posso imaginar a conversa que nunca se deu assim:

Boa tarde. Muito obrigado por me receber. O senhor não é por acaso o Dr. Álvaro Cunhal? Sabe, é que eu cresci numa casa com um tio comunista e ele tinha o seu retrato na parede, ao lado do Estaline, do Trotsky, do Lenine, do Estaline e da Rosa Luxemburgo. Conheço-os todos. Quero dizer, conheço-lhes as caras. O senhor é muito parecido.
Não sei se sou, mas parece que sim, meu rapaz – disse Cunhal, enigmático, numa voz aveludada. E o que te traz por cá?
Ando a fazer pela vida como a maioria de nós, os do proletariado. A maioria faz, a minoria arrecada.
Estou a ver que o teu tio te ensinou bem a lição da vida.
Pois é Dr. Cunhal. Mas esse tio agora é dos laranjas. Trocou as tintas. E até deu em diácono. Era muito moralista quando andava no PCP, sobretudo no aspecto da fidelidade às camaradas. Um dia foi descoberto pela mulher. Parece que andava a ter encontros com uma polaca casada, todas as sextas, numa pensão. Tentou desculpar-se com o argumento de que andava a fornicar o capital. A mulher acabou por perdoá-lo, desde que pedisse desculpa de joelhos à frente de um coro de devotos de uma seita, os Adventistas, ao que parece. A vida dá muitas voltas. Eu que era repórter do Tal & Qual agora ando a vender planos da TV Cabo.
Todos os trabalhos são dignos do Homem, desde que sejam feitos com brio e honestidade.
(esperei que o camarada Cunhal metesse o ferrão no jornal, mas manteve a serenidade, sem se mostrar suspeitoso)
Com isso concordo, e até me dão comissões se vendo um plano por dia. Nos jornais era um martírio para receber a horas, e horas extraordinárias nem um tostão, e quantas directas temos nos lombos. Quase tudo precários, excepto as chefias e os amigos da administração. Tudo corrido a ordenados mínimos e a maioria com cursos superiores. Ainda para mais sempre com a cabeça no cepo e em perigo de vir alguém dar-nos uma coça se não gostou de ser visado.
O sector do Trabalho é dos mais abusados, mas felizmente temos grandes sindicalistas em acção. E o mal não dura para sempre. Olhe o 25 de Abril.
O país deve-lhe muito Dr. Cunhal. Sabe, eu tenho grande apreço pela sua obra literária e os seus desenhos. O Dr. é um artista.
Há muitos que não me vêem assim. Acham que quis fomentar uma revolução na Revolução.
Problema deles Dr. Cunhal. Quem saiba como vive vai admirar-lhe a modéstia.
Habituei-me a viver com pouco e se te comprar esse plano da TV Cabo é para te ajudar. Não dou muita importância aos canais. Aprende-se mais com os livros.
Dizem que a TV é um espelho do povo, Dr. Cunhal. Eu vejo muita TV, mas faço muito zapping e para adormecer é como um Xanax.

A conversa terminaria por aqui com a compra de um plano de fidelização e a oferta do livro “Até Amanhã, Camaradas”, daqui se provando como todas as relações frutíferas são de igual para igual.

um abraço

Tiago Salazar

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