Como a Nato venceu a guerra sem um tiro | por Francisco Louçã | in Jornal Expresso 2/04/2022

No verão passado, terminou em desastre a única operação militar da Nato deste século, a primeira evocação do temido artigo 5º do seu tratado. As forças norte-americanas retiraram-se e os 300 mil soldados que tinham armado, um dos maiores exércitos do mundo, debandaram em poucos dias e entregaram o poder aos talibãs.

Centenas de cidadãos norte-americanos foram deixados para trás na precipitação da fuga. A Nato atingiu o seu ponto mais baixo. Poucos meses depois, a organização é já a vencedora da guerra da Ucrânia, como quer que prossiga a destruição do país. A sua vitória é total. É política e comunicacional, como é militar e estratégica, dominando adversários e aliados, pois a Nato passou a ser vista como a única garantia da Europa, enquanto Putin, que desencadeou a invasão para trucidar um país soberano em nome da saudade do império czarista, se tornou o homem mais detestado do mundo.

 Tem sido analisada a estratégia do Kremlin, que procura afirmar uma potência global, embora sem recursos para tal. A Rússia tem um PIB dez vezes inferior ao da China (há vinte anos era equivalente) e, se dispõe do segundo exército do mundo, falta-lhe capacidade para determinar o mapa europeu. Em contraste, a estratégia da Casa Branca não tem sido discutida, excepto nos próprios EUA, e talvez seja Thomas Friedman, um editorialista conservador do New York Times, quem tem estado mais atento a esse percurso, em que não há inocentes.

 Em Washington, confrontaram-se sempre duas abordagens à questão, desde o fim da URSS. Uma tem sugerido o prolongamento da guerra fria para desagregar o inimigo: Brzezinski, Conselheiro de Segurança de Carter, tinha proposto em 1997, na “Foreign Affairs”, o desmembramento do país, dado que “uma Rússia mais ou menos confederada, composta por uma Rússia Europeia, uma República da Sibéria, e uma República do Oriente, poderia com mais facilidade cultivar relações económicas estreitas com os seus vizinhos”. A outra visão queria integrar a Rússia e, por isso, opôs-se à decisão de 1998 de extensão da Nato para o leste europeu, violando o Ato Fundador das Relações Mútuas, assinado com o Kremlin em 1997 e que previa a contenção dessas forças. Perry, Secretário de Defesa de Clinton, precisamente até 1997, contestou a decisão: “A primeira ação errada foi quando a Nato se começou a expandir para o leste europeu, nas fronteiras da Rússia. Nesse momento, estávamos a trabalhar de perto com a Rússia”, diz ele. Conta também Friedman que, quando dessa expansão da Nato, consultou George Kennan, embaixador em Moscovo em 1952, no auge da Guerra Fria, apresentado como o especialista sobre o tema. A resposta foi que “penso que isto é o início de uma nova guerra fria, é um erro trágico. (…) Comprometemo-nos a proteger uma série de países, mesmo que não tenhamos quer os recursos quer a intenção de o fazer de modo sério. Será que não percebem? As nossas diferenças na Guerra Fria eram com o regime soviético comunista. E agora estamos a virar as costas às mesmas pessoas que criaram uma das maiores revoluções sem sangue para remover o regime soviético. (…) Claro que haverá uma reação má por parte da Rússia e então os [expansionista da NATO] dirão que foi isto que sempre vos dissemos sobre os russos – mas é simplesmente errado”. A primeira opção faz o seu caminho, impulsionada agora pelo ataque à Ucrânia.

 A invasão putinesca e o seu desastre militar e político criarão um novo Muro a leste e destroçarão a economia russa. Reparado o desastre de Cabul, a Nato ganhou a guerra, criou uma nova dimensão da sua hegemonia, a bandeira europeia mudou de cores, a segurança europeia ficará presa da confrontação a leste. Sem dar um tiro, Biden venceu o inimigo e submeteu os aliados.

(no Expresso)

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