Realpolitik | um conceito fora do discurso atual | por Carlos Matos Gomes

Hoje, a propósito da guerra na Ucrânia e perante a ditadura do pensamento único e da opinião instantânea, da técnica do dispare uma condenação antes de pensar, lembrei-me de ir a uma Enciclopédia Britânica que anda aqui por casa e ler o que ali se diz sobre um conceito que desapareceu do discurso da comunicação social: Realpolitik.

Reza a Enciclopédia Britânica (tradução minha): Realpolitik, política baseada em objetivos práticos e não em ideais. A palavra não significa “real” no sentido inglês, mas sim que conota “coisas” — daí uma política de adaptação às “coisas” como elas são. A Realpolitik sugere, assim, uma visão pragmática e objetiva e um desrespeito pelas considerações éticas . Na diplomacia, a Realpolitik é frequentemente associada à busca implacável, embora realista, do interesse nacional.

Pensadores conceituados como Maquiavel e Nietzsche defendem a Realpolitik como um tipo de realismo político segundo o qual as relações de poder tendem a abafar todas as pretensões de fundamentação moral, num tipo de ceticismo moral análogo ao do argumento de Trasímaco na República de Platão. (Trasímaco, personagem de a República, para quem a justiça não é nada mais do que a “conveniência do mais forte”).

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O que há de novo nesta guerra? | por Carlos Matos Gomes

Todas as guerras começam onde a última acabou. Esta invasão da Ucrânia começou com a implosão da URSS e a sua redução a uma potência militarmente vencível e estrategicamente dominável pelos Estados Unidos.

Esta guerra começou quando os Estados Unidos entenderam que chegara a ocasião de fechar o cerco à Rússia e fazer da Ucrânia a sua base avançada no centro da Europa, o mesmo papel que atribuíram a Israel a Sul e aos estados bálticos a norte (agora estendido à Finlândia e à Suécia com uma rápida integração na NATO, a sua aliança militar para a Europa).

A Rússia respondeu com uma ação militar clássica e convencional de objetivos limitados. Uma invasão por 3 eixos, um dirigido do Norte à capital, Kiev, outro no Leste para integrar os territórios fronteiriços e um a Sul para dominar os mares de Azov e Negro.

Até aqui tudo como nos livros da última guerra. Como aconteceu na I Grande Guerra que se previa ser de curta duração, com introdução de um novo fator, a metralhadora, os planos deixaram de ser válidos, as tropas fixaram-se no terreno, em trincheiras. Na II Guerra Mundial o fator novo foi uma má avaliação alemã das capacidades da conjugação de blindados e aviação na planície europeia, que inclui a Ucrânia, e alterou os planos alemães de conquistar a Rússia. Também nesta presente guerra da Ucrânia surgiram fatores novos que a transformaram numa guerra de novo tipo, de resultados imprevisíveis, exceto o de que os povos sofrerão mais e empobrecerão e os ricos enriquecerão.

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EM DEFESA DA INTELIGÊNCIA | Guilherme d’ Oliveira Martins | Opinião/DN

“Perante um mundo ameaçado de desintegração, onde os novos inquisidores arriscam edificar para sempre os reinos da morte, esta geração sabe que deveria, numa espécie de corrida contrarrelógio, restaurar entre as nações uma paz que não seja a da servidão, reconciliar de novo trabalho e cultura e reconstituir com todos os seres humanos uma arca da aliança”. Estas foram as palavras de Albert Camus quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura a 10 de dezembro de 1957.

Afirmando que a sua geração não estaria destinada a refazer o mundo, o escritor preferia os homens empenhados às literaturas comprometidas. Mais do que pregador da virtude, o intelectual deveria compreender que a verdade é misteriosa e fugaz e que a liberdade é perigosa “tão dura de viver, quanto empolgante”. Conferências e Discursos (Livros do Brasil, 2022) reúne trinta e quatro textos de Camus, que constituem reflexões que ganham, nos dias que correm, uma atualidade premente.

Quando a guerra regressa ao nosso quotidiano, com argumentos que julgaríamos banidos, compreendemos que Camus pôde ver para além das ilusões alimentadas por amanhãs que cantam. Por isso, foi incompreendido, ao recusar o conformismo das ideias adquiridas. E, ao relermos, o que disse em março de 1945, na associação “Amitié Française”, quando na frente europeia começavam a calar-se as armas do conflito, voltamos a entender como a humanidade nunca pode considerar-se definitivamente conciliada… “De facto, nada faremos pela amizade se não nos livrarmos da mentira e do ódio. E, em certo sentido, é bem verdade que não nos livrámos. Há muito que frequentamos essa escola. E talvez seja essa a última e mais persistente vitória do hitlerismo, e das marcas odiosas deixadas no coração até daqueles que as combateram com todas as suas forças (…)

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