Célia Moura, in”No hálito de Afrodite” | Jean Claude Sanchez Photography

Invades-me

Nessa tesão

Que as searas

Silenciam

E me delicias

Na tua pele molhada

Dessa orgia de veludo

Em ti

Plena de incenso,

Jasmim

Rubras rosas

E nossos corpos

Finalmente libertos

Entre as papoilas

E o canto dos pardais.

Célia Moura, in”No hálito de Afrodite”

Jean Claude Sanchez Photography

Citação | Simone de Beauvoir

Não se apaixone por uma mulher que goste de ler, uma mulher que sente muito, uma mulher que escreve…
Não se apaixone por uma mulher culta, bruxa, delirante, louca.
Não se apaixone por uma mulher que pensa, que sabe o que sabe e também sabe voar, uma mulher segura de si mesma.
Não se apaixone por uma mulher que ri ou chora ao fazer amor, que sabe fazer da sua carne, espírito, muito menos uma que ama poesia (estas são as mais perigosas), ou que possa ficar meia hora contemplando uma pintura e não é capaz de viver sem música .
Não se apaixone por uma mulher que se interesse por política e que é rebelde e manifeste horror pelas injustiças. Por uma que goste de jogos de futebol e beisebol e que não goste de assistir TV. Ou por uma mulher que seja bonita, não importam as características de seu rosto e corpo.
Não se apaixone por uma mulher intensa, por uma mulher divertida e lúcida e irreverente .
Não queira se apaixonar por uma mulher assim. Porque quando você se apaixonar por uma mulher assim, ela pode ficar com você ou não, ela pode amar você ou não, mas de uma mulher como essa, nunca se regressa.

Simone de Beauvoir

Retirado do Facebook | Mural de Célia Moura

 

Adormecem mamilos gretados | Célia Moura

Adormecem mamilos gretados
De indignação
Em cada palavra
Que não ouso.

Gemem catadupas de papoilas
Entre o trigo
E por isso as digo
As escrevinho
Grito-as aqui
Neste papel de ninguém!

E que prazer é
Mordê-las!

Saborear-lhes o sangue
Expulso das artérias
Libertando-as de mim
Desta clausura
Onde tentam amordaçar-me
Todas elas
As mais insolentes
As deliciosas
As mordazes
E até as mais voluptuosas!

Que prazer,
Enamorá-las
Consenti-las
Dar-lhes permissão
Para logo a seguir
As arremessar certeiras
Fugidias ou sarcásticas
Como flores ou como dardos
Aguçando-lhes a destreza
Verbalizá-las todas,
Libertando-as do sémen
Que nos fecunda a seara
Do Bem e do Mal
Arrancando ervas daninhas
Pelos dentes.

© Célia Moura – A publicar “Terra de lavra” (2012)
(Imagem – Justin Grant Photography)

ORGIAS | Célia Moura

Cubram-me com organza,
um pouco de seda preta nos seios já desnudados
e muitas rendas a condizer,
por favor,
de preferência pretas!

Não me digam vozes
que desconheço
nem pérolas ou diamantes
que jamais sentirei.

Eis-me aqui,
finalmente nua,
finalmente serva
perante o céu,
perante o inferno,
ou pior,
perante vós somente
e coisa nenhuma!

Cubram-me com a gentileza de mimos,
por obséquio!

Sim!

Quero rendas pretas, sedas finas, carícias que me faltaram,
já que não poderei ter os diamantes!

Quero o meu fado!
Somente o meu alegre e triste fado!
O meu fado tão mal cantado!
Aquele que o povo cantarolava quando saia do trabalho, ou enquanto laborava,
em qualquer lado!
Aquele que eu sempre cantei e me fez muito feliz enquanto tive a coragem de ser eu e de ser povo, e que me fez sentir Eu no meio da minha cidade e do meu mundo…

Quero-o soletrado em jeito de poesia no baixar do meu caixão
o meu fado, a minha poesia.
Apenas isto!

Mas, tenham a gentileza
de me cobrir toda a nudez
nesta derradeira orgia manifesta
Tão exposta!

Que terá sido feito de mim?
Sabereis vós?
Vós que hoje me acompanhais, ter-me-eis conhecido algum dia?
Soubestes porventura da minha agonia um só instante?

Desculpai-me o mau aspecto, a palidez do rosto,
a falta de maquilhagem,
esta falta de cuidado…

Não me digam mais
desafios ou maré alta,
nem tão pouco,
término!

A propósito,
quem disse que eu queria coroas de flores?

São uma fortuna,
e sinceramente para mim
são uma ofensa!

Será que nada mais vos mereço
que uma bela, ornamentada e encomendada coroa de flores?

Que tal um punhado de sementes lançadas à terra do meu chão
para depois poderem florir ao vento, e às primeiras chuvas de Outono?
Que tal uma roseira?
Ai, que excentricidade – dirão vós!

Será que nem depois de morta deixará de ter caprichos?

Não é nada disso, meus queridos ,
só porque belas flores
de encomenda – tanto que sempre as desejei –
tive sede, tive fome tantas vezes!
Mordia-lhes a cor de as querer!
No auge da minha miséria, olhava-as e sorria-lhes nas montras das floristas, ansiando que alguém me oferecesse nem que fosse um botão de rosa num dia especial – mas ninguém o fazia.
Porque tendes que me dar agora, belas rosas,
as mais rubras rosas,
as mais puras rosas?!
Porquê,
Para que as quero eu
quando tão prostrada estou
neste profundo exílio de mim?

Vós, afinal não sois como os hipócritas, certo!
Vivi a vida inteira amando-vos sem flores,
agora, deixai-me ir embora, sem elas também.

Inundai-me de luar.

Quero o meu longo vestido de noiva negro,
ao qual tantos sorriram,
sobre mim.
Embrulhai-me nele, entre papoilas, hinos, fotografias velhas
e vento norte…

Cubram-me com a fúria dos amantes traídos
e todas as flores silvestres.

Cubram-me com a poesia,
quero os mais belos poemas
Os eleitos!
Colocai-os como um terço sagrado entre as minhas mãos!

Que capricho o meu,
o de uma morta!

Não vos pedirei mais nada, prometo!

Não acreditais, é verdade!

Juro!
Juro por tudo o que existe de mais sagrado!
Exijo-vos a Palavra de meu Aba Pai.

Porque agora até posso jurar pelo Divino e pelo sagrado já que efectivamente estou morta, porque em princípio não irei morrer outra vez, certo! E, também não tenho que estar com medo que alguma coisa me caia em cima, porque na realidade, por aquilo que ainda estou a sentir agora já morta é observar-vos muito chorosos sem poder falar ou me expressar de forma alguma. Será que é isto a tão famigerada morte, ou eu estou apenas eufórica com esta nova situação na minha vida e me esteja a dar para isto, para o sentido de humor, coisa que no meu caso, penso que nunca foi o meu atributo principal, nem sequer gostava de grandes piadas, no entanto, agora neste momento aqui onde me colocaram tão bem arranjadinha dentro disto a que sempre se chama de caixão, digamos que ao ver o espectáculo de outro prisma, estou a achar uma certa graça.
A observação de vós.

A sala onde decorre o meu velório não é muito espaçosa, talvez daí se explique a tremente necessidade da entrada e saída de pessoas. Somente algumas permanecem. São os familiares mais próximos, entre eles estão os meus pais. E, perante meu corpo já sem vida, continuam sem se falar, num ódio que permanece há mais de vinte anos, e, que só a morte de um deles conseguirá apagar. Como não tive mais irmãos, somos só nós ali, os três como há mais de vinte anos isso não acontecia, nós somente, separados pelas circunstâncias da vida que torna os homens incompreensíveis e impotentes uns para com os outros por muito que se amem – como foi o caso. Mas, por mais bizarro e triste que seja, eu, ali, no meu caixão, com a beleza que a violência da morte não tinha conseguido apagar totalmente, consegui a minha grande façanha, o meu sonho de adolescente, voltar a ver os meus pais juntos, unidos, ao lado um do outro, no mesmo banco, ainda que fosse de uma simples capela mortuária que acolhia a semente única do grande amor que haviam vivido e jurado na juventude, e que havia feito a alegria de um casamento – ver nascer, crescer um filho para depois o ver morrer – não deveria haver dor pior no coração humano.
Quis abraçá-los, dizer-lhes uma vida inteira de palavras que nunca consegui dizer a nenhum, por mais que os tivesse amado, embora de maneiras bem diferentes. O ódio de um para com o outro que inevitavelmente recaíra sobre mim, tornava tudo o que eu tivesse vontade de fazer ou falar, numa autêntica impossibilidade, e eu apenas sofria, e sofri até estar aqui bem aconchegadinha neste branco bordado a cetim, lindo, com flores tão bonitas por todos os lados.
Somente o meu amor por ambos foi o elo espiritual que os uniu ainda em vida e hoje finda aqui comigo, mas estou finalmente liberta e feliz.

Célia Moura – Excerto de I Cap. “Orgias” – Contos
Imagem – Annamaria Kowalsky

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