“O rio incontornável” de Adalberto de Queiroz | o erudito na moderna poesia goiana | por Simone Athayde


A poesia, após a libertação das amarras formais pelo movimento Modernista, é hoje uma das expressões artísticas mais livres e ecléticas, que tanto pode retomar o clássico, quanto flertar com o popular, com o coloquial. De uma forma ou outra, o sucesso na composição de uma obra dependerá do talento do poeta e de como ele utiliza o tradicional ou o popular com nova roupagem. O poeta goiano Adalberto de Queiroz, ao buscar no clássico e no erudito sustentação para a sua escrita, é um bom exemplo de como, na era da pós-modernidade, o artista pode trilhar diferentes vertentes e encontrar validade em suas estratégias a partir de um trabalho bem elaborado.


Em O rio incontornável (Editora Mondrongo, 2017), Queiroz parte da mitologia grega, mais precisamente da lenda do rio Letes, para forjar os poemas de seu livro, cujas características mais marcantes são o amplo trabalho dialógico realizado pelo autor com outras obras e escritores e a utilização de palavras e expressões eruditas. As referências a essas obras e autores importantes, porém pouco conhecidos pelo grande público, como Herberto Helder, Gerardo Melo Mourão e Tomás Tranströmer, e o uso extensivo de expressões em línguas estrangeiras dificultam a leitura da obra, exigindo um exercício de pesquisa por parte do leitor a fim de que seja poss&iac ute;vel captar uma maior gama de sentidos. Tal característica dos poemas desse livro, um tanto herméticos ao leitor comum, tem como contraponto ser uma obra de beleza quase anacrônica, que tem nesses diálogos com os quais os versos são construídos seu grande diferencial.


O tema principal é o esquecimento, não só o causado pela morte, como aquele que sofre o poeta que vê, com a passagem do tempo, sua memória ser prejudicada. A religiosidade também é um tema importante na obra. O divino aparece como algo mais desejável às conquistas humanas, é a saída do poeta que se vê pequeno, frágil e, por vezes, perdido. Segundo a mitologia, o rio do Esquecimento é o rio Letes, que nascia da caverna de Hipnos, o Sono, e seguia rumo ao submundo. Depois da morte, quem bebia a água dele tinha a memória apagada. A partir desse mote, o poeta traça um paralelo inusitado entre o rio mitológico, os rios de sua terra natal e os rios que inspiraram outros escritores tão diversos entre si, tais quais João Cabral de Melo Neto, Rimbaud, Carmo Bernardes e Paul Verlaine. O rio também é um símbolo: representa a morte, a passagem para outra dimensão mais sagrada ou para outro tempo, pois o moderno, com seus barulhos e suas sinfonias disformes, incomoda a sensibilidade do eu-poético, como ele deixa transparecer em Viola D’Amore:


“Ferem meu langor, ultrapassam a janela:
vindo do meu vizinho próximo tão dissonante
um só tom, ecoa um só batuque; atropela
a minha alma sensível e estrangeira:
Aí, lamento longo e polifônico tange
viola d’amore em barroco absorvido.”


Assim como no verso acima há a palavra barroco, há algo de barroco na poesia de O rio incontornável, tanto na complexidade que remete ao cultismo e ao conceptismo marcantes daquela escola literária, quanto pela dualidade profano/sagrado apresentada em alguns poemas. Com isso, o saudosismo talvez seja um dos construtores subliminares dessa obra, pois ao revisitar seus autores e personagens preferidos e ao utilizar um estilo refinado, Queiroz o faz como fuga ao moderno.
Acima de tudo, O rio incontornável pode ser lido como uma grande homenagem do autor à arte poética, aos poetas que o antecederam, às leituras que ele fez e que formaram sua bagagem cultural. A voz que narra os poemas é ela mesmo a de um poeta, que às vezes deixa transparecer sua frustração diante dessa condição, como em “Esquece o poema”: “Não há nada a ser feito neste/ inferno provisório, senão/ aguardar o purgatório./ Esquece o poema, esquece!”
Em O lago de Wynstan, construído com traços autobiográficos, formam-se imagens tocantes do menino órfão que encontraria na literatura sua vocação: “Mr. Eliot conheci bem depois de Heleno e do Antônio José de Moura – estes, sim, / moravam na cidade do ócio dos Teles:/ – para mim, só trabalho pesado. / De todos os meus ofícios – 28, ao todo – poeta – o que à mãe menos honrava.”
Os cenários dos poemas, em parte contendo elementos, em parte goianos, como o morro do Mendanha, está representado pelo cerrado num dos poemas mais acessíveis e mais bonitos do livro: Nascentes (II) – Goyaz.


“No outono da vida o sol do cerrado
seca as mesmas sementes – sol a pino:
sementes de abóbora comidas assadas,
coisas de antanho com igual desatino.

Cajá-manga devorado com sal, à sexta-hora
o gosto arcaico na boca desata o sonho –
feito pamonhas ao leite ou tortas de amora,
só o torniquete do acerbo deixa tristonho.

Minha avó comendo manga com faca,
nas tardes de outrora, espectro se evade:
uma sombra morna no sonho somos.

Lembrança similar aperta de mansinho
a segunda costela à sinistra do sono;
– Esquecer, dormir, sonhar quem há de?”

Adalberto de Queiroz, em O rio incontornável, confirma seu talento reconhecido pela crítica com Cadernos de Sizenando e mostra um estilo ímpar dentro da literatura goiana.

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