Portas-te mal, vais para a mitra, in Expresso

Mitra sempre foi um dos vários nomes que ouvi nas histórias de infância contadas pela minha mãe e tios, dos tempos em que brincavam nos Olivais, em Lisboa. O Mitra era um João com quem ela partilhava turma e sobre quem nunca soube ao certo explicar como é que este João se tornou no Mitra. Talvez pela cabeça rapada. Talvez porque apenas herdou a alcunha de um irmão mais velho. Talvez. Mas era certo: não era um elogio. Aliás, uma busca rápida no Priberam, confirma-me isso mesmo:

Jovem urbano, geralmente associado às camadas sociais mais desfavorecidas, de comportamento ruidoso, desrespeitoso, ameaçador ou violento e que tem gostos considerados vulgares.”

Mitra não é o João nem sequer uma pessoa: é um lugar. E é desse lugar que lhe quero falar: o Albergue da Mendicidade da Mitra. Um depósito de “miseráveis”, onde a polícia durante o Estado Novo prendia, sem condenação nem recurso, quem queria fazer desaparecer das ruas: mendigos, pedintes, vadios, aleijados, loucos e prostitutas. Rapavam-lhes o cabelo, metiam-lhes uma farda de cotim e um número ao pescoço, a lembrar um campo de concentração.

Na “cidade dos mal-amados”, mais de 20 mil adultos e crianças foram escondidos do olhar público, muitos por várias décadas. Alguns deles ainda lá estão. É o caso de Catarina, que aos 23 anos foi levada para a Mitra por ser “pobre, aleijada e anormal”. As autoridades pediam o seu internamento num asilo para não ser mais um encargo para a tia com que vivia. Passaram 70 anos e Catarina ainda lá está.

Esta história – e outras – são contadas pela Joana Pereira Bastos, a Raquel Moleiro, o Rúben Tiago Pereira e o Tiago Miranda. Hoje, a reportagem chega-lhe em forma de documentário, amanhã, nas páginas da Revista E, em prosa. Sou suspeita, mas aconselho a ver, a ouvir e a ler tudo.

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