Crónica de Raquel Varela, in Facebook, 9 Junho 2025

Faço este ano 20 anos de carreira a estudar revoluções e trabalho. Da organização dos trabalhadores à sua subjectividade (infelizmente conhecida como “saúde mental”) é aqui, no trabalho, seja ele de um professor ou de um operário que repousam todas as minhas esperanças. Talvez por isso compreenda cada vez menos porque não lutam os trabalhadores de forma mais consistente e determinada, quando quase tudo está perdido. 

Como pode um médico ser feliz num hospital, se o que pode dar ao seu paciente é antes visto na conta bancária deste? Como pode esse médico ver o paciente ser mandado embora porque não tem plafon? Como pode manter a sua saude mental neste justamente de hipócritas? Como pode um professor deixar-se fingir enganado dando aulas estupidificantes, de cortina fechada, com ecrãs e enviar os seus alunos para o “ensino profissional” desistindo deles e ensinando-os a usar a “IA responsavelmente”? Como pode um enfermeiro enviar um auxiliar fazer o seu trabalho, porque está exausto de outro turno, assim pondo em causa a vigilância do doente? Como pode um estivador descarregar armas? Como pode um operário construir carros com subsídios das pensões da segurança social, e com lítio sacado a agricultores que estavam ali, a pastar as suas vacas, o ultimo pedaço de comida digna desse nome a que podemos ter acesso? Como pode cada um destes entregar os seus pais a um lar porque não têm tempo, dinheiro para cuidar deles? Como podem abandonar os filhos e netos às companhias de bigtechs nos telemóveis? O que tem tudo isto a ver com aceitar cortar funcionários públicos para investir em guerra na UE? E o que tem tudo isto a ver com o Estado de terror israelita que assassina todos os dias crianças e civis para lhes roubar as casas? Do médico em burnout porque está a violar a sua consciência, ao vender tratamentos, ao colapso de qualquer forma de humanidade no Estado de Israel, o que falta para que não só saiamos todos à rua, façamos greves estruturadas, protestos e sobretudo nos organizemos, com jornais, partidos e reuniões, para defender o que resta da decência humana? O que os imigrantes fizeram em Los Angeles é exemplar – perdemos tudo, mas não perdemos a dignidade de lutar. 

Os mexicanos de pedras na mão contra o maior exército do mundo, os que marcham e navegam na flotilha, os que fazem greve sob ameaça, os estivadores de Génova, Suécia e Marselha que não descarregam armas para Gaza, os que aqui, ao nosso lado, fazem greve, nenhum deles está a parar a produção para incomodar as nossas vidas, estão todos a parar a barbárie e a tentar salvar o que resta das nossas vidas, para que não tenhamos que olhar um médico deprimido, desligado do amor pelo outro, ou uma criança amputada, ao lado de outra, morta, enrolada num lençol branco. Estamos todos no mesmo barco a enfrentar navios de guerra. A única arma que temos é a nossa acção, concreta, não em palavras, e a nossa solidariedade. Parece pouco, mas foi sempre assim que o mundo mudou para melhor. E foi sempre quando parámos de lutar, que os navios, os drones e os plafons de seguros avançaram sobre nós.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.