A banalização do fascismo | Rui Bebiano in Blog “A Terceira Noite”

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Quando oiço dizer que vivemos, em Portugal e nesta complicada Europa que nos cabe, «pior que no tempo do fascismo», ocorrem-me três argumentos contra uma afirmação tão imperfeita e perigosa. Em primeiro lugar, ninguém que tenha vivido ou conheça de forma cabal o tempo e a experiência dos fascismos que envenenaram o século passado, fazendo dos Estados aparelhos de coação e não de garantia dos direitos fundamentais, é incapaz de proferir em consciência uma afirmação dessa natureza. Em segundo lugar, estabelecer uma comparação que incide de forma particularmente negativa sobre o presente é prova de um claro desconhecimento da História, pois nenhum dos conflitos e formas de opressão pelos quais passamos hoje, sobretudo no mundo industrializado e nas suas contíguas periferias, se compara, em escala e na brutalidade, com aqueles que cruzaram as décadas em que os fascismos se impuseram. Em terceiro lugar, quem o diz vive provavelmente no terreno nebuloso de um wishful thinking feito de enormes simplificações, com recurso às quais pensa agudizar contradições e desta forma prover as «condições objetivas» para impor mudanças julgadas redentoras, necessariamente ilusórias. No fundo, quem de tudo isto beneficia são de facto os novos fascismos, agora mais insidiosos e apurados nos seus métodos, que pelo efeito de banalização que uma tal afirmação provoca vão podendo desbravar caminho. Desta maneira, em vez de se baterem pela defesa dos direitos alcançados em décadas de lutas pela democracia e pelo bem-estar, muitos cidadãos desenvolvem uma consciência política feita essencialmente de ressentimento, que acaba por isolá-los, desmobilizando-os de facto e colocando-os à mercê dos algozes. À noite, nas suas casas, adormecem narcotizados, tentando esquecer um mundo que os atemoriza e não compreendem.

Rui Bebiano

http://aterceiranoite.org/2014/08/26/a-banalizacao-do-fascismo/ … (FONTE)

FOTO: Auschwitz

A mansa revolta da dor | José António Barreiros in Blog “A Revolta das Palavras”

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Há um momento na vida em que a tirania mansa esgota a paciência e atiça o fogo da revolta. E a revolta não é mansa e gera o mal que se faz sofrer a partir do mal que se sofreu. E há sempre as vítimas sem razão.
Mas há um momento em que a violência brutal, que nos chega como quotidiana, já está para além da capacidade de a suportar.

Quando era miúdo não conseguia ver filmes que se diziam para a minha idade porque havia um nó na garganta, de dor, que me sufocava e as lágrimas contidas a tal ponto que os olhos pareciam implodir. Era uma forma, ouvia dizer, de, por esse meio, nos educarem a sensibilidade, gerando na nossa afectividade em formação, os bons sentimentos. E havia o cão que, morrendo, deixava o menino sozinho e o rapaz que, porque órfão, nunca seria menino. E a vida era um Natal gélido e faminto vivido do lado de cá da vidraça.

E depois era a mágoa dos amores quando ainda eram apenas ternuras inconsequentes, o medo dos adultos e da sua violência castigadora, os remorsos pelo tanto que se poderia ter feito ou por outra forma. E o pecado. E o dia em que as coisas de que gostávamos e as pessoas que amávamos começavam a morrer.
Hoje já não há muito disso que aleijou a alma. Torná-mo-nos adultos. Atentos ao mundo, há, porém, o que nos chega pelas notícias: a selvajaria das guerras entre povos e o mesmo povo, a cruel violência no seio da própria família. E, na dança macabra dos fins de festa, há a estupidez acéfala dos embriagados pela futilidade, a indiferença que nasce pela banalização do horror. Que não magoa menos.

Confesso que sinto de novo a surgir essa até agora longínqua incapacidade de suportar.
Quando, porque nascido em Malanje, me chegaram, tinha eu doze anos, os primeiros sinais da violência feroz que se tornou em guerra, vinda da revolta indígena na Baixa de Cassanje, mais a violência feroz da retaliação e a ferocidade angustiante do medo, quando, tudo tornado pavor e insónia, a ingenuidade infantil quebrou estilhaçada em cacos, senti que se me franqueara do mundo o horrível e o feio. E tentei encontrar então uma razão que ao menos me desse a paz de uma explicação.

Hoje, como insecto estonteado ante a luz, dói-me só de ouvir e dói também constatar que evito saber. Não nasce aí o regresso à inocência, sim o enfrentar o espelho acusador da má consciência.
É que foi este, afinal, o mundo que criámos e deixámos que surgisse.
Há um momento na vida em que a tirania mansa esgota a paciência e atiça o fogo da revolta. E a revolta é connosco mesmo por causa daquilo em que nos tornámos.

José António Barreiros

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Foto: Hugo Simberg | The Wounded Angel | Google Art Project