O paradoxo político de Lutero | Viriato Soromenho Marques in “Diário de Notícias”

Ontem, dia 31 de outubro, cumpriram-se 500 anos sobre o início da Reforma Luterana: a publicação na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg das suas 95 teses contra as indulgências. Em poucos anos, o que era um protesto aparentemente localizado e sectorial contra um cristianismo ocidental romano, já com frestas mas ainda unificado, transformou-se num poderoso e plural movimento que iria cindir, violenta e definitivamente, não só o cristianismo como a política, a sociedade e a cultura do Velho Continente. Se os Descobrimentos de Portugal e Espanha tinham levado a Europa a outros mundos, Lutero contribuiu para despertar os diferentes e contraditórios mundos que se escondiam sob a aparente unidade medieval europeia. A Reforma continua a marcar-nos as vidas, mesmo sem disso termos consciência.

A maior singularidade paradoxal de Lutero, mesmo perante outros reformadores, reside no pensamento político. No seu combate à hierarquia católica e ao Papado, Lutero retirou à Igreja qualquer estatuto de privilégio. Os pastores deixaram de constituir uma “ordem” ou “estado” (Stand), como ocorria na mundivisão medieval dos três estados (clero, nobreza e povo), para preencherem um mero “cargo” (Amt). Eram funcionários submetidos ao poder da autoridade secular. Esta tese da subordinação da Igreja ao Estado foi, contudo, radicalizada pelas próprias circunstâncias da Reforma que colocaram Lutero totalmente na dependência da proteção dos príncipes feudais de uma Alemanha politicamente fragmentada. Perseguido pelo Papa e pelo Imperador Carlos V, Lutero teve de fazer uma escolha brutal e sem retorno em 1525. Nesse ano, vastas partes do território alemão foram percorridas por uma revolta social camponesa, liderada em muitos casos por frades e padres próximos do pensamento de Lutero, como foi o caso do teólogo Thomas Müntzer. Esses camponeses pretendiam algumas alterações modestas no estatuto de servidão. Tinham mesmo um programa com 12 artigos. Depressa, todavia, os protestos pacíficos degeneraram em violência. Perante isso, Lutero foi forçado a intervir. Em poucas semanas, a sua posição passou de um apelo à pacificação para uma firme tomada de partido pelos príncipes, concretizada nalgumas das páginas mais iradas e violentas escritas na língua alemã (de que ele é também um dos principais fundadores). Os camponeses foram esmagados na batalha de Frankenhausen. Entre as cem mil vítimas da repressão contava-se Müntzer.

Este episódio ajudou a radicalizar a teoria luterana dos “dois reinos” (Zwei Reichen), de acordo com a qual o bom cristão deveria uma obediência incondicional às autoridades civis. O cristão era libérrimo na Igreja, mas ficava agrilhoado na esfera política. Ironicamente, o mesmo homem que enfrentara como rebelde os maiores poderes religiosos e seculares do seu tempo, e que pregara a absoluta igualdade dos cristãos, acabou, no plano político, por dar uma chancela teológica ao poder arbitrário da aristocracia feudal que se manteria por longos séculos na Alemanha. A tendência dominante da modernidade consistiria – seja no catolicismo de Francisco Vitoria e da Escola Ibérica da Paz seja no protestantismo de Calvino ou John Knox – em aproximar a Cidade de Deus da Cidade dos Homens. Pelo contrário, ao idealizar a sua aliança conjuntural com os príncipes, justificada pela sobrevivência física pura e simples, numa doutrina teológica de temor reverencial pelo poder de César, Lutero deixou uma trágica semente de obediência irrestrita na cultura política germânica, com tristes consequências em toda a Europa.

Viriato Soromenho Marques

Retirado do Facebook | Mural de Carlos Fino

https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/viriato-soromenho-marques/interior/o-paradoxo-politico-de-lutero-8886976.html

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