Sombras | Francisco Louçã e Michael Ash | Prefácio de Eduardo Lourenço

Prefácio de Eduardo Lourenço a “Sombras”

Um sonho para a Europa?

À “Maldição de Midas” consagrou, em tempos, Francisco Louçã, político e economista, um ensaio, ao mesmo tempo literário e sociológico, que fez data. À sua óbvia perspectiva de economista associou uma rara preocupação cultural, como se fosse seu propósito converter a famosa “maldição” no romance ocidental do enigma da condição humana biblicamente condenada no papel demoníaco que a humanidade, desde a origem, reservou ao culto idólatra de si mesma no mítico “bezerro de oiro” incarnado.

Vinte anos mais tarde é a versão, hoje em dimensão planetária, do Capitalismo americano (fórmula pleonástica) que suscita a sua pluma, não apenas de economista mas de militante empenhado na defesa de uma sociedade assumidamente utópica. Leitura da mesma civilização ocidental como culto e fascínio não por um “bezerro de oiro” mítico, de natureza e efeitos demoníacos, mas como jogo, de cada vez mais sofisticado, de um ídolo de papel de propriedades mágicas pois tem a função – convencionada mas reverenciada – de substituir “o valor”, qualquer que seja o bem, pelo ficcional que o representa.

De algum modo, com esta revisitação da antiga “maldição de Midas”, Francisco Louçã submete a referência incontornável do universalizado capitalismo a uma espécie de leitura hiper-freudiana da agora não apenas ou só “maldição de Midas”, mas da sua versão quase metafísica que o capitalismo moderno representa, exibindo-se e ocultando-se ao mesmo tempo.

O pélago da mundialização é para Francisco Louçã obscuro e transparente. Isso não impede que o converta em aventura fascinante, como o seu texto o mostra. O seu exercício não é apenas o de um intelectual capaz de distinguir com acuidade rara o que é aceitável ou inaceitável nesta espécie de Guerra de Tróia sem fim que é a da luta entre os que dominam os mecanismos vitoriosos da economia mundial e os que sofrem os seus efeitos devastadores, mas um acto de coragem com o que isso implica de decisão ética e lucidez. Em suma, as armas ideais para defrontar com algum sucesso a, pelo vistos, incontornável “maldição de Midas”.

Eduardo Lourenço

Retirado do Facebook | Mural de Francisco Louçã

TERRAMOTO DE LISBOA – EMBORA ESQUECIDO, IMPACTO PERDURA | Carlos Fino

Que o terramoto de 1755 foi um acontecimento marcante e de um alcance global não é difícil de imaginar até à luz dos desastres que hoje nos habituámos a testemunhar. Mesmo sem o desenvolvimento tecnológico dos últimos 300 anos, sobrevivem testemunhos de uma destruição de tal ordem que não nos deixa duvidas do carácter global da tragédia. O movimento das placas tectónicas que sustentam este pedaço de terra e os desastres que lhe seguiram, deixaram a nu a fragilidade do homem, da sua organização e do seu conhecimento, das suas explicações, perante a natureza.

UM ABALO NO PENSAMENTO GLOBAL

Se até ao século XVIII o homem entregava a explicação dos desastres à causa divina, com o terramoto de 1755 a realidade exaltou-se e fez escassear metáforas e significados religiosos que conseguissem explicar a dimensão de tal fenómeno. A força da natureza foi de tal ordem evidente que as réplicas – reais e simbólicas – sentiram-se em toda a parte. Entre a história que se escreve da ciência atribui-se a uma dessas réplicas, sentida 17 dias depois, papel central nos primórdios sismologia. Terá sido uma réplica sentida em Boston que permitiu a John Winthrop observar algumas das primeiras propriedades dos sismos – conclusões apresentadas 25 dias depois do sucedido em Harvard, numa palestra icónica e num tempo em que as conclusões científicas ainda eram anexo, a que se seguiu uma extensa e detalhada publicação na compilação Philosophical Transactions da Royal Society.

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O paradoxo político de Lutero | Viriato Soromenho Marques in “Diário de Notícias”

Ontem, dia 31 de outubro, cumpriram-se 500 anos sobre o início da Reforma Luterana: a publicação na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg das suas 95 teses contra as indulgências. Em poucos anos, o que era um protesto aparentemente localizado e sectorial contra um cristianismo ocidental romano, já com frestas mas ainda unificado, transformou-se num poderoso e plural movimento que iria cindir, violenta e definitivamente, não só o cristianismo como a política, a sociedade e a cultura do Velho Continente. Se os Descobrimentos de Portugal e Espanha tinham levado a Europa a outros mundos, Lutero contribuiu para despertar os diferentes e contraditórios mundos que se escondiam sob a aparente unidade medieval europeia. A Reforma continua a marcar-nos as vidas, mesmo sem disso termos consciência.

A maior singularidade paradoxal de Lutero, mesmo perante outros reformadores, reside no pensamento político. No seu combate à hierarquia católica e ao Papado, Lutero retirou à Igreja qualquer estatuto de privilégio. Os pastores deixaram de constituir uma “ordem” ou “estado” (Stand), como ocorria na mundivisão medieval dos três estados (clero, nobreza e povo), para preencherem um mero “cargo” (Amt). Eram funcionários submetidos ao poder da autoridade secular. Esta tese da subordinação da Igreja ao Estado foi, contudo, radicalizada pelas próprias circunstâncias da Reforma que colocaram Lutero totalmente na dependência da proteção dos príncipes feudais de uma Alemanha politicamente fragmentada. Perseguido pelo Papa e pelo Imperador Carlos V, Lutero teve de fazer uma escolha brutal e sem retorno em 1525. Nesse ano, vastas partes do território alemão foram percorridas por uma revolta social camponesa, liderada em muitos casos por frades e padres próximos do pensamento de Lutero, como foi o caso do teólogo Thomas Müntzer. Esses camponeses pretendiam algumas alterações modestas no estatuto de servidão. Tinham mesmo um programa com 12 artigos. Depressa, todavia, os protestos pacíficos degeneraram em violência. Perante isso, Lutero foi forçado a intervir. Em poucas semanas, a sua posição passou de um apelo à pacificação para uma firme tomada de partido pelos príncipes, concretizada nalgumas das páginas mais iradas e violentas escritas na língua alemã (de que ele é também um dos principais fundadores). Os camponeses foram esmagados na batalha de Frankenhausen. Entre as cem mil vítimas da repressão contava-se Müntzer.

Este episódio ajudou a radicalizar a teoria luterana dos “dois reinos” (Zwei Reichen), de acordo com a qual o bom cristão deveria uma obediência incondicional às autoridades civis. O cristão era libérrimo na Igreja, mas ficava agrilhoado na esfera política. Ironicamente, o mesmo homem que enfrentara como rebelde os maiores poderes religiosos e seculares do seu tempo, e que pregara a absoluta igualdade dos cristãos, acabou, no plano político, por dar uma chancela teológica ao poder arbitrário da aristocracia feudal que se manteria por longos séculos na Alemanha. A tendência dominante da modernidade consistiria – seja no catolicismo de Francisco Vitoria e da Escola Ibérica da Paz seja no protestantismo de Calvino ou John Knox – em aproximar a Cidade de Deus da Cidade dos Homens. Pelo contrário, ao idealizar a sua aliança conjuntural com os príncipes, justificada pela sobrevivência física pura e simples, numa doutrina teológica de temor reverencial pelo poder de César, Lutero deixou uma trágica semente de obediência irrestrita na cultura política germânica, com tristes consequências em toda a Europa.

Viriato Soromenho Marques

Retirado do Facebook | Mural de Carlos Fino

https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/viriato-soromenho-marques/interior/o-paradoxo-politico-de-lutero-8886976.html

Citando Mil Ghent

Um dia, tudo acaba. Sem motivos e sem explicações. Como um namoro, uma aula, um contrato de aluguer. E, pouco depois, isso que acaba já não faz parte das conversas quotidianas. Entra no esquecimento. Porque outra coisa surgirá em seu lugar. Em cima de memórias e confusões que fizeram a soma de todas as horas. De todos os imprevistos. E os lamentos não valem a pena. Porque nada voltará atrás. Em frente, haverá outro dia, surgirão outros caminhos, que hão de trazer novas conversas às vidas. Novos momentos e novas maneiras de ver. Até que tudo acabe, outra vez.

Retirado do Facebook | Mural de Mil Ghent