Raul Luís Cunha | As posições dos comentadores militares sobre o conflito na Ucrânia

Aproveitando e copiando uma grande parte do notável texto, em resposta aos dislates do coronel DFA, pelo meu amigo MGen Carlos Branco (a quem pedi autorização para o efeito) e após introduzir as necessárias alterações para o referir à minha pessoa e acrescentar algo da minha lavra, especialmente o adjectivar que me é característico, produzi o artigo que se segue e que mais uma vez importa salientar – só foi possível graças ao extraordinário talento do meu Camarada:

“As posições dos comentadores militares sobre o conflito na Ucrânia podem ser, em termos genéricos, divididas em dois grupos, cujos fundamentos reflectem, curiosamente, as suas experiências profissionais. De um lado estão os que estiveram na guerra e, do outro, os que não estiveram (ter passado pela ex-Jugoslávia, quando já não havia guerra, ou mesmo no Afeganistão, mas sem sair do alojamento, não conta como guerra). As vivências pessoais parecem afectar o modo como se percepcionam os acontecimentos. Se é que é possível enquadrar a posição dos indefectíveis apologistas do Zelensky, ela é mais característica do segundo grupo.

É infantil reduzir o presente conflito ucraniano a uma conveniente fórmula maniqueísta e despojá-lo da complexidade que ele encerra. Os bons contra os maus; de um lado, os invadidos, do outro, os invasores. Será, talvez, uma mensagem forte para efeitos de Comunicação Estratégica, porque é simples e fácil de ser apreendida, mas não é útil para ajudar a compreender um conflito complexo.

A escola neorrealista das relações internacionais explica com muita clareza o que move os Estados na cena internacional. John Mearsheimer, professor universitário nos EUA e uma das figuras proeminentes do neorrealismo ofensivo, num artigo na Foreign Affairs, em 2014, não ilibava os EUA e os seus aliados europeus da partilha de responsabilidade pela crise na Ucrânia. Foi precisamente com base nesse artigo que, no decurso do meu doutoramento, apresentei um trabalho sobre as relações Ucrânia – Rússia (disponível em academia.edu), seguindo a mesma linha de pensamento. Não venham agora os zelenkistas, acusar o Prof. Mearsheimer de ser um agente do Kremlin e um perigoso antiamericano. O que se passa é que, ao contrário de muitos dos académicos portugueses, muitos dos americanos não se “venderam” ao sistema.

É lógico que as partes envolvidas – EUA e Rússia – montem as suas campanhas de Comunicação Estratégica, que definam as suas agendas de temas e mensagens. Estranho seria se não o fizessem. Mas isso não obriga ninguém a alinhar nelas. Compreendo as demonizações que cada campo faz do adversário. Desde o início do conflito (e com isto não estou a dizer que do outro lado não há centrais de desinformação), as centrais de propaganda ocidentais construíram com entusiasmo a imagem de um “heroico cavaleiro ucraniano” que derrota facilmente inúmeras hordas asiáticas e vai assim “salvar a Europa” (?) e, em última análise, a humanidade e a Ordem baseada em regras. Será esta a única leitura dos acontecimentos? A verdade única? Será razoável reduzir esta guerra a uma luta do bem contra o mal?

Ora um tema desta importância não pode ser discutido com base na emoção e na troca de injúrias e acusações maldosas, mas sim na razão. É naturalmente legítimo que cada um defenda o campo que corresponda às suas verdades, às suas crenças e aos seus preconceitos, mas não é aceitável que essas divergências sejam reforçadas com falsidades e invencionices recheadas de injúrias e impropérios sobre a outra parte.

Cada um acredita naquilo que lhe parece mais adequado. Há quem acredite, e não são poucos, que a Rússia já não tem munições, que os soldados russos são frouxos e fogem mal avistam os “heroicos cavaleiros ucranianos”, que aprenderam a manejar as armas na Wikipédia, que foi preciso o Shoigu ser Ministro da Defesa para os soldados terem meias, que o Putin tem cancros, que Gerasimov foi morto (os russos fizeram o mesmo relativamente a Zhaluzhny e Budanov), que os russos vão explodir a central nuclear de Zaporizhzhia com minas antipessoal, que os frigoríficos na Rússia foram desmanchados a fim de lhes serem retirados os chips para o fabrico dos seus mísseis (esta pérola foi verbalizada por Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia), etc. Podem consolar-se com as lucubrações que quiserem, mas depois não venham regurgitar que a verdade é a primeira vítima da guerra.

É especialmente deprimente assistirmos ao logro em que caíram as elites europeias, vítimas da sua própria propaganda, propaganda essa na qual acreditam sem pestanejar, sem capacidade crítica e sempre predispostos a engolir o que lhes vendem. Mas o que é verdadeiramente chocante é a sua disponibilidade para abraçar acefalamente a desinformação mais básica e rudimentar que lhes é colocada à frente. Deixou de ser necessário refinar a mensagem – seja o que for dito, por mais inverosímil que seja, é aceite sem reservas. E isto é aplicável, naturalmente, a todas as partes envolvidas.

Particularmente perigoso é o que se passa com a Academia, a Comunicação Social e segmentos importantes da elite política que não param para pensar e que reproduzem sem pudor, sem filtros e sem refletir, tudo o que lhes é posto à frente; ou então, fazem-no porque sabem que assim garantem a continuidade das alvíssaras e prebendas que o “colinho” proporciona. O diretor do pasquim “Observador”, entrincheirado num dos campos, apelidou de idiotas úteis quem não comprava a sua versão “linear e transparente” dos acontecimentos. Parece que afinal o grupo dos idiotas úteis é outro, em que ele naturalmente se insere. No início da guerra em 2014, ainda houve quem dissesse umas coisas acertadas, antes de passarmos a ser intoxicados pelo funcionamento a todo o vapor da máquina trituradora da propaganda. Até o truão José Milhazes disse umas coisas óbvias. Mas depois impôs-se a disciplina. Fez-se tábua rasa dos temas inconvenientes (corrupção, nazismo, satanismo, tráfico de crianças, drogas e armas, etc.), que foram sendo progressivamente substituídos por outros menos “ácidos”. Limpou-se a história.

Particularmente grave, foi ter-se convencido a grande maioria das pessoas que era possível fazer recuar a Rússia, uma potência nuclear, recorrendo aos ucranianos. Não acreditar nisso não é ser putinista, é ser realista; sobretudo para quem, por motivos profissionais, teve de conhecer e lidar, o melhor que foi possível, com oficiais russos e ucranianos que então comandava e, depois, para efeitos académicos, pesquisar e estudar aprofundadamente o conflito e as suas envolventes, e, portanto, sabe alguma coisa do que está a descrever. É fácil e é barato apelidar quem tem posições antagónicas de antiocidentais ou antiamericanos, sem se justificar exatamente as razões subjacentes, seguindo assim os métodos nazis de catalogação dos divergentes. Por muito que lhes custe, temos de facto a noção que os EUA não são no seu todo como os liberais intervencionistas que fomentaram os acontecimentos de 2014, durante a Administração Obama, ou como a presente Administração norte-americana que nos conduziu à miserável situação em que agora nos encontramos.

Desejos e preferências à parte, o que o Ocidente precisa de entender com sobriedade é uma simples e dura realidade: a Rússia tem o maior arsenal nuclear do mundo, tem o seu complexo militar-industrial a funcionar sem restrições e a 200%, garantiu poderosos e firmes apoios políticos e não vai ser possível expulsá-la pela força dos territórios ocupados. Isto não é defender os pontos de vista do Kremlin. É, mais uma vez, ser realista. Os crentes nos sonhos irrealizáveis podem vociferar, esbracejar e espernear, mas isso não os vai livrar de serem confrontados com a realidade.

Tudo isto é “demasiado andamento” para os indefectíveis do sr. Zelensky, pois como só no dia 24/02/2022 “acordaram” para este conflito, são incapazes de perceber a complexidade das realidades que lhe estão associadas. Para essa malta, o deixar de confundir o neorrealismo com o putinismo, seja lá o que isto for, é um exercício muito complicado. Não será possível compreenderem o que se pretende esclarecer, pela simples razão de não lhes ser possível considerar a informação de uma forma neutral. As suas avaliações são sempre condicionadas por um filtro cognitivo que lhes atribui o significado em função de conclusões que, para eles, já estão pré-formuladas. Por isso, não será exagerado afirmar que esta gente vive numa realidade virtual em que quem não concorda com eles, ou é antiocidental, ou é putinista, ou é comuna, conseguindo assim no seu imaginário uma perfeita quadratura do círculo.

Discutir com ignorantes acaba sempre mal, e por isso mesmo já deixei de responder a comentários provocatórios sobre os meus artigos aqui no FB (simplesmente oblitero os engraçadinhos) e só dou resposta àqueles que, mesmo contrariando as minhas teses, são provenientes de amizades de longa data que quero preservar. Como dizia um famoso (de bem merecida fama) tenente-coronel no Regimento de Comandos e com razão: “Vocês nunca tentem ensinar um porco a cantar. O porco não aprende, vocês ficam roucos, e no fim o porco nem sequer vos agradece.”

Retirado do Facebook | Mural de Raul Luis Cunha

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