E o terramoto habitacional ainda vai no adro | Francisco Louçã, in Expresso

Um dos aspetos interessantes da evolução do discurso político é a franqueza com que alguns interesses sociais são hoje enunciados. É um novo padrão: em vez da universalidade, mesmo que camuflando uma divisão (“os portugueses de bem”), notam-se agora deslizes para estratégias do pionés. Veja-se o exemplo dos liberais: o seu pionés são os donos do Alojamento Local, a quem prometem mais dinheiro. O do governo é mais vasto: quer uma subida prolongada do preço da habitação, para seduzir este setor dos empresários do AL, de promotores imobiliários e de construtores de luxo e beneficiar o turismo, que entende ser o destino de Portugal. O resultado é um terramoto habitacional e o debate recente sobre uma medida – a proibição de compra de casa por não-residentes que não sejam emigrantes – faz luz sobre o assunto.

Se o mercado existisse, funcionaria?

Questão semântica, pois os preços da habitação não são determinados pela oferta e procura. Prova: subindo os juros e o custo da casa para o comprador, a procura diminuiu; segundo os recentes dados do INE sobre o primeiro trimestre do ano, reduziu-se em 20,8% em termos homólogos (ou 10,5% em cadeia); e se a procura desce, o preço deveria descer. O problema é que o preço continuou a subir (mais 8,7%).

 A razão para o preço subir quando há menos procura é simplesmente que isto não é um mercado como o dos livros. O preço é arrastado por um segmento da procura, que nunca se contrai e que, aliás, é protegido: os compradores estrangeiros ricos, ou os fundos globais de investimento, que compram barato o que para nós é caro. Em junho, a mediana nacional do preço da habitação vendida nos doze meses anteriores era de 1477 euros por metro quadrado e a vendida aos estrangeiros era 54% mais cara. Em julho, a diferença na Área Metropolitana de Lisboa era de cerca de 70% e em alguns concelhos do Algarve a procura por estrangeiros era 90% do total.

 O diretor do Expresso resumiu isto assim: “O excesso de turismo e assente na oferta de Alojamento Local de forma descontrolada; uma estratégia de vistos gold que, ao permitir o acesso a um passaporte português em troca de €500 mil gastos na compra de um imóvel, fez disparar os preços e condicionou a construção de nova habitação; uma política fiscal discricionária e porventura inconstitucional, que permite a estrangeiros com rendimentos pagarem uma taxa de imposto à qual os portugueses só têm acesso se tiverem salários muito baixos, e a falta de uma política nacional e municipal de construção inteligente que não promova apenas a construção de casas de luxo. Estas são as causas principais do inferno atual que as famílias portuguesas vivem”. Ou seja, a política atual é o inferno e, se a solução fosse o milagre de mais oferta privada, seria fácil perceber o que iria ser construído, casas de luxo para norte-americanos ricos. Não há mercado, mas há lei do lucro.

E entra a xenofobia

A proibição da compra por estrangeiros não residentes foi proposta pelo liberalérrimo governo canadiano e aplica-se na europeíssima Dinamarca com governos de direita e de centro. No entanto, explodiu aqui a acusação de que seria uma maldade xenófoba. O problema é que o problema chega a muita gente e obriga a pensar fora da facilidade ideológica, pelo que surgiram dois contra-argumentos a essa condenação, a urgência e a comunidade. À esquerda, Carmo Afonso apontou que somos obrigados a “discutir a possibilidade de restringir o direito de propriedade numa situação de emergência. Há milhares de pessoas que não conseguem arrendar casa e ainda menos comprar uma. Há outras tantas que não estão a conseguir pagar as prestações dos empréstimos. Uma geração inteira, à exceção daqueles que tiveram ajuda familiar, está excluída do sonho de ter uma casa digna para viver”. Um homem de direita, Henrique Raposo, juntou-se-lhe: “Para mim, no actual contexto, faz-me de facto muita impressão que um estrangeiro rico possa comprar uma casa em Portugal para não usar, só para usar de vez em quando, ou para viver em Portugal como se estivesse num gueto de ricos sem contato orgânico com a sociedade”. Aguiar-Conraria, também no Expresso, lembrou o óbvio,  que “os direitos de quem reside em Portugal não são os mesmos de quem não reside. Um exemplo (e podia dar milhares): o ensino universitário para um chinês, não residente, que estude em Portugal não é subsidiado pelo Estado. (…) Regras diferenciadas para estrangeiros não residentes são a regra e não a exceção”. Não concordando com a proposta, tanto por achar que exige demasiada intervenção pública e pode baixar demasiado o preço da habitação, o economista afirma, no entanto, que “esta proposta, ao contrário de várias do plano Mais Habitação, tem o mérito de ter lógica. Se queremos que um preço baixe, ou promovemos um aumento da oferta ou uma redução da procura. Ninguém vai inventar a roda”.

 De facto, a acusação de xenofobia é somente um testemunho de desespero argumentativo. Quem quer manter os Vistos Gold, os benefícios fiscais a estrangeiros e outras promoções do imobiliário de luxo está a arruinar gerações no nosso país, e percebe-se que queira fugir da questão atacando moinhos de vento, para proteger uma clientela que despreza o mal que o bloqueio habitacional nos provoca. É uma razão para que as ruas de Portugal lembrem que somos um país e não um resort.

(no Expresso)

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