António Galopim de Carvalho, 5 Fevereiro 2024

Estimados amigos

Vou ter de ser submetido a uma cirurgia cardíaca, de algum risco, tendo em conta a minha idade, a caminho dos 93. Tenho estado a perder qualidade de vida a um ritmo acelerado e tenho mesmo de a fazer. Será já amanhã, dia 5. Se tudo correr bem, como espero, voltaremos a encontrar-nos no próximo dia 9.

Preciso de ultrapassar esta barreira, pois tenho projectos em curso, muito trabalho pela frente e sei que ainda sou útil a muita gente. Estou perfeitamente consciente da situação, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo. 

Estou a torcer para que tudo corra bem. Com toda a naturalidade e sem sentimentalismos, quero dizer que, se assim não for, fica aqui o meu abraço de gratidão pela amizade que me haveis dispensado nestes quase nove anos de frutuosa convivência, durante a qual aprendi imenso, e acrescentar o quão bom e importante foi para mim esta experiência.

Como em tudo na vida, mas, nomeadamente, no ensino e na divulgação científica, dois mundos onde me movimentei, considero o afecto o factor fundamental e decisivo no aproveitamento escolar e na valorização pessoal.

Como professor de Geologia, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que fui durante quatro décadas pude confirmar que a relação de afecto entre o aluno e o professor constitui uma componente fundamental para o sucesso escolar. Como divulgador de conhecimento que também fui durante esse mesmo período mais os vinte e três anos que se seguiram à jubilação, diz quem me ouve ou lê nos meus livros ou nos textos que publico nas redes sociais, que as minhas palavras tocam a afectividade e que, muitas vezes, têm sabor de poemas. E eu sei que é verdade, posto que, ainda hoje, as minhas madrugadas são trocas de afectos com muitos dos meus cerca de 34 000 leitores no Facebook. Quem me conhece sabe que sou solidário, frontal e transparente, leal, humilde, no sentido de despretensioso, lutador persistente nas causas cívicas que abracei, prazeroso e afecivo.

Para António Damásio, professor da Universidade do Sul da Califórnia e autor do livro “Sentir & Saber – A Caminho da Consciência”, (2020), o fundamental é alicerçar o raciocínio puro no que é fisiológico, naquilo que é a vida, naquilo que é o corpo. Não se pode tentar entender a mente humana, ou seja, o intelecto, sem aí incluir o papel da fisiologia, e a expressão dessa fisiologia nos sentimentos. Diz, ainda este prestigiado neurologista que “as capacidades afectivas são fundamentais porque são as primeiras”. E acrescenta, dizendo que “é sobre as capacidades afectivas que se vão colocar as capacidades cognitivas”.

Para ele e em suma: “aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afecto. níveis”.

Estas sábias palavras de quem há, décadas, estuda a anatomia do cérebro e a sua relação com os fenómenos da consciência, vêm ao encontro de uma convicção muito enraizada em mim e que posso expressar, servindo-me, em parte, das suas palavras, dizendo que aquilo que foi e ainda é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com a mistura do que é afectivo com a racionalidade do trabalho. Damásio deu-me, pois, a imensa alegria de confirmar esta muito minha convicção

Tenho plena consciência de que todos os êxitos no muito trabalho que desenvolvi, para além do empenho e da persistência que neles coloquei, foram ditados, também, pela afectividade que sempre caracterizaram o meu relacionamento com as pessoas, quaisquer que sejam as suas posições no tecido social, dos Presidentes da República ao mais humilde dos cidadãos, dos ministros aos contínuos dos ministérios, dos patrões aos assalariados, dos generais e almirantes aos soldados e marinheiros.

Nas árduas e prolongadas lutas que travei pela salvaguarda do nosso património geológico e paleontológico, tive oportunidade de me relacionar intensamente com a comunicação social escrita, falada e televisionada. Nesse relacionamento fiz tantos apoiantes e amigos quantos os media com quem privei e continuo a privar, em número de muitas dezenas, entre os prestigiados e influentes seniors e os mais simples e apagados estagiários que, com o passar dos anos, se fizeram respeitados profissionais. 

Ver o meu nome, na edição de 22.06.1999, do Expresso, na lista de personalidades tão ilustres, como Abel Salazar, António Damásio, Egas Moniz, Gago Coutinho, Gentil Martins, Miguel Bombarda, Odete Ferreira, Orlando Ribeiro, Pulido Valente, Queirós de Melo, Ricardo Jorge e Rómulo de Carvalho, tendo ficado de fora desta lista um sem número de cidadãos bem mais merecedores de nela figurarem, tenho de concluir que nesta escolha, pesou, de sobremaneira, o relacionamento de simpatia e afecto que sempre mantive com os profissionais de informação e, através deles, com o público.

Percorri os corredores do Poder e, sem nunca me afastar das causas que abracei e pelas quais me bati e bato e dei e dou a cara, fiz amigos e estabeleci relações de afectividade com alguns Presidentes e Ministros e, o que sempre foi muito importante, com os chefes de gabinete e com as respectivas senhoras secretárias.

Quando, em 1997, o Presidente Jorge Sampaio me incluiu, como representante da comunidade científica, na comitiva que o acompanhou na sua viagem de Estado ao Brasil, foi certamente a proximidade afectiva estabelecida entre nós que determinou a sua escolha, deixando de fora muitos outros bem mais categorizados do que eu.

No universo da Assembleia da República, onde entrei por duas vezes, no decurso das lutas cívicas que travei, independentemente das filiações partidárias, dos Presidentes aos líderes e deputados das diferentes bancadas de todos os partidos, a afectividade foi uma constante a agilizar projectos e situações. 

Tem sido assim nas muitas Câmaras Municipais, à margem das respectivas cores políticas, com as quais iniciei e tenho mantido estreita cooperação, sempre a título gracioso, nunca remunerado (pro bono), condição essencial que sempre garantiu e garante a minha não dependência desse outro poder e me não inibe de exercer livremente o meu juízo crítico e de procurar levar a bom termo os projectos em que me tenho envolvido. 

Criar pontes de afecto com presidentes ou directores e funcionários, dos mais categorizados aos mais humildes, nas muitas instituições públicas e privadas com as quais tive de me relacionar, profissionalmente ou apenas como cidadão, agilizou grandemente todo o trabalho que desenvolvi numa fase da minha vida em que estive ligado ao Museu Nacional de História Natural. Devo dizer, em abono da verdade, que sem o suporte institucional deste museu e sem o apoio de alguns dos seus funcionários (meus muito amigos) eu não teria tido nem a voz nem a visibilidade que os “media” me deram. Nas duas décadas em que tive responsabilidades, neste Museu, de que fui director, beneficiei, da muita estima e do afecto dos quatro reitores que nos tutelaram nesses anos, nomeadamente os Profs. Rosado Fernandes, Meira Soares, Barata Moura e Sampaio da Nóvoa.

Na Faculdade de Ciências, onde exerci a docência entre 1961 e 2001, ano em que me jubilei, a vida correu-me bem. Pode dizer-se que tive uma carreira sem dificuldades de maior, que me permitiu viver em paz comigo, com os colegas e com a instituição, num ambiente de grande afectividade e simpatia. Na Faculdade de Letras, onde assegurei a regência de Geografia Física, entre 1965 e 1981, tudo se passou da mesma maneira. Foi prova deste viver a presença de mais de mais de 800 pessoas, entre amigos, colegas, alunos e ex-alunos, à minha última lição, “Geologia e Cidadania”, em 30 de Maio de 2001, no grande auditório da Faculdade. Foi, em especial, a afectividade que determinou a presença de tão numerosa assistência, nunca vista, com destaque para o general Ramalho Eanes e sua esposa, o Ministro da Ciência e Ensino Superior, Prof. Mariano Gago, o Presidente da ex-JNICT (hoje FCT), Prof. Ramôa Ribeiro, o Reitor da Universidade, Prof. José Barata Moura, o Vice-Reitor, Prof. David Ferreira e o Director da Faculdade, Prof. Pinto Paixão.

É verdade que, praticamente, tudo o que experimentei a fazer ou fiz, foi feito com amor, algumas vezes com paixão. Foi assim em criança, em que, brincando, fui aprendiz atento de muitas artes. Como estudante, só fui bom aluno com os professores com quem estabeleci relações de afecto. Com os outros fui sofrível ou, mesmo, mau.

António Galopim de Carvalho, 5 Fevereiro 2024

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