“Como gosto, meu amor, de chegar antes de ti para te ver chegar”: Nuno Júdice 1949-2024 | in CNN Portugal

Esta imagem tem um texto alternativo em branco, o nome da imagem é AASbg6e.img

Nuno Júdice, um dos maiores nomes da poesia contemporânea nacional, morreu este domingo aos 74 anos. Deixamos aqui cinco poemas sobre o amor, a vida e a morte para o conhecer melhor. Só um pouquinho melhor. Portanto: podíamos saber um pouco mais acerca de Nuno Júdice. Mas não seria isso que nos impediria de ir comprar mais logo os livros dele.

Princípios

Podíamos saber um pouco mais

da morte. Mas não seria isso que nos faria

ter vontade de morrer mais

depressa.

Podíamos saber um pouco mais

da vida. Talvez não precisássemos de viver

tanto, quando só o que é preciso é saber

que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais

do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar

de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou

amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada

sabemos do amor.

A Vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua

mais que perfeita imprecisão, os dias que contam

quando não se espera, o atraso na preocupação

dos teus olhos, e as nuvens que caíram

mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações

a abrir-se para dentro e para fora

dos sentidos que nada têm a ver com círculos,

quadrados, rectângulos, nas linhas

rectas e paralelas que se cruzam com as

linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,

a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram

e dos encontros que sempre se soube que

se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com

quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo

o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,

sob a luz indecisa que apenas mostra

as paredes nuas, de manchas húmidas

no gesso da memória;

a vida feita dos seus

corpos obscuros e das suas palavras

próximas.

Nunca são as coisas mais simples

Nunca são as coisas mais simples que aparecem

quando as esperamos. O que é mais simples,

como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se

encontra no curso previsível da vida. Porém, se

nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos

nos empurrou para fora do caminho habitual,

então as coisas são outras. Nada do que se espera

transforma o que somos se não for isso:

um desvio no olhar; ou a mão que se demora

no teu ombro, forçando uma aproximação

dos lábios.

Até ao fim

Mas é assim o poema: construído devagar,

palavra a palavra, e mesmo verso a verso,

até ao fim. O que não sei é

como acabá-lo; ou, até, se

o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:

puxo o teu corpo

para o meio dele, deito-o na cama

da estrofe, dispo-o de frases

e de adjectivos até te ver,

tu,

o mais nu dos pronomes. Ficamos

assim. Para trás, palavras e versos,

e tudo o que

não é preciso dizer:

eu e tu, chamando o amor

para que o poema acabe.

É Isto o Amor

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que

me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a

manhã da minha noite. É verdade que te podia

dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas

não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos

apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me

a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,

até sermos um apenas no amor que nos une,

contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:

ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua

voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo

esse que mal corria quando por ele passámos,

subindo a margem em que descobri o sentido

de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo

que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,

de chegar antes de ti para te ver chegar: com

a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água

fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:

a primavera luminosa da minha expectativa,

a mais certa certeza de que gosto de ti, como

gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.