Poesia | Carlos Drummond de Andrade, “Procura-se apartamento”

Procura-se apartamento

pequeno, bem situado,

onde caibam dois amantes

de frente como de lado.

Quer-se bem perto do mar

e bem longe do barulho,

de modo que a única música

ouvida seja a de Bach,

de Corrette, de Bomporti,

com seus preciosos discos

arrumados de tal sorte

que inda caibam uns livros

de poesia, é claro,

e também (toda uma estante)

os tratados de Epicuro,

Descartes, Spinoza, Kant.

A mesa-de-cabeceira

deve ficar a seu cômodo

para que nenhuma aresta

machuque o amor na testa.

E a cama, sem ser estreita,

nem larga como avenida,

tenha espaço suficiente

para as doçuras da vida.

Caibam na pequena copa

a bandeja, o biscoitinho,

hoje guardados no armário

dos alvos lençóis de linho,

bem como aquelas garrafas

do escocês nacional

que a gente, faute de mieux,

ingere e não nos faz mal.

Procura-se apartamento

de quarto-e-sala (tão pouco

e tão muito), sem barata,

sem mosquito rezinguento,

sem vizinhos enervantes

que gritem palavras sujas,

sem terríveis, sem constantes

cortes d’água quando as nuas

formas já ensaboadas

se restauravam, cuidando

de logo após se enroscarem

nas formas do amor, amando.

Quem souber de tal imóvel

não fique imóvel: na asa

do vento me informe onde,

onde é que fica essa casa!

Carlos Drummond de Andrade

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