Crónica | Luís Galego

Retirado do Facebook | Mural de Rosário Mendes

Há dias em que, confesso, me sinto profundamente tocado pela súbita e quase mística veneração que alguns compatriotas demonstram pela língua portuguesa e pela nossa mui excelsa cultura nacional. Comove-me, de verdade. É um amor novo, mas já maduro, como um vinho comprado ontem e aberto ontem, mas servido com a solenidade de um Porto de 1875. Enternece-me, e uso aqui o verbo no seu sentido mais trágico-cómico, esta ideia tão difundida entre as mentes mais vigilantes da lusofonia de que qualquer estrangeiro que deseje respirar o ar da nossa Pátria, com “P” maiúsculo e a voz embargada por uma lágrima de chouriço, deve, no mínimo, dominar com fluência o uso das mesóclises, reconhecer intuitivamente um pretérito mais-que-perfeito, citar com desenvoltura exemplos de “Os Lusíadas” e ter lido a gramática de Lindley Cintra como quem medita sobre um texto sagrado. Deve, claro está, também distinguir, à primeira audição, uma guitarra de Coimbra de uma de Lisboa, sob pena de exílio linguístico.

O contrário, dizem-me olhos nos olhos, com a gravidade de quem lê os rótulos do vinho como se fossem o “Livro do Desassossego”, seria um atentado à identidade nacional. Um crime contra o património. Um ultraje ao bacalhau com grão e à memória do infante D. Henrique.

A exigência é, convenhamos, de uma coerência comovente. Afinal, como todos sabemos, porque aprendemos isto ainda no útero materno, entre os murmúrios da avó e os ecos da RTP Memória, os nossos gloriosos emigrantes, quando se lançaram mundo fora, faziam-no sempre munidos de um grau de mestrado em Antropologia Comparada na algibeira, uma tese sobre Direito Suíço debaixo do braço e uma fluência no alemão que deixaria Goethe com vontade de aprender Mirandês.

Quem não se lembra do Tio Armando, que foi para o Luxemburgo em 1973 e, ao fim de três semanas, já recitava Hegel em luxemburguês antigo durante os jantares de família? Ou da prima Celeste, que emigrou para Toronto e foi imediatamente contratada pela Universidade de Ontário para leccionar Filosofia Existencial aos esquimós suburbanos? E o Zé Manuel, esse prodígio, que ao chegar a Paris nem perguntou onde ficava o metro, limitou-se a declamar Molière ao porteiro e, em trinta minutos, já era redactor do “Le Monde” e membro vitalício da “Académie Française”?

E não esqueçamos o clássico: o casal português que chega aos Estados Unidos e, na primeira semana, funda uma escola de Harvard alternativa, onde se ensina o pensamento de Eça em dialecto cajun, com apoio do Ministério da Cultura e do FBI.

Sim, sim. É disto que falamos quando dizemos que “lá fora, os nossos integram-se”. Porque o português, quando emigra, não vai à procura de trabalho. Vai à procura de sentido. E encontra-o entre Shakespeare, Kafka e a secção de frios do Lidl.

E há agora uma inquietação ainda mais nobre e urgente: não podemos continuar a permitir turmas de escolas públicas repletas de nomes estrangeiros. Onde já se viu? É um escândalo chegar a uma sala de aula em Setúbal e ouvir a professora chamar “Anastasiya, Mohamed, Iryna, Milan, Ayesha”. Uma vergonha. Um atentado à língua. Um risco para a segurança fonética nacional.

Claro que, quando falamos de estrangeiros, não estamos, evidentemente, a referir-nos aos meninos estrangeiros que frequentam colégios ingleses, franceses, italianos, suíços ou alemães. Muito menos àquela futura colega da vossa filha que irá frequentar o tal prestigiado colégio lisboeta, bilíngue e com atividades equestres, onde, em Setembro, entrará a filha dos Reis de Espanha. Esses não fazem mal. Esses não ameaçam. Esses até melhoram. Dizem “sorry” com sotaque aristocrático e não mexem no rancho. São filhos de um deus com passaporte diplomático.

Mas os outros. Os outros, esses oportunistas filhos de um deus menor, que vêm estudar, viver e trabalhar, que ousam ter filhos e nomes impronunciáveis, esses é que nos arruínam. Como se o problema do sistema educativo português estivesse no nome “Youssef” e não na aula de Matemática dada em contentores.

A ideia de substituir os trabalhadores nepaleses das estufas por portugueses é, a bem dizer, um regresso ao espírito sebastianista. Eles partem, nós ficamos à espera, e no dia em que os virmos regressar, montados não em cavalos brancos mas em tratores Massey Ferguson, com uma enxada numa mão e um manual de ética laboral na outra, saberemos que a Pátria foi enfim restaurada.

E sim, talvez seja altura de exigir que os nepaleses saiam, para que os nossos 2,3 milhões de emigrantes possam regressar, de preferência em fila indiana, com contrato assinado e chapéu de palha. E que o façam rápido, antes que se habituem demasiado ao modo de vida escandinavo e se esqueçam de como se conjugam os verbos defectivos.

Até lá, sigamos atentos. Corrijamos os erros de gramática dos imigrantes, mas jamais os nossos próprios, esses que são folclóricos e, por isso, imunes ao crivo da gramática. Exijamos-lhes respeito absoluto pela cultura portuguesa, mesmo que o nosso próprio contacto com ela se resuma à vez em que estivemos quase para ir ao Museu dos Coches, mas depois choveu. E, sobretudo, mantenhamos a certeza de que nós, lusos, somos e sempre fomos os mestres da integração. Dos outros, claro.

E termino com uma nota difícil. Também em mim saltou uma lágrima, não de comoção, mas de tristeza funda, quando ouvi, numa sessão da Assembleia da República, um deputado referir em voz alta nomes de crianças estrangeiras, não das tais dos colégios suíços ou das famílias de sangue azul, mas das outras, das que têm pais com turnos em estufas ou em refeitórios. Fê-lo com a naturalidade gélida de quem enumera um perigo. Sem hesitação. Sem contexto. Sem um traço de empatia. Nomes ditos como aviso, como se cada sílaba fosse um risco. E foi nesse instante que me pareceu que o país, mesmo em pleno hemiciclo, se esqueceu do que é uma infância. 

Luís Galego

One thought on “Crónica | Luís Galego

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.