O filme “Morte em Veneza” | por Victor Oliveira Mateus

O filme “Morte em Veneza”, que fez a minha geração embandeirar em arco, e que hoje é varrido para debaixo do tapete com aquele pudor hipócrita que a ignorância sempre traz. Esse filme é um magistral levantamento da dualidade ético-epistemológica que sempre tem lavrado na cultura ocidental.

W. K. C. Guthrie, na sua magistral História da Filosofia Grega em 6 volumes, não se coíbe em afirmar que o Pensamento Ocidental, ao longo dos séculos, não tem sido mais do que um confronto entre Platão e Aristóteles. Ou seja: entre o primado da Alma, do racional, com a subsequente subalternização dos sentidos ou, até mesmo, a sua recusa, e o encumear dos sentidos, com a respetiva secundarização do intelecto.

Este é o tema central do filme de Visconti, bem como do conto homónimo de Thomas Mann. Logo no início da película assistimos à estreia de uma Sinfonia de Aschenbach, que é, depois, incrivelmente pateada. No diálogo que se segue, um dos grandes amigos do maestro grita-lhe dizendo que o insucesso que ele acabara de experimentar era mais do que merecido, já que ele criara uma sinfonia puramente racional (geométrica?), de onde os sentidos tinham sido abolidos, isto é, Aschenbach desenvolvera a tese pitagórica (convém não esquecer que Kepler e Einstein não andaram muito longe de correspondências análogas!) da correspondência entre os números e as nota musicais, urge também referir, aliás, que em Platão o conhecimento matemático funcionava como uma mera propedêutica ao saber filosófico.

Esta relação matemática/ filosofia vigora ainda hoje em algumas Escolas filosóficas! O amigo de Aschenbach salta, então, para o piano e ataca uns acordes, continuando a gritar que a obra de arte, a Beleza, não pode ignorar os sentidos, as emoções.

Esta situação dilemática atravessou, e atravessa, toda a nossa cultura: na literatura podemos encontrá-la em Stefan Zweig (Confusão dos sentimentos), Hermann Hesse (Narciso e Goldmund), Julien Green (Terre Lointaine), etc. No entanto, este tema não aparece só na literatura assumidamente homoerótica ou, como é o caso no conto de Mann, naquela outra em que a heterossexualidade de uma personagem sofre um qualquer abanão (Veja-se o filme “Oito mulheres” de Ozon), podemos encontrar esta temática, por exemplo, no cinema: em “Para além das Nuvens” de Antonioni, vemos que Kim Rossi Stuart sofrendo de uma paixão avassaladora por Chiara Caselli, depois de muito peregrinar e quando se encontrou, finalmente, a sós com ela num quarto, não deixou que a sua mão tocasse o corpo nu da amada (que o conspurcasse?): a mão aproxima-se e, a uns 3/4 centímetros da pele daquela porque tanto ansiara, a dita mão recolhe-se, e Rossi Stuart abandona o quarto abruptamente, fugindo rua afora.

Esta recusa do corpo é exatamente a mesma que esteve na base da surpresa de Alcibíades, que, segundo os historiadores, era extremamente belo e nada – mulher ou homem – lhe escapava, mas que “agora” não entendia como é que aquele velho feio e imundo (Sócrates) tinha dormido a seu lado e nem sequer lhe tocara (Cf. final do “Banquete”).

Esta linha de raciocínio e comportamental podemos encontrá-la ainda hoje, passando por obras como, por exemplo, “Estudios sobre el amor” de Ortega y Gasset. Se por um lado temos todos estes quadros mentais, por outro acena-nos Aristóteles com o seu privilegiar dos sentidos, embora depois, reconheçamos, os ideais de Felicidade e de AMIZADE (tão necessária àquela!) já não tenham nada a ver com o sensorial.

Esta tentativa de vivenciar o aristotelismo no quotidiano foi sempre marcada por um certo insucesso, e nem a afirmação de Averróis de que a alma era mortal e que, de facto, havia um intelecto, mas que este era uno e partilhado por toda a espécie… nem sequer esse averroísmo latino conseguiu singrar, que o digam Sigério de Brabante exilado na corte papal e depois estranhamente assassinado, bem como um Boécio incansavelmente perseguido.

Aristóteles – e o averroísmo latino – passaram a vigorar, sim, mas através da leitura de Tomás de Aquino. Os sentidos contavam, mas vigiados pela razão!

Claro que encontramos grandes exceções: Sade, Condillac… e contemporaneamente Miller, Genet e Tony Duvert, mas tudo isso não passa de exceção (Duvert, que tem um livro em português traduzido pela Luiza Neto Jorge, não encontra hoje, em França, quem o publique!).

É com este dilema que Aschenbach, e após a morte da filha, parte para Veneza, para o Lido. Aí, nessa solidão procurada, o Destino coloca-o à prova! O tal corpo belo, que Platão, no Fedro, afirma só servir de ponto de partida e deve ser imediatamente afastado, o tal corpo belo atenaza-lhe diariamente “o coração”. Coração esse que o matará!

Repare-se em toda a simbologia! É confrangedora a cena em que Aschenbach, no barbeiro, tenta o “alindar do corpo”. Não restam dúvidas que a atração do maestro é correspondida, mas não restam também dúvidas que ela, para permanecer, deve ser irrealizável e com a distância de permeio.: o Absoluto, onde o amor (incorpóreo) fusional se pode concretizar só é passível de ser encontrado no para-lá-do-aqui, por isso no final do filme Tadzio levanta o braço e aponta o horizonte.

Será interessante incorporar aqui algumas leituras como, por exemplo, os místicos do século XVI: quem ler “Os caminhos da Perfeição” de Teresa d’Ávila e “A subida ao Carmelo” de S. João da Cruz verá que não se está assim tão longe de Mann, de Visconti e do “Morte em Veneza”.

Notas

a) quando refiro obras que privilegiam os sentidos não refiro certos pseudo-decadentismos que andam por aí, pois as caricaturas não são a minha especialidade, isto caso eu tenha alguma;

b) não referi propositadamente o “Teorema” de Pasolini, e outros trabalhos dele, pois em breve sairá um artigo meu sobre o tema nesse autor;

c) convém não esquecer também, no filme, as interpretações de Silvana Mangano e de Marisa Berenson

d) quanto a Tony Duvert, a primeiro livro que li dele, era eu menino e moço, e andava com a cunhada do Ricardo Pais pela feira do livro de Madrid, quando comprei o “Diario de un inocente”: ia tendo um enfarte.