Trump, o clarificador, por Viriato Soromenho-Marques, in DN, 17-01-2024

As palavras de Trump sobre uma eventual expansão dos EUA, por compra ou imposição, para o Canadá, Gronelândia e Panamá, causaram sobressalto na UE. A maioria dos analistas europeus de geopolítica assemelha-se àqueles estudantes de Medicina que não suportam a visão de sangue…

Não há impérios benignos. Trump não rompe com a vontade de hegemonia norte-americana, antes lhe pretende determinar um novo e não menos arriscado caminho. Assume o saldo desastroso de quase três décadas de deriva intervencionista de Washington, sob o mito de um “mundo regido por regras” (impostas pelos EUA, sem a elas se sujeitarem). Um caminho que colocou os EUA num distante segundo lugar como potência industrial, provocando um imenso caudal de guerras e sofrimentos que nos trouxeram à beira da III Guerra Mundial.

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No labirinto do “governo invisível”, por Viriato Soromenho-Marques, 21-12-2024, in DN

O resto foi explicado por Hannah Arendt, num artigo de 1967, “Verdade e Política”: os interesses instalados criaram uma indústria de “mentira organizada”.

O turbilhão de acontecimentos que atinge a Europa é deliberadamente ilegível, tal a intensidade de narrativas fabricadas, encarniçadas contra a debilidade da verdade material. Querer substituir a dureza dos factos pelas opiniões convenientes, é receita certa para o desastre. Tentemos, pelo menos, entender o essencial.

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Mãos ao alto pelo Natal (parte de uma quadra inventada), por João Oliveira, 21-12-2024, in DN

Convencera o filho de que a vida seria melhor. Mudariam de país e deixariam tudo o que conheciam, mas teriam uma vida nova que lhes daria aquilo que, de outra forma, seria impossível ter.
Revelou-se mais difícil do que pensava. Trabalhava sem descanso e tentava enxertar no horário o tratamento da burocracia que ainda restava por resolver. Pensava no filho, nas promessas que lhe fizera e na alegria que lhe via agora nos olhos. Lá continuava a insistir em organizar a vida.

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Soares e o novo rapto da Europa, por Viriato Soromenho-Marques, in DN, 08-12-2024

Imagino muitas vezes o que Mário Soares pensaria sobre este tempo que nos é dado viver, aparentemente contrário a toda a esperança. Um século depois do seu nascimento, reaprendemos como todas as vidas são incompletas, pois finita é a condição humana, mesmo quando o sonho é grandioso.

Tive oportunidade de testemunhar, o modo como o seu caráter se manteve intacto, apesar da metamorfose do mundo decorrer na direção oposta ao que ele, como socialista e estadista, sempre desejou. Soares possuía as três qualidades fundamentais que Max Weber identificava na vocação política: “paixão, sentido da responsabilidade e capacidade de avaliação”. Mas a dominante era a primeira, a paixão, essa força singular de, mesmo mergulhado em perigosa incerteza, soltar aquele “no entanto!”, começando logo a antecipar uma possibilidade de mudança positiva, em sinais, para os outros, quase invisíveis.

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A última batalha pela paz de George F. Kennan, por Viriato Soromenho-Marques, em 30-11-2024

Estamos a viver no perigoso tempo, antecipado como alerta pela inteligência de Kennan. Que poderemos fazer?

A escalada para o abismo em que nos encontramos foi antecipada e combatida por George F. Kennan (1904-2005) há 30 anos. Ele foi o príncipe da diplomacia dos EUA. Culto e poliglota – dominava o alemão, o russo e o português, entre muitas outras línguas -, distinguiu-se por ter lançado as bases da política de Washington face à URSS, no pós-guerra.

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A lição de Eça sobre a América, por Viriato Soromenho-Marques, 09-11-2024, in DN

Em 1866 fundeava no Tejo o couraçado de duas torres blindadas USS Miantonomah, comandado pelo almirante John Colt Beaumont. A sua missão era a de levar uma mensagem de saudações do presidente Andrew Johnson ao czar Alexandre II. No ano seguinte, os EUA comprariam à Rússia o vasto território do Alasca pela módica quantia de 7,2 milhões de dólares.

Este acontecimento inspirou ao jovem Eça de Queiroz a escrita de um breve artigo, tendo o nome do navio como título, publicado na Gazeta de Portugal, em 2 de dezembro desse ano. São de Eça algumas das mais profundas meditações sobre a América efetuadas em língua portuguesa. Elas foram, para mim, uma espécie de boia salva-vidas na corrente impetuosa de disparates que submergiram os canais televisivos na noite eleitoral da esmagadora vitória de Trump nas eleições norte-americanas.

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O futuro seria uma boa ideia, por Viriato Soromenho-Marques, in DN, 03-11-2024

O desfecho das eleições nos EUA não irá alterar a colisão das nações do Atlântico Norte com a dureza do destino esculpido pelos seus próprios erros. Em 30 anos, Washington protagonizou todos os pesadelos que as suas maiores figuras históricas consideravam fundamental evitar. Contra os autores de O Federalista (1788) – um dos 10 livros obrigatórios de filosofia política do Ocidente -, a categoria republicana da representação parlamentar, que deveria ser preenchida por um escol, eleito na base da honra e do intelecto, está hoje entregue a gente que faz do Congresso um lugar onde as leis são compradas e vendidas (John Rawls dixit).

Contra F. D. Roosevelt (presidente entre 1933 e 1945), voz infatigável a favor da justiça económica e social como escudo contra o risco de fascismo (que ele temia em caso de regresso à concentração capitalista anterior ao crash de 1929), hoje, nos EUA campeia uma plutocracia obscena que tudo controla, desde a comunicação social ao sistema político, incluindo as eleições (veja-se como Kamala e Trump se encostam ao apoio dos bilionários).

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Vamos financiar a russofobia no OE de 2025?, por Viriato Soromenho-Marques, in DN 28-9-24

A União Europeia (UE) não cessa de mostrar sintomas da sua doença incurável. Não só as instituições existentes constituem uma imitação descolorida de um federalismo de contrafação, sem constituição, nem cidadania europeia, como os titulares das mesmas não revelam nem a formação, nem o talento ou a vontade de aprender indispensáveis para o razoável desempenho dos cargos.

Numa altura em que a guerra na Ucrânia parece hesitar entre uma solução coreana – fim das hostilidades nas linhas atuais do campo de batalha, deixando tratado de paz para o futuro -, ou um enfrentamento direto NATO-Rússia, capaz de incendiar grande parte do mundo, o Parlamento Europeu (PE) escolheu esta última opção, ao aprovar no dia 19 uma “Moção conjunta” sobre a continuação “do apoio financeiro e militar à Ucrânia pelos Estados-membros da UE”.

A Moção, grosseiramente russófoba, cheia de exigências aos Estados da UE, é mais brutal do que muitas declarações de guerra registadas pela historiografia.

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JUNTO ÀS PORTAS DO INFERNO … por Viriato Soromenho-Marques, 21-09-2024, in DN

O maior arsenal militar da Rússia, na região de Tver, a cerca de 500km da fronteira da Ucrânia, foi atacado na madrugada de dia 18. Kiev afirma terem sido drones a causa da destruição, mas a hipótese de mísseis de longo alcance e o local do seu lançamento continuam em aberto.

Recordemos a cronologia recente. Dia 13, em São Petersburgo, Putin fez uma declaração inequívoca dirigida aos EUA e à NATO. A permissão a Kiev de atacar alvos na Rússia com mísseis de cruzeiro britânicos Storm Shadow e Scalp franceses, com mísseis balísticos táticos norte-americanos Atacms, ou outros semelhantes, equivaleria a uma declaração de guerra. O uso destes mísseis implica o envolvimento de pessoal da NATO, em especial dos EUA, pois é ele que acede aos protocolos e dados de satélite que permitem não falhar o alvo.

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Portugal no espelho do terramoto, por Viriato Soromenho-Marques, in DN, 31-08-2024

Todos os sismos em Portugal evocam o Terramoto de 1755. A reconstrução de Lisboa expõe a ação excecional daquele que seria imortalizado como Marquês de Pombal. A recente discussão sobre a ausência de legislação e fiscalização adequadas para prevenir o pior, quando se repetir um megassismo em Lisboa, ajuda a perceber o motivo por que uma tão grande parte da elite nacional recusa, alergicamente, estudar o legado da ação política de Pombal.

É impossível resumir o que fez Sebastião José pelo país nos 22 anos como Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino, o equivalente atual ao cargo de primeiro-ministro (1755-1777). Já nem menciono o percurso anterior como diplomata e Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (1738-1755). Mas a sua liderança na reconstrução de Lisboa manifesta o seu estilo singular de governação, grandioso na luz, excessivo na sombra.

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”Um desejo coletivo de morte para o mundo”, por Viriato Soromenho-Marques, in DN, 6/7/24

O título deste artigo foi retirado do mais importante discurso de John F. Kennedy (JFK), proferido em 10 de junho de 1963. Nele, o presidente dos EUA enunciou um conjunto de medidas conducentes ao desanuviamento das relações entre Washington e Moscovo, de modo a evitar a III Guerra Mundial. Em outubro de 1962, os dois Estados estiveram à beira de um confronto nuclear direto, numa situação limite que ficou conhecida como a Crise dos Mísseis de Cuba.

Durante duas semanas, o planeta baloiçou no precipício do holocausto nuclear. Não surpreende que JFK, depois de ter superado essa crise existencial, tenha procurado extrair lições do acontecido, visando prevenir a repetição de uma situação semelhante.

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União Europeia: à deriva entre duas ilusões, por Viriato Soromenho-Marques,10-06-2024, in DN

“Por outro lado, também não foram Governos populistas que arrastaram a UE para a perigosa subordinação à NATO e aos EUA, numa guerra, que segundo inquérito recente do Institute of Global Affairs, de Nova Iorque, conta com a oposição esmagadora de europeus e norte-americanos.”

Tudo indica que as forças do nacionalismo e populismo extremos terão um significativo ganho relativo de deputados no Parlamento Europeu (PE) em 2024. Contudo, já nas eleições de 2014, a mesma corrente política obteve triunfos substanciais. Basta recordar a vitória da Frente Nacional (hoje, Reagrupamento Nacional-RN) de Marine Le Pen, ou o sucesso de Nigel Farage, com o seu UKIP, que seria o instrumento fundamental para o Brexit em 2016.

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O novo outono alemão, por Viriato Soromenho-Marques, 15-06-2024 in DN

As eleições europeias, em especial em França e na Alemanha, provaram aquilo que venho defendendo desde 2014. A doença europeia, que se tornou visível na crise do euro, não terminou nem é conjuntural. É uma crise estrutural de identidade, cada vez mais existencial.  Agora, que estes dois países, a chamada “locomotiva europeia”, estão paralisados na linha de um destino incerto, importa parar para pensar. Comecemos, hoje, pela Alemanha.

A participação maciça dos alemães nas eleições para o Parlamento Europeu (64,78%, que compara com a escassa participação portuguesa de 36, 54%) permite uma leitura inequivocamente nacional dos seus resultados. Tendo em conta que, nas eleições federais, só os partidos com mais de 5% de votos têm representação no Bundestag, apenas seis forças partidárias estão hoje em condições de formar grupos parlamentares federais.

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Os paladinos da guerra perfeita, por Viriato Soromenho-Marques, in DN

Não cessa de me surpreender a indiferença dos nossos eleitos políticos, do Governo e da oposição, mergulhados em trivialidades, perante a questão existencial da paz e da guerra.

A maior ameaça à nossa existência coletiva reside no silêncio e cumplicidade de quem nos governa e representa, perante aqueles, ao nosso lado, que alimentam o rastilho aceso à espera de explodir em todo o Velho Continente. O atentado contra Robert Fico – PM eslovaco e uma voz dissidente no consenso belicista da NATO -, ou a repetição na Geórgia dos protestos ao estilo de Kiev em 2013, são sintomas da catástrofe em marcha.

A Rússia domina o campo de batalha. Contudo, como sempre escrevi, num conflito em que estão envolvidas quatro potências nucleares, a paz só poderá nascer do primado da política sobre as armas. Em cima da mesa deveria estar a necessidade de travar a escalada, cessar os combates, e assinar tréguas duradouras.

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