IHU On-Line – Como pode ser compreendido o conceito de “Deus sive Natura”, que rendeu a BARUCH SPINOZA a reputação de panteísta?, por Marilena Chaui

Marilena Chaui- Na verdade, Spinoza não é um panteísta. O panteísmo afirma que tudo (pan) é deus (théos), mas não é isso o que diz Spinoza. O que ele demonstra é que tudo o que existe, existe em Deus e sem Deus nada pode ser nem ser concebido, e que Deus é causa eficiente imanente de todas as coisas.

Ora, essas demonstrações têm como fundamento o primeiro axioma da Ética, que enuncia que “tudo o que é, ou é em si e concebido por si ou é em outro e concebido por meio de outro”, evidenciando, assim, a diferença ontológica entre duas maneiras de ser.

Não nos esqueçamos também que na Parte I da Ética, Spinoza demonstra que no mesmo sentido em que se diz que Deus é causa de si deve-se dizer que Ele é causa de todas as coisas e, na Parte II, demonstra que a essência de Deus não pertence à essência das coisas singulares, e sim as constitui.

Haveria panteísmo se, na Parte I, Spinoza houvesse dito que Deus é todas as coisas singulares, mas ele demonstra que Deus é causa eficiente imanente de todas elas; e se ele tivesse demonstrado, na Parte II, que a essência de Deus pertence à essência de todas coisas singulares, mas ele demonstra exatamente o contrário, ao demonstrar que a essência de Deus não pertence às essências das coisas singulares justamente porque ela as causa, isto é, as constitui.

Spinoza parte de um conceito muito preciso, o de Substância, isto é, de um ser que existe em si e por si, que pode ser concebido em si e por si e sem o qual nada existe nem pode ser concebido.

Toda substância é substância por ser causa de si (causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade de ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência de todos os seres do universo.

Causa de si inteligível em si e por si mesma, a essência da Substância é constituída por infinitos atributos infinitos em seu gênero, isto é, por infinitas ordens de realidade simultâneas, sendo por isso uma essência infinitamente complexa e internamente diferenciada: ela é o ser absolutamente infinito. Existente em si e por si, essência absolutamente complexa, a Substância absoluta é potência absoluta de auto-produção e de produção de todas as coisas.

A existência e a essência da Substância são idênticas à sua potência ou força infinita para existir em si e por si, para ser internamente complexa e para fazer existir todas as coisas. Ora, se uma Substância é o que existe em si pela força de sua própria potência que é idêntica à sua essência, e se esta é a complexidade infinita de infinitas ordens infinitas de realidade, torna-se evidente que só pode haver uma única Substância, caso contrário teríamos que admitir um ser absolutamente infinito limitado por outro ser infinito, o que é absurdo.

Há, portanto, uma única e mesma Substância absolutamente infinita na qual ser e agir são o mesmo e que constitui o universo inteiro.

Essa Substância absolutamente infinita é Deus.

Modos da Substância ao causar-se a si mesmo, fazendo existir sua própria essência, Deus faz existir todas as coisas singulares que O exprimem porque são efeitos imanentes de Sua potência infinita.

Há, assim, como enuncia o primeiro axioma da Ética, duas maneiras de ser e existir: a da Substância e seus atributos (a existência em si e por si) e a dos efeitos da Substância ou de seus atributos (a existência em outro e por outro).

A esta segunda maneira de existir, Spinoza dá o nome de modos da Substância. A Substância é em si e concebida por si; os modos são em outro e concebidos por meio de outro, isto é, são efeitos necessários produzidos pela potência dos atributos substanciais. A distinção de essência entre Deus e seus modos e entre a causa e o efeito impede, por tanto, que a expressão Deus sive Natura seja interpretada como panteísta.

À Substância e seus atributos, enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real, Spinoza dá o nome de Natureza Naturante. A totalidade dos modos produzidos pelos atributos é designada com o nome de Natureza Naturada.

Deus não é causa eficiente transitiva de todas as coisas ou de todos os seus modos, isto é, não é uma causa transcendente, exterior e anterior aos seus efeitos e que deles se separa após produzi-los, mas é causa eficiente imanente de seus modos, não se separa deles, e sim exprime-se neles e eles O exprimem.

A causa imanente faz com que a totalidade constituída pela Natureza Naturante e pela Natureza Naturada seja a unidade eterna e infinita cujo nome é Deus. É este o sentido da expressão spinozana Deus sive Natura, Deus ou Natureza.

Extracto das páginas 17 e 18 do Texto da IHU, Revista do Instituto Humanistas Unisinos, nº 397 de 06/08/2012 titulado : BARUCH SPINOZA, Um Convite à Alegria do Pensamento

https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/16-artigo-2012/4534-marilena-chaui

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