Venham daí fazer uma sesta. Comigo? Não, com Brigitte Bardot, por Manuel S. Fonseca. Publicado no Weekend, Jornal de Negócios

ESTÁ DEITADA E NUA

Levantei-me agora da cama – sesta das três da tarde de fim de semana – e, se me deitara a não pensar em coisa nenhuma, levantei-me a pensar na nudez. Já de pé, saiu-me esta conclusão tão trivial como todas as que nascem de uma sesta de fim de semana: há uma dissimulada diferença entre a nudez americana e a nudez europeia. 

Lembro-me, em Los Angeles, eram 10 da noite, ou talvez fossem já umas tardias 11, estávamos todos vestidos, numa bebida pós-prandial, a música techno a acariciar a azulíssima piscina do Chateau Marmont, e uma mulher deixou cair o alvo roupão aos pés. Estava nua, mergulhou na transparência azul, e a sua nudez nadou uns bons inefáveis minutos. Mulheres e homens à volta tragaram o seu espanto com a displicência de quem bebe a última gota de uísque. A mulher nua saiu das venusianas águas, logo coberta pelo roupão. Não houve um ah! de espanto aos seus seios e delicada púbis, nem um sentido aplauso à nudez asséptica da jovem mulher americana.

Venham agora comigo ao cinema. A um filme do mais “bad boy” que o cinema francês já teve, Jean-Luc Godard. Fez um filme, “O Desprezo” com um produtor americano, o filme em que esteve mais perto dessa indústria, que ele tanto admirou e tanto odiou.  A vedeta feminina de “O Desprezo” é Brigitte Bardot, traço de união dos europeus como nunca mais houve. Filmaram e Joseph E. Levine, o produtor, ao ver a versão final, sem um nu pelo menos de Bardot, atirou-se a Godard. “Não há nus, não há filme nos cinemas!” jurou. Godard resignou-se e filmou Bardot nua juntando tudo numa só sequência, de mais de três minutos, a abrir o filme.

Por favor, vejam: é uma sequência gloriosa. Num quarto de sombras, cruzado por uma réstia de luz e filtros a roçar uma certa decadência, está deitada e nua Brigitte Bardot. É irresistível olhar-lhe para as tão convincentes nádegas: ela mesma diz ao actor com quem contracena, numa pergunta que é também para cada espectador que esteja na sala: “E as minhas nádegas, achas que são bonitas?”

Será preciso responder? Bardot está nua, deitada de costas, na cama. O actor, Michel Piccoli, veste uma amarrotada t-shirt branca e contempla-a. Palavra a palavra, pela boca de Bardot, com o complacente acordo de Piccoli, é-nos dito cada centímetro do corpo dela. Ouvimos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Nunca se tinha “ouvido” um corpo como nesse filme se “ouve” o corpo de Bardot. Ouvimos os tornozelos, as coxas, o rabo, os seios, os joelhos. Ouvimos o corpo de Bardot como se ouvíssemos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros vermelhos e azuis utilizados por Godard mais reforçam. 

Ainda temos os ouvidos nas redondas e tão belas nádegas e já Bardot nos pergunta “o que preferes, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabemos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Georges Delerue, a responder-lhe com mais certeza do que Piccoli. E quando ela diz “amas-me?”, ouvimos um atarantado Piccoli, a cujo abraço o sinuoso corpo se escapa, responder: “Amo-te totalmente, ternamente, tragicamente!”

Ouvimos e ouvindo entra-nos pelos olhos uma nova forma de erotismo. Este já não é o erotismo voyeur das pernas de Marilyn que o sopro do metro de Nova Iorque expõe, levantando-lhe o vestido, em “O Pecado Mora ao Lado”. A nua Bardot é de um erotismo que sabe de si mesmo, um erotismo de cama e sem inocência: a cama em que desagua a dúvida, a crescente perplexidade masculina europeia. Uma profunda fenda filosófica separa a alacridade das pernas de Marilyn das nádegas de Brigitte Bardot.

Publicado no Weekend, Jornal de Negócios

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