CRESCENTE FÉRTIL, A TERRA DE MUITOS DEUSES, por Rogério de Paula in “Facebook”

As cosmogonias na Antiguidade refletem profundamente as identidades culturais de cada civilização, com cada povo construindo suas próprias narrativas de criação baseadas em seu contexto cultural, social e religioso. A maneira como o mundo era compreendido e explicado por cada civilização servia não só para dar sentido à existência, mas também para afirmar o papel e a identidade únicos de cada cultura no mundo.

Entre os egípcios, a cosmogonia girava em torno de uma ordem cósmica que emergia do caos primitivo, descrito como o Nun, um oceano de escuridão e possibilidades. O deus Atum, emergindo de si mesmo, gerava outros deuses, que por sua vez davam origem ao cosmos, ao mundo e à vida. Esse relato era profundamente enraizado no entendimento egípcio da ordem (Ma’at) versus o caos (Isfet), refletindo a importância de manter o equilíbrio cósmico e social como dever do faraó e de seu povo.

Na Mesopotâmia, as diferentes culturas — sumérios, acadianos, babilônios e assírios — possuíam inicialmente cosmogonias distintas. Porém, com o passar do tempo e à medida que diferentes potências dominaram a região, os panteões e os mitos de criação passaram por fusões e adaptações. Um exemplo é o épico da criação babilônico, o Enuma Elish, onde Marduk se torna o deus criador após vencer Tiamat, um ser primordial do caos. Este mito reflete uma reorganização do panteão mesopotâmico e uma tentativa de centralizar a figura de Marduk em resposta ao poder político babilônico. Durante essas adaptações, deuses de diferentes culturas foram associados, substituídos ou absorvidos, resultando em um sincretismo religioso característico da Mesopotâmia.

Os hititas, com uma cultura que absorveu influências da Anatólia e do Levante, também desenvolveram uma cosmogonia distinta. Eles acreditavam que o deus do trovão Tarhun lutou contra o dragão Illuyanka em uma narrativa de criação que representava a vitória da ordem sobre o caos. Esse mito de criação refletia os valores militares e a importância da natureza cíclica, com deuses que representavam aspectos fundamentais do mundo natural, muito ligado ao ciclo das estações e à fertilidade da terra.

Já os povos do Levante, como cananeus e fenícios, partilhavam um panteão diverso e rico em deuses e seres primordiais, onde El era uma figura proeminente como o “Pai dos Deuses”. Este panteão, entretanto, também apresentava regionalismos, com divindades que se adaptavam aos valores e à geografia de cada local. Essas narrativas refletiam o comércio marítimo e a diversidade cultural que permeava o Levante, fazendo com que seu panteão fosse influenciado e influenciasse outras culturas vizinhas.

Entre os elamitas, a criação estava associada a uma tradição local única, onde as forças divinas eram frequentemente vinculadas a aspectos da natureza e ao contexto montanhoso da região. Seu panteão, pouco conhecido em comparação com o de outras civilizações, era centrado em divindades como Napirisha e Inshushinak, que estavam ligadas diretamente às montanhas e à geografia do Elam, demonstrando uma visão de mundo que via o sagrado em seu próprio ambiente natural.

Importante destacar que, em nenhuma dessas cosmogonias antigas, havia o conceito de criação ex nihilo (do nada), algo que aparece em tradições religiosas posteriores. As cosmogonias descrevem o surgimento do cosmos a partir de elementos pré-existentes, como o caos, a escuridão ou águas primordiais. Esses conceitos refletem a visão que as culturas antigas tinham sobre o universo e a criação como uma reorganização ou manifestação de substâncias primordiais, ao invés de uma criação absoluta a partir do nada.

Além disso, embora as civilizações antigas interagissem e conhecessem outras culturas, cada povo via os estrangeiros como indivíduos criados por “outros deuses”, reforçando a ideia de que não havia uma mitologia universal ou uma origem comum. As mitologias não se comunicavam de forma sistemática, e cada cosmogonia mantinha-se firmemente ligada ao seu contexto cultural e territorial, formando um universo próprio e exclusivo que se aplicava ao seu mundo e ao de seus deuses.

Fontes:

Bottéro, J. (2001). Religion in Ancient Mesopotamia. University of Chicago Press.

Assmann, J. (2001). The Search for God in Ancient Egypt. Cornell University Press.

Dalley, S. (2008). Myths from Mesopotamia: Creation, the Flood, Gilgamesh, and Others. Oxford University Press.

Bryce, T. (2005). The Kingdom of the Hittites. Oxford University Press.

Pardee, D. (1997). “Ugaritic Religion.” In The Oxford Encyclopedia of Archaeology in the Near East, edited by Eric M. Meyers.

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