A nádega e a fina agulha, por Manuel S. Fonseca, 22-02-2025, in “A Página Negra”

Foi uma fuga hiperbólica. Os diabólicos Rolling Stones tinham sido enganados por um austero contabilista e as finanças inglesas queriam trucidá-los. Tal como eu e o meu amigo Rui, em bolandas com a tropa, nos enfiámos clandestinamente no Lobito, nos idos de 74 e 75, os Stones zarparam Mancha abaixo, fintando Sua Majestade, e desaguaram na sumptuosa vivenda Nellcôte, na aldeiazinha que dá pelo delicioso nome de Villefranche-sur-Mer, em plena Côte d’Azur.

Uma velocíssima imoralidade começou a transpirar da mansão de Nellcôte. Era a fortaleza francesa dos Stones. Como se viessem a Fátima, houve uma romaria de Lennons, McCartneys, Ringos, Claptons, mil músicos. Dormia gente pelos cantos. A Keith Richards, que narra sem freios tudo na sua autobiografia, roubaram-lhe nove guitarras. No estúdio gravava-se quando queriam, na truculenta solidão da madrugada. A droga era um fremente atractivo.

Keith conta que lhe dava na heroína com disciplina prussiana: tomava a dose certa e o cavalo era sempre de alto nível. A dose certa e ter droga da boa foi, confessa, a sua salvação: muita gente morre por comer os cogumelos errados. Havia é claro, lembram-se guitarristas e saxofonistas de visita, gente semidespida a passear-se pela casa ou estendendo a nudez sobre um sofá. Eu estou a ver, pelo canto do olho, Nathalie Delon e já lá vou.

Toda a energia de Keith Richards vinha da heroína. Podia ficar três dias sem dormir. No meio do caos de nudez, de visitas fortuitas, de desconexa balbúrdia, Keith Richards saltava o buraco do sono. Conta que o seu respeitável record olímpico foi de nove noites e nove dias, sem que ele soubesse o que era uma cama: em omnivigília como um deus. No Lobito, eu e o meu camarada revolucionário alugámos também um apartamento. Diria: um metafórico apartamento. Era só uma grande sala, com uma mesa redonda à entrada para reuniões revolucionárias, e dois colchões estendidos perto da varanda. Era um apartamento inundado por discussões ideológicas e acções subversivas, um maoismo a rastejar pelo chão de tábuas. Era uma romaria de gente incendiada por amanhãs que cantam, por «luta continua» e «vitória é certa», mesmo uma pistola a rodar sobre a mesa numa tensa e venenosa sessão de crítica e autocrítica.

Sem heroína, o que me salvou foram as paredes. Estavam cobertas de papéis colados, em cada papel uma estrofe, um poema: de Herberto a Ramos Rosa, de Ruy Bello a Rimbaud, de Fiama e Gastão a T.S. Eliot. À centrípeta paisagem maoista, que me ia apertando o tenso coração, responderam os papéis escritos na parede – à máquina, à mão – num movimento centrífugo de resgate: incendiavam-me as noites, punham-me nos dedos ainda tão jovens os cabelos da inocência, a flor lenta de uma rapariga, o seu soneto húmido, se é que eu sei do que estou a falar.

E é aqui que entra Nathalie Delon, que nunca esteve no Lobito, mas se sentou na moto de Bobby Keyes, amigo do peito de Keith Richards, ambos nascidos no mesmo ano. Bobby tinha vindo tocar saxofone com Keith: quando respirou, com os olhos, a boca, as mãos, a poliédrica beleza de Nathalie, foi como se o Anjo do Senhor o tivesse tomado ao colo. Deambularam pelas colinas da Côte d’Azur, beberam tinto, comeram sanduíches de presunto à beira dos bosques, picaram-se com a partilhada fina agulha nas nádegas. Bobby nunca tinha estado tão perto do perigo e da vertigem da transgressão. A sombra de Alain Delon, de guarda-costas inclementes e do tambor de uma pistola transpirava dos ares. E foi Nathalie que o deixou. Com um aviso: nem tentes sequer voltar a falar comigo. Salvou-lhe a vida.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemente Weekend.

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