A Economia do Património é o mecanismo das desigualdades que gera uma nova estrutura de classes, in República dos Pijamas, 31/3/2025

No livro The Asset Economy, Adkins, Cooper e Konings discutem o património, em especial a habitação, como o mecanismo das desigualdades das últimas décadas.

Numa entrevista a um podcast australiano em que discutia economia, e o problema específico da habitação, Yanis Varoufakis recordava os tempos em que viveu na Austrália. Entre aquilo que não deixava nenhuma saudade ao economista e político grego estavam os jantares com amigos em que as conversas deixavam-se dominar por negócios imobiliários. As discussões sobre as valorizações das casas, em que estas eram vistas como investimentos, não como algo para viver, frustraram aquele que depois veio a ser o ministro das Finanças grego. Varoufakis usou o exemplo para demonstrar como existia uma classe alargada de interessados num mercado de habitação cada vez menos acessível e isso fazia com que o problema não fosse resolvido.

A estadia de Varoufakis na Austrália viria a terminar no ano 2000, mas é fácil de notar que o foi relatado sobre a Austrália de então é uma realidade cada vez mais presente em países como Portugal. Por coincidência ou não, o livro “The Asset Economy” (aqui traduzido para A Economia do Património), escrito por um trio australiano, oferece uma perspetiva sobre o peso cada vez maior do património nas nossas sociedades, não só à mesa de jantar, mas sobre todo o sistema político e estrutura de classes.

A PARTIR DE DOS 1% DE PIKETTY

Com o livro lançado em 2020, um dos pontos de entrada para os autores é a obra de Thomas Piketty de “Capital no Século XXI”. Piketty ganhou destaque por falar de uma economia cada vez mais desigual, na qual o património financeiro dos mais ricos tem um peso cada vez maior na economia, surgindo como peça central os retornos desse património superarem o crescimento da economia (logo dos salários). Sem romperem com a tese de Piketty, Lisa Adkins, Melinda Cooper e Martijn Konings contestam a ênfase atribuída ao topo do topo da sociedade, geralmente descrita no “um por cento”.

Para os autores, se quisermos entender a persistência, o aprofundamento e a legitimidade das políticas que aprofundam as é necessário olhar para além dos que são os mais ricos entre os mais ricos – aquelas camadas que são “apenas” ricas, vivem de alguns rendimentos do trabalhos, mas que também beneficiam e se reveem no atual enquadramento económico-político. Embora Piketty seja o visado, as suas ideias são vistas como parte de uma tendência geral. Ao explorarem as limitações desse ponto de análise, também apontam a uma explicação para os falhanços de quem tentou contrariar a lógica dominante nos últimos tempos.

Para este trio, não estamos a regressar ao sistema desigualitário do pré primeira-guerra mundial mas para algo novo e diferente, cujo o ponto de viragem são os anos 1970. Enquanto Piketty foca-se na captura das instituições e nos processos políticos por parte dos poderosos detentores das grandes fortunas, sem tirar esse fator da equação, esta obra realça a existência de uma coligação mais alargada, vencedora das políticas que permitiram as valorizações (e desvalorizações) do património financeiro nas últimas décadas.

Os autores consideram que olhar para a Dívida como um mero passivo financeiro é bastante limitativo no nosso entendimento do mundo contemporâneo. Uma dívida acaba sempre por ser um património (ativos em linguagem contabilística) financeiro de outrem. Logo, para compreender o aprofundamento das desigualdades, não se pode tirar os olhos da valorização destes e quem os detém (em vez de assumir que são apenas os “um por cento”).

A interação entre os dois lados do balanço – dívida e património – é um ponto de partida útil para compreender as mudanças estruturais das últimas décadas, em particular para a necessidade de assumir cada vez maiores montantes de dívida para passar a deter ativos financeiros.

Enquanto a análise de Piketty se direciona para mercados como os de ações de empresas, os autores de “A Economia do Património” destacam o papel do mercado da habitação. Os autores focam-se nos países anglo-saxónicos, a vanguarda destas dinâmicas, que se foram alastrando mundo afora e que Portugal é uma das mais recentes vítimas (com uma intensidade particularmente forte).

DEMOCRACIA DE ATIVOS
O ano zero do modelo apresentado nesta obra está algures nos anos 1970. Nos países anglo-saxónicos, como na generalidade dos países desenvolvidos, a inflação mostrava-se alta e persistente. Crucialmente, ao contrário da inflação do início desta década, o poderoso movimento laboral conseguia impor aumentos salariais, chegando a ganhar poder de compra em várias ocasiões. Por contraste, aqueles que detinham património financeiro viam-no desvalorizar (face aos restantes preços praticados na sociedade). No caso dos detentores de dívida, com valores nominais sem mecanismos de ajuste à inflação (p.ex. o valor de compra da casa/empréstimo não muda por a inflação aumentar posteriormente), as taxas de juro reais (ajustadas à subida de preços) chegaram a ser negativas. Ou seja, o período que frequentemente nos é apresentado como um caos económico devido à instabilidade de preços foi por na verdade uma fase de redistribuição e reequilíbrio de poder nestas sociedades: viveu-se um certo perdão de dívida camuflado e a manutenção do poder de compra dos trabalhadores – em grande parte às custas dos detentores de património e credores.

A situação sofre um desfecho vital nestes anos. Naquilo que nos Estados Unidos da América foi chamado de Choque Volker, a Reserva Federal optou por aumentar as taxas de juro para níveis altíssimos, o que encaminhou os restantes países desenvolvidos a seguir o mesmo caminho. Com a subida das taxas de juro acabou o impasse, as economias entraram em recessão e o desemprego aumentou. Assim, o Trabalho foi derrotado e com a inflação a ser domada, tanto nos preços como nos salários; do lado dos vencedores tivemos os credores que deixaram de sofrer este tipo de desvalorização nos seus investimentos. Os bancos centrais assumiram o papel que ainda hoje detêm, posteriormente institucionalizado na sua “independência”. O controlo da inflação passou a ser o seu objetivo central, deixando de fora os preços do património.

Os autores reinterpretam o conceito de inflação, fazendo uma importantíssima distinção entre bens e serviços (aquilo que é medido e controlado pelos bancos centrais) e ativos (onde a habitação entra); a as diferenças de inflação entre estes dois conjuntos são um dos fatores explicativos das alterações das estruturas socias nas últimas décadas.

A partir dos finais da década de 1980 a inflação passou a ser baixa nos países desenvolvidos, o período chamado de a “grande moderação”, geralmente apresentado como o grande sucesso de Paul Volker (governador da Reserva Federal 1979–1987) que abriu as portas ao período neoliberal. A fraca inflação justificaria os aumentos salariais mais contidos. Como mérito da obra surge o destaque ao que acompanhou essa baixa inflação – a subida, muitas vezes galopante, dos preços do património, como ações e habitação. Tal como na década de 1970, os diferenciais entre a inflação de bens/serviços/salários e ativos/património, mudou o equilíbrio de poder na sociedade, desta vez em favor dos detentores de propriedade. Este fenómeno passou ao lado da história que é contada sobre a economia nos últimos tempos. Infelizmente, os autores não perdem a oportunidade de detalhar que processo político envolveu arbitrariedades estatísticas, como retirar os créditos da habitação (património) do cabaz da inflação, de forma a reduzir (artificialmente) a inflação, prestações sociais e exigências salariais.

Além das alterações na política monetária, foi-se criando uma camada social significativa investida na subida dos valores do património. Mesmo longe de serem bilionários, estão parcialmente alinhados com estes, ao tornarem-se partes interessadas na subida do valor dos patrimónios numa sociedade cada vez mais financeirizada.

O trio de autores descreve como a construção deste segmento social foi resultado de um processo político ativo. Além daqueles que entraram com facilidade na classe de proprietários durante os choques inflacionários (Baby Boomers), foram criados empréstimos subsidiados pelos Estados e mesmo a venda subsidiada de habitação social arrendada (em especial no Reino Unido, umas dos maiores processo de privatização de sempre). Isto permitiu a vários segmentos tornarem-se os donos de imobiliário, logo motivados na sua valorização – e acima de tudo, adversários da sua desvalorização.

A complementar estas medidas, administrações como as de Margaret Tatcher e Ronald Reagan foram pioneiras no tratamento preferencial de ganhos de capital, e descidas e isenções de impostos aos mais ricos, geralmente vendidas como incentivos ao investimento, mas sem nunca excluir atividades rentistas. Esta vaga foi depois consolidada pelo outro lado do centro político, com as administrações de Tony Blair e Bill Clinton a aprofundar as medidas a favor do património e dos seus detentores, com o argumento da democratização dos ganhos de capital.

Como advogado por Alan Greenspan, então governador da Reserva Federal dos EUA (1987-2006), e prosseguido pelos governos, a solução passava por incluir cada vez mais trabalhadores na nova Economia do Património e o meio para tal seria o recurso ao crédito. Enquanto nem todos podiam herdar, todos poderiam pedir emprestado e com esse valor desfrutar dos galopantes valores do imobiliário. Repetir o processo de forma sustentável foi-se mostrando cada vez mais difícil. No período que se iniciou em 2007, as esperanças de democratização foram despedaçadas, com as falências no crédito habitacional a serem o grande epicentro da crise financeira que deu origem à Grande Recessão. Apesar de a quebra no imobiliário de então ser tratada como o fim da era dos excessos dos preços dos títulos financeiros e da especulação na habitação, os anos vieram demonstrar que este apenas se tratou de um pequeno interregno na galopante valorização. Em nome da estabilidade financeira, o ativismo dos Bancos Centrais (p.ex.: Quantitative Easing) após a crise financeira manteve os preços dos ativos à tona. Poucos anos depois, estes voltavam a crescer a um ritmo muito superior ao dos salários. O grande legado da economia do património mostrou-se serem as desigualdades, e não um sistema democrático no qual todos podem fazer a sua fortuna.

Esta dinâmica traz ao de cima uma clivagem geracional, em que aqueles que compraram casas precocemente (grande parte nascida nas décadas de 1950 e 1960, vulgarmente chamados de Boomers) e aqueles que vieram mais tarde (Millenials, nascidos nas décadas de 1980 e 1990). Enquanto os primeiros tiveram um acesso privilegiado à habitação, os segundos têm de lidar com um contexto bem mais adverso. Apesar de ser popular caracterizar este contexto como um de um era de guerra geracional (em que a enfâse em Portugal está numa definição elástica de “jovens”), como os autores de a Economia do Património demonstram, o assunto é de um reforço das dinâmicas de sucessão e desvalorização do papel do trabalho na estruturação social.

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DE NOVO UMA NOVA SOCIEDADE DE HERDEIROS

Outro dos dados apresentados na obra é a necessidade de a compra da casa ser cada vez mais assente no património familiar e menos dependente do trabalho. As fracas subidas dos salários das últimas décadas, mesmo para profissões consideradas “qualificadas”, ganham uma nova dimensão ao serem contrastadas com o aumento do valor do património. Com os salários a crescer menos que os ativos financeiros, os primeiros são cada vez menos capazes de pagar o acesso aos segundos, em especial à habitação. O pagamento da entrada para a primeira habitação depende cada vez menos de rendimentos próprios do trabalho assalariado e o peso de doações familiares ganha relevância.

O crescimento dos rentistas: fluxos das heranças como percentagem de toda a economia (PIB). Fonte: The Economist, cálculo de vários autores.

Assim, os últimos anos contêm não tanto um conflito entre gerações, mas um conflito de berços, dado o peso acrescido das relações intergeracionais. Não se trata de quem nasceu mais tarde vir a ter menos património do que as gerações passadas (afinal, no quadro atual, a maioria do património será herdado), mas de uma alteração na forma como se obtêm esse património. Enquanto no tempo dos boomers os salários eram chave para aceder ao património, hoje as gerações mais novas dependem da capacidade (e vontade) dos progenitores para lhes facultarem o capital.

O fenómeno de transmissão de herança, com a parte transmissora ainda viva, tem aumentado e passa a ser um dos principais motores da perpetuação da desigualdade. O peso crescente das heranças desvalorizou o trabalho como forma de ascensão social e identificação de classe. Enquanto é nos mercados que a apreciação do património se faz, o resultado é o reforço dos acontecimentos à margem destes. As heranças, doações e empréstimos, fora da esfera dos mercados, ganham importância para explicar o funcionamento das sociedades.

Visto que estas tendências são cada vez mais evidentes, os meios de dominantes têm absorvido elementos base da tese desta obra. Por exemplo, a revista britânica The Economist, que apoiou os líderes e as medidas liberalizantes das décadas de 1980 e 1990, fez da “Nova Herançocracia” capa de uma das suas edições de fevereiro de 2025. Este episódio, que no fundo reconhece uma falência do discurso de sociedades democráticas e meritocráticas, mostra que ignorar estas dinâmicas deixou de ser credível. Reconhecê-las e sugerir soluções ineficazes será provavelmente a estratégia a seguir daqui em diante. É aqui que devemos enquadrar a estratégia daqueles como o executivo de Luís Montenegro facilitam a compra de imóveis a grupos de jovens muito específicos e razoavelmente privilegiados ou as narrativas que reduzem a “construir mais” como a solução para o problema da habitação.

https://republicadospijamas.substack.com/p/faltam-casas-a-nova-cassete-do-neoliberalismo

UMA ESTRUTURA DE CLASSES ALÉM DA FORÇA DE TRABALHO

Enquanto boa parte dos discursos sobre as desigualdades têm dificuldade em assinalar situações concretas para além das vidas dos mais pobres, a obra aponta consequências profundas para toda a sociedade. A juntar-se à importância acrescida das doações, as ramificações do acesso desigual ao património não se fica por apenas uma distribuição injusta das recompensas económicas. Estudar fora da cidade de origem, suportar as fases iniciais da carreira com salários baixos ou nulos (estágios não pagos) são cada vez mais ferramentas exclusivas àqueles com mais património. Segue-se o aprofundamento de desigualdades derivadas do (não) acesso ao ensino e formação.

Uma outra inovação do novo aspeto das desigualdades está na forma como trabalhadores com carreiras similares se relacionam. Ter uma situação financeira radicalmente mais precária do que um colega de trabalho, com um salário e estatuto similares, tornou-se comum devido às assimetrias de património. Em simultâneo, aqueles com garantias de aceder a património herdado podem dar-se ao luxo de ter empregos com menores salários, algo notório em áreas como o jornalismo e a academia nos países anglo-saxónicos. A situação laboral torna-se um indicador cada vez menos preciso do lugar na hierarquia socioeconómica e lança desafios às formas típicas de classificação de classe e formação de blocos políticos. A educação perde o papel de nivelador social. Viver em metrópoles pode significar simultaneamente o cosmopolitismo e a precariedade habitacional.

No mundo em que para sobreviver a participação na Economia do Património é cada vez mais uma necessidade, escolhas de vida frugais, em que se recusa participar nesta economia é cada vez mais o caminho para uma existência precária. Os aumentos dos valores do património imobiliário são acompanhados por aumentos das rendas que empurram aqueles que podem para a aquisição de habitação. O processo de erosão do Estado Social, que força cada vez mais a recorrer a soluções privadas para necessidades como a saúde, a educação e as pensões, encaminha mais e mais camadas da população para a participação nas mais valias da Economia do Património como forma de suplementar os rendimentos do trabalho. Como demonstrado pela tentativa de democratização desta do início deste século, os verdadeiros ganhos são cingidos a uma fatia da população.

A economia do Património não lança apenas críticas à Economia ortodoxa, mas também a várias abordagens críticas. Segundo os autores, apesar da oposição à forma dominante de Economia, as ortodoxias tendem a reproduzir muitos dos seus conceitos. Em especial, ao centrar a análise nos mercados de commodities, dá-se demasiado crédito à ficção do que é um mercado. Para os autores, ao reduzir o dinheiro a apenas algo que é usado para fazer trocas, perde-se de vista a dimensão temporal que diz respeito aos ativos financeiros.

No subordinar da Finança à ideia da comodificação, onde mecanismos de crédito e de dívida são uma extensão da mercantilização de áreas como o trabalho, as respostas aos fenómenos financeiros dos últimos anos tendem a resumir-se a apreciações sobre o carácter parasítico, disfuncional e especulativo desta. As interpretações aos fenómenos das últimas décadas tendem a cingir-se ao alastrar das áreas financeirização, não a alterações internas de como esta funciona. Ao tomar a existência dos mercados financeiros como garantida, deixando de lado o papel crucial da manutenção da liquidez, perde-se de vista a assimetria no acesso a esta. Como os autores apontam, os investimentos galopantes dos últimos são altamente vulneráveis a situações de dificuldades no acesso à liquidez (crédito), virando o jogo a favor de quem tem mais acesso a esta em situações de crise.

Sem a liquidez como garantida permanente, algo altamente dependente do Estado e de decisões políticas, os mercados financeiros não funcionam à imagem dos mercados de commodities. É nas diferenças no acesso a esta que encontramos a resposta ao porquê de diferentes camadas da sociedade estarem mais expostas a valorizações (e desvalorizações) dos ativos financeiros do que outras. Utilizando muito do pensamento do Economista Hyman Minsky, que ganhou relevância postumamente na sequência da crise financeira do início deste século, o trio de autores ilumina muito dos fenómenos das últimas décadas. Apesar de muitos dos conceitos de Minsky terem sido desenvolvidos tendo em mente a alta finança, ao interpretar a vida diária do cidadão comum como a gestão de um balanço financeiro, superam-se muitas das limitações de o considerar como um mero agente de consumo. Indo além de John Maynard Keynes, Minsky superou a ideia de considerar a liquidez como um mero fetiche e posicionou-a como uma peça essencial para compreender os fenómenos financeiros que se prolongam durante décadas. A transferência de riscos e consequências financeiras, conduzidas por mecanismos políticos, são apresentados como uma parte integral do funcionamento da Economia do Património.

Setembro de 2008, governo dos Estados Unidos da América resgata o sistema financeiro ao comprar ativos tóxicos para aumentar o crédito na economia

Fica além do que o livro explora tendências como o envelhecimento da população, a necessidade de financiar a sua velhice com cuidados médicos, e o papel de um eventual declínio populacional nos mercados de habitação. Ainda assim, a obra tem um enorme contributo ao adicionar mais elementos para uma análise de classe e das desigualdades. Com o modelo de análise de grande parte do movimento progressista foi criado no pós-guerra, um período excecional em termos da importância dos salários face ao património, a análise das diferenças salariais é sucessivamente preferida face à análise de elementos como heranças. No caso português, a quase não discussão sobre o imposto sucessório – abolido pelo governo liderado por Durão Barroso e Paulo Portas – nos anos de maior convergência à esquerda é um exemplo disso.

O foco político-mediático em métricas como os salários e níveis de qualificações da população estão provavelmente a ofuscam mais do que clarificam. Os jovens urbanos com diplomas serão mesmo uma esquerda cosmopolita e abastada – focada em agendas de costumes – ou uma mistura desses com um novo precariado qualificado, que vê o seu senhorio como um maior inimigo de classe que o seu patrão? Se a instabilidade e o aumento dos custos da habitação para uma parte significativa da população é muito superior a qualquer aumento salarial, devemos ficar mesmo surpresos com novos padrões eleitorais (antisistema), em especial nos mais jovens, mesmo quando a economia e os salários crescerem?

A classe dominante tem estado atenta a estas alterações. Em 2019, o Financial Times, que segundo os autores “que está sempre disposto a colocar a análise crítica para contribuir para a preservação do capitalismo”, partilhava uma coluna de opinião em que argumentava que a política da Reserva Federal, que causaram a valorização galopante do património, era responsavel direta pelo surgimento do socialismo geração millenial (encabeçado por figuras como Alexandra Ocasio Cortez).

Este episódio mostra a urgência de criar uma plataforma política maioritária que recentre o debate nesta grande transformação da sociedade. A tentativa de contornar estas dinâmicas como o foco nos 1%, como slogans como “somos os 99%” e “a casta” é tentadora e foi experimentada, mas os seus resultados mostram que é uma definição excessivamente alargada e vaga para identificar um bloco político. A popularidade emergente de uma figura como Gary Stevenson, que foca o seu discurso nas desigualdades de património e acesso a habitação, mostra que há procura à esquerda para este modo de análise. No fundo, precisamos de ir para além do Trabalho, sem nunca perder este de vista.

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