25 de Abril de 1974, por Helena Pato, activista, ex-presa política, in Expresso, 25-04-2025

Retirado do Facebook | Mural de Paulo Marques

“Em abril de 1974 eu era professora, militante do PCP, ativista da CDE, dirigente dos Grupos de Estudo do Pessoal Docente (fundadores dos sindicatos de professores) e, então, casada com o dirigente político da CDE José Tengarrinha, libertado de Caxias pela Revolução. Neste testemunho não posso prescindir de uma breve referência ao período histórico imediatamente anterior. Porque me confronto, diariamente, com uma espécie de manto de silêncio sobre as atrocidades da ditadura, a troco da exibição da festa dos cravos; e porque, em meu entender, o 25 de Abril não teria passado de um golpe militar, nem chegado ao Largo do Carmo, já com uma revolução em marcha, se não houvesse uma predisposição dos portugueses para o derrube de um regime, cujas políticas vinham tendo crescentes e expressivas respostas populares e das forças da oposição. Como chegámos ao 25 de Abril? Exauridos.

Não me detenho em referências detalhadas à polícia política, ao tenebroso campo de concentração do Tarrafal, aos sinistros cárceres e tribunais plenários fascistas — bases de apoio do regime, até à Revolução —, mas deixo algumas notas que creio merecerem reflexão. Nessa madrugada de 74, em que “emergimos da noite e do silêncio”, havia uma guerra em três frentes, que Marcello Caetano alimentava com cada vez mais sangue dos homens portugueses e dos independentistas: cerca de 45 mil mortos e 53 mil feridos. Eram já perto de 230 mil os jovens exilados, por recusarem entrar na guerra de independência das colónias. É certo que a Guerra Colonial foi a motivação do MFA para levar a cabo o 25 de Abril, mas as populações estavam arrasadas com os frequentes embarques de familiares para essa guerra; desgastadas com os enterros de cerca de 10 mil dos seus filhos; doridas pelo acolher de vítimas com todo o tipo de lesões e traumas. Cansadas de uma pobreza extrema que grassava no país e de viver em bairros de lata (só em Lisboa, acima de 20 mil barracas), que se alargavam de dia para dia. Se estas são memórias diretas do que vivi, ou ouvi contar (em escolas na capital, de paredes-meias com esses bairros), já o recenseamento (população e habitação) vem lembrar-nos que das “habitações” no país, 52% não possuíam abastecimento de água, 53% não possuíam energia elétrica, 60% não possuíam rede de esgotos, 67% não possuíam instalações sanitárias.

Nos anos que antecederam o 25 de Abril, verificava-se já um acordar de novas camadas da população e a sua revolta contra a negação de direitos básicos e contra as crescentes prisões feitas pela PIDE/DGS. Lesadas pelas ofensivas da ditadura — e pelos constrangimentos impostos à liberdade, sentidos na pele ou a chegarem-lhes à porta — davam sinais de exaustão. Em fuga às situações de pobreza e à mobilização para a guerra, homens (velhos e novos) emigravam cada vez mais. As mulheres viam-se forçadas a acumular a maternidade com todos os restantes papéis, na família e nos trabalhos de subsistência; se, desde sempre, eram vítimas de gritantes discriminações de género, agora, progressivamente atraídas para a produção industrial e serviços, sofriam-nas acentuadas; sem quaisquer apoios sociais na função maternal, confrontavam-se com uma licença de parto de um mês.

A liberdade de expressão era totalmente condicionada na comunicação social, no cinema e no teatro, nas artes, na literatura e no ensino. Um “projeto de reforma educativa” (Veiga Simão, 1971), aparentemente positivo — contrariado pelos sectores mais reacionários do regime — trouxe escassos avanços no panorama confrangedor da educação e do ensino: as profundas carências económicas dos portugueses inviabilizavam avanços na democratização do ensino. Os indicadores de 1973 (Pordata) relativos ao analfabetismo nos adultos, ao baixíssimo nível de frequência do Ensino Secundário e ao insignificante número de jovens com acesso ao Ensino Superior explicavam (e ainda hoje explicam) as graves manchas de iliteracia, numa nação tendencialmente alheada da vida na polis e, desde a infância, manipulada pelo regime para a submissão à autoridade. Em suma, na conjuntura política marcelista do Estado Novo, a educação falhara totalmente no que poderia ser promoção de alguma mudança social. A esmagadora maioria dos professores eram precários e, após nove meses de docência numa escola, não tinham vencimento nem colocação garantida. As professoras eram discriminadas no acesso ao quadro de efetividade. O horário letivo, do 2º Ciclo ao Secundário, cobria todo o dia de sábado. Perante a proibição de sindicatos livres e com a classe docente privada do direito a protestos ou à greve, os professores criaram os Grupos de Estudo do Pessoal Docente, que assumiram os papéis de informação, esclarecimento e organização, nas lutas reivindicativas travadas, entre 1971 e 1974 — pela mudança no sistema de ensino (por uma melhor qualidade de ensino e por condições socioprofissionais para a dignidade da docência), chegaram a estar em movimento (ilegal) cerca de 1500 corajosos ativistas.

O LOGRO DA “PRIMAVERA MARCELISTA”

Nos anos que antecederam o 25 de Abril, havia sido longo e doloroso o caminho até se chegar, na oposição, a uma solução de unidade. Quando, em 1969, Marcello Caetano substitui Salazar e aparece a agitar o lema “evolução na continuidade”, não faz mais do que ensaiar um novo fôlego para a ditadura, ficando pelo retocar da máscara do regime: meia dúzia de medidas reformistas avulsas, nomeadamente na alteração de nomes das instituições fascistas. De facto, não tinha em vista uma genuína “democratização”, mas apenas angariar simpatia e alargar a sua base de apoio — para fortalecer, revigorar e institucionalizar o sistema corporativo, no regime de ditadura, sem pretender substituí-lo por outro. Chegados a 74, a guerra prosseguia sem sinais de negociações; mantinha-se a restrição dos direitos e das liberdades e a repressão aumentava, com constantes prisões feitas pela PIDE/DGS. Mesmo assim, na oposição mais conservadora (republicanos e alguns sociais-democratas, sobretudo na província), ainda havia a expectativa de que Marcello Caetano levaria a bom porto uma democratização do regime. Mas se houve quem esperasse que um prometido “desenvolvimento europeizante” pudesse conduzir a uma evolução para a democracia, também houve quem nunca tivesse embarcado em tal ilusão e apelidasse o discurso oficial de “demagogia liberalizante”, determinando-se, porém, em aproveitar a pseudoabertura, nomeadamente nas campanhas das farsas eleitorais. A questão da independência das colónias foi, durante muito tempo, um problema na unidade das forças oposicionistas antifascistas. Nos materiais da CDE e do PCP exigia-se o fim imediato da Guerra Colonial (…), a abertura de negociações com os legítimos representantes dos povos das colónias (…), o reconhecimento do direito desses povos à completa e imediata independência; mas a questão colonial não foi assim encarada por outros sectores políticos da oposição, que optavam pela solução de autodeterminação.

Findo o ano de 1973, que decorrera com particular animação política da oposição democrática, tinham-se aberto, finalmente, caminhos para a unidade na ação de forças políticas diversas, até na questão colonial. O III Congresso da Oposição Democrática (em Aveiro) marcara uma viragem, com uma muito viva participação de largos sectores ideológicos. A memorável (desenfreada) repressão, sobre os congressistas em desfile na avenida da cidade, mereceu a cobertura da comunicação social portuguesa e estrangeira, ali presente e, na Europa democrática, Portugal via revalidado o título de “orgulhosamente só”. Em outubro, as batalhas eleitorais das legislativas — aproveitadas para consciencializar os menos informados e divulgar o que, de mais importante, estava na ordem do dia da luta antifascista e anticolonialista — iriam ser uma contínua luta de guerrilha contra a PIDE/DGS (que proibia e reprimia tudo). Os sucessivos impedimentos de condições mínimas de liberdade, para uma participação democrática, conduziu a oposição à desistência, no término da campanha. Ficara claro que a demagogia liberalizante fora sol de pouca dura. Havia cada vez mais portugueses conscientes disso e, em finais desse ano, a ação política oposicionista estendera-se a vários sectores sociais e políticos. Sucediam-se as manifestações contra a Guerra Colonial, o Governo de Marcello Caetano confrontava-se com sérios problemas na frente da guerra, a Guiné-Bissau proclamara unilateralmente a independência e, na Assembleia Nacional, conhecidos deputados da ala liberal tinham batido com a porta.

A Guerra Colonial vinha aumentando a tensão nos oficiais das FA e, no verão desse ano de 1973, aconteceram as primeiras reuniões de oficiais que dariam lugar ao embrião do Movimento das Forças Armadas (MFA). Na primavera de 74, Melo Antunes (que fora candidato da CDE em 1969) tem contactos pontuais com José Tengarrinha.

A 18 de abril de 1974, na sequência de intensa atividade na CDE, José Tengarrinha é preso (numa vaga de prisões) e foi-me marcada para o dia 25 de abril a primeira visita com ele, no Forte Prisão de Caxias, onde eu não voltara desde a minha libertação em 1967. Um regresso penoso àquele lugar, para um encontro enclausurado, em situação violenta e sem luz, transformou-se, por mágica coincidência, num momento histórico de libertação e de paz.

Cinquenta anos depois, tomo as palavras de Viriato Soromenho-Marques para lembrar o pai dos meus filhos e meu maior amigo: “José Manuel Tengarrinha nasceu em Portimão, em abril de 1932. A sua vida é marcada pelo valor da liberdade, sob todas as formas e em todas as circunstâncias, e foi por ter colocado a sua vida ao serviço da liberdade, que, corajosamente, a perdeu por várias vezes, nos calabouços da polícia política, para que ninguém dela fosse injustamente privada no nosso país. Muitos portugueses recordam-se, ainda, de ver o seu rosto pálido, aos 42 anos de idade, saindo do Forte de Caxias em 27 de abril de 1974”.

Quando os meus filhos nasceram, a esperança média de vida ao nascer era 65 anos. Após 50 anos de democracia, passou a ser cerca de 80. Celebremos!”

Jornal Expresso, 25/04/2024

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