No apagão, renascemos, por Raquel Varela, in Facebook

Ontem, quando tudo se apagou, as crianças invadiram o jardim em frente da minha casa. Passavam pela minha porta, de bicicleta, de skate, tagalerando, com bolas à frente dos pés, a rolar. Adultos, de todas as idades, caminhavam em direcção ao jardim e à praia. Todos os bancos de madeira tinham pessoas a olhar-se nos olhos, conversando. Vários, mais de uma dúzia, tinham livros na mão. Havia casais deitados na relva, uma mãe amamentava. Eram 4 da tarde e finalmente toda a gente tinha saído do trabalho a horas normais.

E estavam desligados desse vício, dessa compulsão de alimentar as bigtechs com dados (dando likes, vendo vídeos). Debaixo da minha porta quatro mulheres conversavam e riam, quando fui à janela perguntaram-se “se eu queria descer e conversar também”. A senhora dos gelados vendeu-os a preço de custo, e eu e o meu marido sentámos-nos com os empregados do restaurante, incluindo os cozinheiros do Nepal, a beber uma cerveja. Pela primeira vez perguntei-lhe o nome dos filhos, lá, na fronteira com a China. O barulho dos carros calou-se e um burburinho humano escutava-se na tarde quente em frente ao Tejo.

Quando os meus filhos eram pequenos saíam da escola às 3 da tarde e iam brincar, foi assim até aos 10 anos porque entre a ama e a família assegurámos que brincavam, em vez de estarem fechados numa sala de aula ou num recreio de cimento, agarrados ao telemóvel. Entre avós e ama, assegurámos que cresceram a brincar em árvores, relva, areia e mar. Não havia TV nem telemóveis cá em casa até terem 13 anos. Eles, e os filhos de uma alemã, eram os únicos que nunca largavam o jardim de inverno, de verão tinha a companhia tímida de mais alguns miúdos. Ontem vi centenas de crianças, que nunca tinha visto, que saíram da prisão familiar e da droga do telemóvel. E eu moro num bairro histórico, pequeno. Não sabia que havia tantas crianças aqui. Dois rapazes, com menos de 10 anos, empoleirados como pássaros nos paralelepípedos de cimento da minha rua, afinal vizinhos de alguma ruas abaixo, que eu nunca tinha visto, quando lhes perguntei se não era maravilhoso estar assim, responderam-me “é tão bom! Quando há luz não nos deixam sair”. A rua tinha cães, é certo, mas tinha muito mais crianças, pela primeira vez.

Eu estava no aeroporto, de manhã, chegada do Canadá, quando a luz se apagou, ficámos fechados mais de uma hora no autocarro, porque as portas do aeroporto são eléctricas e porque a vigilância dos passaportes também. Decidiram, porém, fazer à mão, e depois tudo fluiu, parte da tecnologia não melhora a nossa vida, é um erro pensar isso, nem a torna mais rápida, pelo contrário, tira-nos tempo, está ao serviço da crescente vigilância do Estado e dos lucros das bigtechs. Descobrimos também que a arquitectura quase morreu – parte do aeroporto não tem luz natural, idosos cambaleavam nas escadas. E que quem não aprendeu a ler um mapa nem a casa consegue chegar.

Graças a quem trabalha, nos transportes, nos hospitais (os dos privado, como terá sido, mandaram os doentes para o público?), na rede eléctrica, o mundo essencial continuou a funcionar. Não foram precisos gestores, financeiros e consultores, foram mesmo os trabalhadores que resolveram tudo.

Ao contrário da opinião publicada, que afirma que as “pessoas foram “surpreendentemente civilizadas”, eu não achei nada surpreendente. Acho sempre as pessoas mais civilizadas do que os governos e as empresas. As pessoas puderam ser pessoas. Tiveram um dia de normalidade na vida delas.

Os meus filhos e amigos já tinham planeado ir ver o Universo, e as estrelas cadentes, e olhar o céu, iluminado, quando veio a luz e tudo voltou àlll anormalidade, perante o espanto. Quando me perguntam o que é o socialismo, vou voltar a ter essa rubrica semanal no meu podcast, já posso dar o exemplo de ontem. Socialismo é o que vivemos ontem, mas com máquina de lavar roupa ligada.

Apagou-se a nossa ligação umbilical ao lucro, e ligou-se o essencial – as nossas relações, a vida. Renascemos.

Raquel Varela

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