A França e a Armadilha Liberal, por Alberto Carvalho, 20 Maio 2025

Liberté, Égalité, Fraternité: o lema inscrito nas fachadas dos edifícios públicos franceses tornou-se, com o tempo, uma espécie de nostalgia institucional. 

A pátria dos direitos do homem e do cidadão viu-se, nas últimas décadas, prisioneira de uma trajectória política que, em nome da liberdade económica, foi desmontando os alicerces sociais que sustentavam o modelo republicano. 

A França, que outrora oferecera ao mundo a promessa de um Estado forte ao serviço da justiça social, tornou-se, ironicamente, refém do mesmo liberalismo que dizia querer domesticar.

Desde a década de 1980, com a viragem de François Mitterrand para políticas de mercado e os subsequentes governos – de centro-direita e centro-esquerda – que seguiram a cartilha da “modernização”, a França mergulhou num ciclo de privatizações, flexibilização laboral e desregulação financeira. 

O resultado? 

Uma sociedade mais desigual, mais insegura e mais fragmentada.

Segundo dados do INSEE (Institut national de la statistique et des études économiques), o coeficiente de Gini – que mede a desigualdade – aumentou de forma significativa desde os anos 1990. 

A pobreza infantil ronda hoje os 20%, e mais de 10 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, num país com uma das maiores economias do mundo. 

O desemprego jovem permanece estruturalmente elevado, e o acesso à habitação tornou-se um pesadelo para a classe média urbana.

O sistema de saúde, outrora orgulho nacional, sofre de subfinanciamento crónico. 

Hospitais públicos são encerrados ou fundidos, as urgências vivem em colapso, e o número de médicos de clínica geral diminui nas zonas rurais. 

A educação segue o mesmo caminho: escolas degradadas, professores exaustos e um sistema que perpetua desigualdades em vez de as corrigir.

O caso dos gilets jaunes é sintomático: uma revolta vinda da periferia esquecida, da França que não aparece nos salões dourados do liberalismo ilustrado. 

Aqueles que trabalham e pagam impostos, mas que já não conseguem viver com dignidade, rebelaram-se contra uma elite que fala de “eficiência” e “competitividade” enquanto falha no mais básico: garantir uma vida decente.

As reformas das pensões, recentemente implementadas por Emmanuel Macron, contra a vontade popular e com repressão policial, demonstram como o consenso social foi substituído pela imposição tecnocrática. 

A idade da reforma subiu para 64 anos, num país onde muitos começam a trabalhar cedo e em profissões fisicamente exigentes. 

Foi uma vitória dos mercados sobre os cidadãos.

Entretanto, cresce a extrema-direita, alimentada pelo ressentimento social, pela insegurança cultural e pelo desespero das classes populares abandonadas. 

A liberalização económica não apenas falhou em unir os franceses – fê-los recuar para a lógica do inimigo: o estrangeiro, o imigrante, o “outro”.

A França não se tornou mais livre: tornou-se mais frágil. 

E quando a liberdade se divorcia da justiça social, o que sobra é uma liberdade estéril, retórica – muitas vezes ao serviço dos mais fortes.

AC

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