“Os EUA não têm mais condições nem vontade política para construir um projeto hegemónico. São um império falido”. Entrevista a Monica Hirst, in CNN Portugal

Monica Hirst é bolseira de investigação do Instituto Nacional de Estudos de Ciência e Tecnologia do Brasil foto: NAAPE

Começo pelo que a trouxe a Lisboa, para debater o impacto deste “choque trumpiano” no mundo e as relações e parcerias que a União Europeia pode desenvolver com nações da América Latina e também de África. Há algum tempo publicou um artigo no qual defendia que o Brasil poderia funcionar como uma espécie de ponte entre a Europa e o resto do chamado Sul Global.

Sim, e não é só da Europa. Pensando o Ocidente de uma maneira mais ampla, a política externa do atual Governo do Brasil, é uma política externa que procura justamente não confrontar e, sim, criar articulações, interesses, sinergias. Em breve, o presidente Lula vai para a reunião do G7 [entre 15 e 17 de junho, no Canadá], tentando justamente dirimir um pouco a ideia de que os BRICS e o G7 são grupos antagónicos, ou seja, é uma preocupação da política externa do Brasil de abrir diálogos. Um grande exemplo nesse sentido é o empenho que o país tem, esse Governo em particular, mas que não é só de hoje, em relação a um acordo com o Mercosul, um acordo do Mercosul com a União Europeia (UE), que está a ser preparado há 30 anos.

E que está difícil…

É um acordo muito difícil. O Brasil tem relações importantes económicas com os Estados Unidos e quer continuar a ter, apesar de no contexto da política internacional, da política externa dos Estados Unidos, neste momento, ser mais difícil. Ainda assim, o Brasil quer ampliar o relacionamento e acha que é importante isso ser feito também desde um prisma regional. Daí a participação recente na reunião da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] em Pequim, e esta relação com a China que, hoje em dia, é uma relação robusta. A China fala uma linguagem diplomática, principalmente do ponto de vista da governança global, que é muito convergente com os interesses que a região – e o Brasil, em particular – têm por um multilateralismo mais vigoroso, mais presente. [O Brasil] está a sofrer muito com o unilateralismo dos Estados Unidos, e com este foco total na relação transatlântica.

No final do ano passado, a Gulbenkian acolheu uma conferência dedicada a debater esta dita nova ordem global, se estamos a sair ou se já saímos da ordem pós-II Guerra Mundial, se estamos numa desordem, se estamos a passar do bipolarismo para o multipolarismo, o que até põe em causa certos conceitos, como o conceito de Sul Global, por oposição ao Norte Global.

O Brasil e a América Latina tiveram um papel fundamental no pós-guerra, historicamente falando, na criação do sistema das Nações Unidas. Houve um momento em que a carta do Atlântico tinha 43 assinaturas e quase 30 eram da América Latina, ou seja, sempre houve uma preocupação enorme de ter uma visão construtiva de multilateralismo onde os países europeus também trabalhassem nesse sentido, não só na presença do Conselho de Segurança, dentro do sistema das Nações Unidas, mas na agenda da descolonização.

Por exemplo, o Brasil empenhou-se muito na descolonização. Nessa época, a América Latina já estava descolonizada, mas os países africanos e asiáticos não. Essa perspetiva positiva de um multilateralismo e de uma multipolaridade inclusiva é o que hoje sobressai na política internacional, mas que tem vindo a ser feita há mais tempo pelo Brasil e se calhar por outros países. Tem uma tradição histórica, claro. Agora, dito isto, existem diferenças também importantes com a União Europeia. O Brasil e alguns países da região têm resistência sobre a forma e os conteúdos das negociações de paz, que ainda não é uma realidade, é uma promessa… 

Em que sentido?

A ideia de que a Ucrânia e a Rússia se vão poder sentar à mesa e levar adiante esse processo. A guerra e toda a violência do Estado de Israel contra a Palestina. São poucos os países da União Europeia que mantêm uma posição firme de repúdio.

Estamos agora a ver alguns países da União Europeia a tomar uma posição mais forte no que toca a Israel…

Mas não são todos. Isso é uma preocupação enorme para o Brasil. O Brasil é um país que tem muita sensibilidade humanitária. É importante que a União Europeia saiba conviver com essas diferenças porque o Brasil e muitos países da região não vão mudar de visão sobre esses temas.

Falava do papel do Brasil na fundação da própria ONU. Há um ano houve um intenso debate renovado sobre o funcionamento da ONU e a necessidade de reformas, sobre a necessidade de, por exemplo, renegociar os tratados, sobre se o Conselho de Segurança reflete esta multipolaridade de que estamos a falar…

Não, não reflete. Claro que não reflete. Porque até agora ela [ONU] não sofreu a reforma necessária, até mesmo para criar membros.

Mas é possível essa reforma? Pode este momento desestabilizante que estamos a viver ser um catalisador de reformas em instituições como a ONU?

Acho muito difícil, porque potências mundiais como a China ainda não demonstraram um interesse maior pela reforma do Conselho de Segurança e muito menos pela inclusão [no Conselho de Segurança] de países como o Brasil, como a Índia, como a África do Sul, que são países que estão articulados. Ou o G4, que inclui o Japão e a Alemanha também. Portanto é difícil pensar que isso vai ser superado. Nesse momento, os Estados Unidos não têm nenhum interesse, porque os Estados Unidos não têm nenhum interesse pelo multilateralismo em geral. Os Estados Unidos querem lidar, ou o Governo Trump quer lidar com as potências numa mesa de negociação exclusiva. 

Negociar com cada uma isoladamente. 

Exato.

Um dos oradores desta conferência, Jim O’Brien, considera que estamos a enfrentar uma “tempestade”, diz que, acima de tudo, temos que nos agarrar bem para aguentar este caos da administração Trump e tentar fazer o melhor possível com os seus resultados e consequências, até a tempestade passar. Qual é a sua visão? 

Não, é mais do que uma tempestade. Não é só uma questão meteorológica a ser superada. É um processo de transformação, de mudança, mudança de época. O mundo que conhecemos, eu nem conheci desde o início, mas de qualquer maneira, o mundo pós-45, pós-II Guerra, é um mundo superado historicamente. É um mundo baseado numa hegemonia de uma potência que já não é hegemónica. Os Estados Unidos aspiram a uma supremacia, a uma primazia, mas eles não têm mais condições, nem a vontade política para construir um projeto hegemónico. São um império falido. E não são substituídos por ninguém. A presença da China, por exemplo, que é outra potência, é uma potência económica, sem dúvida nenhuma, é uma presença, hoje, política, geopolítica, da maior importância, mas não constrói um projeto. E o capitalismo chinês não é um projeto que visa uma hegemonia. O mundo é outro. 

Por isso digo que vai além de uma questão meteorológica. O mundo está a ser outro. Estamos a entrar numa etapa de um mundo sem hegemonias, o que o torna mais incerto, o que o torna mais instável, mais volátil, mas não impossível.

Como se navega nesse novo mundo?

É preciso recuperar uma capacidade de alianças, de vinculações, onde, possivelmente, nessa primeira etapa, os Estados Unidos vão participar pouco ou nada. O impulso construtivo no sistema político mundial, hoje, não está a vir dos Estados Unidos. Então, esquecendo a analogia com tempestades, podemos olhar para isto como uma oportunidade de facto para, por exemplo, fecharmos este acordo [UE-Mercosul] que andamos a negociar há 30 anos. É nisso que temos de apostar. É em todas as oportunidades que essa turbulência, que esse momento de incerteza, também está a gerar. Temos de nos afastar do precipício e ver, entre nós, o que podemos fazer juntos.

Ver qual é o interesse comum?

Certo, que não é via armas e guerra. Aumentar os orçamentos militares na Europa, neste momento, parece-me um erro, em detrimento de políticas sociais, de bens públicos regionais. É muito perigoso. 

Há quem defenda que a UE está bem posicionada para alumiar o resto do mundo nesta nova fase sem os EUA, por exemplo no contexto do combate às alterações climáticas, agora que um país que, sendo responsável por um terço das emissões poluentes mundiais, já não faz parte do Acordo de Paris. Com o Brasil a preparar-se para receber a próxima grande cimeira do clima (COP30), em novembro, o que pensa sobre isto? 

A Europa tem autoridade para ser, como se diz em inglês, a rule-maker, uma fazedora de regras no campo ambiental. O que não deveria, e creio que será contraproducente, é continuar a transformar as suas visões, as suas conquistas ambientais, em condicionalidades para os outros. Esse é um dos grandes problemas, hoje, do acordo com o Mercosul. Condicionalidade está relacionada com a simetria de poder. E isso a Europa não tem. A Europa não é uma autoridade, hoje em dia, que pode subjugar ou impor vontades.

História de Joana Azevedo Viana | CNN Portugal

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