Miséria no século XXI?, by Jeffrey Sachs, 24 April 2008

A época atual é a primeira da história na qual é possível acabar com a pobreza extrema. Com o progresso material sem precedentes do mundo rico, alavancado pela ciência, pela tecnologia e pelos mercados globais, há a possibilidade de evitar a morte de milhões de pessoas que estão presas à armadilha da pobreza. Tais questões são o assunto do livro O fim da pobreza (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), do economista americano Jeffrey Sachs, autor de importantes estudos sobre desenvolvimento econômico.

Sachs trabalhou por muitos anos como professor em Harvard. Ele ajudou na superação de algumas crises econômicas: foi consultor de governos de países como Bolívia e Polônia. Interessou-se pela economia do desenvolvimento, viajou por mais de cem países e passou a trabalhar na luta contra a miséria, mais recentemente como diretor do Instituto da Terra da Universidade Colúmbia. Sachs escreve com notável clareza. Explica bem as suas idéias e procura sempre baseá-las nos fatos: justifica suas afirmações citando estudos importantes, gráficos, tabelas, enfim, dados que não deixam dúvidas sobre as questões que estão sendo discutidas.

Há três tipos de pobreza: extrema, moderada e relativa. A pobreza extrema, ou miséria, é aquela em que as famílias não satisfazem as suas necessidades básicas. A pobreza moderada é a condição de vida na qual as necessidades básicas são satisfeitas, mas com dificuldade. Pobreza relativa é a renda que está abaixo de determinada proporção da renda nacional. Quando Sachs fala em fim da pobreza, ele se refere à pobreza extrema. Vale lembrar que a pobreza extrema não existe em países desenvolvidos.

Considera-se condição de miséria aquela na qual a renda por pessoa é inferior a um dólar por dia. A pobreza moderada abrange a população com renda entre um e dois dólares por dia. Hoje há no planeta aproximadamente um bilhão de miseráveis, um bilhão e quinhentos milhões de pobres, dois bilhões e quinhentos milhões de pessoas de renda média e um bilhão de pessoas no mundo rico. Informações mais detalhadas sobre esses dados podem ser obtidas no ensaio Can extreme poverty be eliminated?, de Jeffrey Sachs.

Ao contrário do que muita gente pensa, o número de miseráveis no mundo diminuiu recentemente. Entre 1981 e 2001, houve uma redução de quatrocentos milhões no número de pessoas vivendo na miséria. Não é impossível que a proposta de Sachs, de acabar com a pobreza extrema até 2025, seja realizada. Se os países ricos doarem 0,7% do produto interno bruto de cada um, quantia já prometida por eles, haverá recursos para o fim da miséria.

Para que se tenha uma idéia da gravidade da miséria no mundo, citarei um trecho do livro de Sachs que mostra o número de pessoas que morrem anualmente por problemas evitáveis. Lamentavelmente, os meios de comunicação não dão a eles o devido destaque, e a maioria dos detentores do poder político e do poder econômico não os consideram relevantes.

Jeffrey Sachs escreveu: “Todas as manhãs, nossos jornais poderiam anunciar: ‘Mais de 20 mil pessoas morreram ontem de miséria’. As matérias poriam os números em contexto: até 8 mil crianças mortas pela malária, 5 mil mães e pais mortos de tuberculose, 7500 adultos jovens vítimas de aids e outros milhares mortos de diarréia, infecção respiratória e outras doenças mortais que atacam corpos enfraquecidos pela fome crônica. Os pobres morrem em hospitais que não têm medicamentos, em aldeias que carecem de mosquiteiros, em casas que não possuem água potável. Morrem sem nome, sem comentário público. É triste, mas essas matérias raramente são escritas. A maioria das pessoas não têm consciência das lutas cotidianas pela sobrevivência e da enorme quantidade de gente pobre em todo o mundo que perde essa luta” (p. 27). Mais de oito milhões de pessoas em todo o mundo morrem anualmente por causa da pobreza extrema. São números vergonhosos para a nossa espécie, num mundo que já tem os meios para resolver esses problemas.

Vejamos como os países chegaram à condição atual. Durante a maior parte da história da humanidade, a pobreza foi a regra. Todos os países tinham níveis de renda similares.  Todos eram igualmente pobres. No século XVII, a renda média dos países mais ricos era inferior à dos pobres de hoje, e a expectativa de vida era muito menor. Durante séculos, os padrões de vida se mantiveram praticamente estáveis. Só nos últimos dois séculos houve a explosão de crescimento econômico. O hiato entre países ricos e pobres é um fenômeno novo, resultado de padrões desiguais de crescimento econômico.

Desde a Revolução Industrial, na qual foram usadas novas formas de energia para a produção em escala, houve aumento da população e da renda per capita a taxas jamais vistas. Notável também foi o aumento da produtividade agrícola. Como escreveu David Landes, a Revolução Industrial marcou uma mutação fundamental na história do homem: “Foi a Revolução Industrial que deu início a um avanço cumulativo e auto-sustentado da tecnologia, cujas repercussões se fariam sentir em todos os aspectos da vida econômica” (Prometeu desacorrentado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p. 8). Se a riqueza de alguns países fosse resultado do empobrecimento de outros, a atividade econômica total permaneceria estável. Mas, ao contrário, o produto mundial bruto cresceu 49 vezes nos últimos 180 anos. A tecnologia foi a principal força para o aumento da renda, não a exploração dos pobres.

Segundo Jeffrey Sachs, a Inglaterra liderou a Revolução Industrial devido aos seguintes fatores: abertura da sociedade (espaço para a iniciativa individual e a mobilidade social),    fortalecimento de instituições de liberdade política (o Parlamento britânico e suas tradições de liberdade de expressão e debate aberto), aceitação de idéias novas e proteção dos direitos de propriedade privada. Entre as conseqüências da Revolução Industrial, podemos citar: urbanização, maior mobilidade social, novos papéis da família e dos gêneros, transição demográfica e especialização no trabalho.

Logo em seguida, com a difusão de idéias e tecnologias, houve crescimento em outros países e o aumento do padrão de vida em muitas partes do mundo. Já no século XX, com a Primeira Guerra Mundial, o processo de globalização foi freado. No período das guerras mundiais, aumentaram a instabilidade financeira e o protecionismo comercial.

Outro obstáculo ao desenvolvimento econômico da humanidade foi a devastação causada pelo comunismo, que atingiu um terço da população mundial. Esses países ficaram isolados, sem aproveitar os benefícios do comércio internacional. Da mesma forma, políticas desastradas em países do Terceiro Mundo, com suas economias fechadas, levaram à estagnação econômica e ao aumento da corrupção. Nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, nas quais os países desenvolvidos de hoje tiveram altas taxas de crescimento, o maior sucesso foi obtido justamente onde houve maior abertura da economia ao comércio internacional.

Sachs diz que “o enigma crucial para compreender as enormes desigualdades de hoje é entender por que diferentes regiões do mundo cresceram a taxas distintas durante o período do crescimento econômico moderno” (p. 57). Por que alguns países não conseguem prosperar? Sachs cita algumas maneiras pelas quais uma economia pode declinar: ausência de poupança, ausência de comércio, regressão tecnológica, declínio dos recursos naturais, choque adverso de produtividade e crescimento populacional.

A geografia adversa, as doenças, as condições áridas precisam ser levadas em conta, pois podem aumentar os custos de transporte e reduzir a produtividade do trabalho. Regiões próximas ao mar e aos principais mercados têm mais chances de atrair investimentos. Em relação a países pobres da África, essas questões são relevantes para a compreensão do atraso econômico. Sobre a importância dos fatores geográficos, geralmente negligenciados nos estudos sobre desenvolvimento econômico, recomendo o estudo feito por Sachs e outros autores que tem o título The Geography of Poverty and WealthQuando são feitas comparações entre os países na questão do desenvolvimento econômico, nem sempre são consideradas as características específicas de cada um. É importante fazer o que Sachs chama de diagnóstico diferencial.

É enorme a desigualdade de atividade inovadora quando comparamos os países ricos aos pobres. No mundo rico, mercados grandes aumentam os incentivos à inovação. São feitos investimentos maciços em pesquisa, também por parte do Estado. Já nos países pobres, a inovação é desestimulada pelo poder de compra baixo, que não recupera os custos do desenvolvimento de um produto novo.

Há ainda as barreiras culturais. Em países nos quais as mulheres são discriminadas, é mais difícil haver a transição demográfica da alta fertilidade para a baixa fertilidade. Como explica Sachs, a armadilha demográfica consiste no fato de que crescimento demográfico alto leva a uma pobreza mais profunda, e a pobreza mais profunda contribui para o aumento das taxas de fertilidade. Em alguns países, as barreiras culturais se aplicam a minorias religiosas ou étnicas, cujos direitos não são respeitados.

O estrangulamento da dívida é outro problema para muitos países pobres. Em certas circunstâncias, só o cancelamento da dívida pode dar perspectivas de crescimento para o futuro. Sachs discutiu acaloramente por muitas vezes com autoridades do FMI sobre o cancelamento da dívida de países pobres. É importante evitar o colapso do Estado para que este cumpra funções como a manutenção da paz e da segurança interna e a preservação dos direitos de propriedade. A austeridade dos programas do FMI reduziu os recursos para serviços de saúde e educação, o que, em especial nos países pobres, aprofunda a exclusão social.

Quando as pessoas são muito pobres, precisam de toda a renda, ou mais, para sobreviver. Não sobra nada para investir. Países pobres têm taxas de poupança baixas.

Nos países pobres, é menor a capacidade dos governos de coletar impostos. Assim, faltam recursos para investimentos em infra-estrutura e capital humano. Deficiências nessas áreas tornam um país menos atrativo para investimentos privados. É a armadilha da pobreza. A ajuda externa é necessária em países muito pobres para que estes saiam da armadilha da pobreza. A ajuda não é uma esmola, e sim um investimento para que os países mais pobres caminhem por conta própria na escada do desenvolvimento. Pôr o pé no primeiro degrau da escada é a parte mais difícil do desenvolvimento econômico.

Sachs aponta a necessidade de uma nova abordagem à economia do desenvolvimento. O novo método proposto pelo economista é chamado de economia clínica, para mostrar as semelhanças com a medicina clínica. A complexidade exige diagnóstico diferencial, e o monitoramento e a avaliação são essenciais. O diagnóstico diferencial envolve perguntas referentes à dimensão da miséria, à política econômica, à estrutura fiscal, à geografia física e à ecologia humana, aos padrões de governança, às barreiras culturais ao desenvolvimento econômico e à geopolítica.

Sachs relata suas viagens por países com diferentes graus de desenvolvimento econômico. No Malaui, um dos mais pobres, a população sofre com as doenças, a falta de clínicas próximas e de acesso a medicamentos. Além disso, há muitas crianças que não podem continuar seus estudos porque suas famílias não têm dinheiro para pagar taxas das escolas e outras despesas com educação. As crianças ficam então mais limitadas para melhorar de vida. O país perde porque lhe faltará capital humano. Outro problema de muitos países africanos é a infra-estrutura deficiente. São países pouco atrativos para investimentos externos, ou seja, não aproveitam adequadamente as vantagens da globalização. Por isso, Sachs afirma que são necessárias precondições de infra-estrutura e capital humano, áreas em que o Estado precisa investir.

Outro país visitado por Sachs foi o Bangladesh, onde a pobreza, muito acentuada há algumas décadas, está em recuo. Embora as condições de trabalho em geral não sejam as melhores, com longas jornadas de trabalho, os empregos gerados nas cidades com o crescimento econômico significam para muitas pessoas a superação das condições de pobreza, fome e analfabetismo nas quais viviam seus antepassados nas aldeias. Com o progresso econômico, com os empregos para mulheres nas cidades e microempresas rurais, houve mudanças na cultura: a discriminação da sociedade patriarcal opressora, com seus casamentos arranjados, passa a dar lugar a uma nova consciência dos direitos das mulheres. Diminuiu o número de filhos por mulher, o que é importante para a redução da pobreza: famílias com menos filhos podem investir mais na saúde e na educação de cada um deles, ampliando as suas chances de sucesso na vida. Bangladesh já subiu o primeiro degrau na escada do desenvolvimento.

Na Índia, Jeffrey Sachs teve sua primeira visão da pobreza extrema, em 1978. Com a independência do país, aumentou a alergia ao comércio internacional e aos investimentos externos. Isso levou o país ao atraso, agravado pela negligência com a educação e a saúde pública. A Índia começou a prosperar com o fim dos controles estatais e das restrições burocráticas ao comércio e ao investimento. Os institutos indianos de tecnologia formaram empreendedores e engenheiros de alta qualidade. Com isso, a Índia aproveitou as novas possibilidades da tecnologia da informação. E merece ser citado o fato de que a democracia e o desenvolvimento econômico contribuem para o desgaste de velhas hierarquias sociais.

Sachs foi atraído pela China por causa das imensas reformas no sentido da economia de mercado. A China é a economia mais bem-sucedida do mundo nas últimas décadas, com altas taxas de crescimento. Sachs diz que nenhum país experimentou um grau de tumulto e oscilações da miséria ao triunfo como a China. É verdade que o crescimento é desigual, concentrando-se em determinadas regiões. Impulsionado pelas zonas econômicas especiais, dedicadas à exportação de manufaturados, o crescimento econômico chinês pode ser explicado por fatores como a mão-de-obra barata, a disponibilidade de tecnologia internacional e a torrente de fundos de investimento. É bom lembrar também que o desmantelamento do sistema de comunas levou a um grande salto da produção agrícola.

A China é um exemplo da tendência à diminuição da diferença de renda entre países ricos e pobres. No entanto, a China precisa melhorar a proteção ambiental, pois é enorme o seu potencial para destruição dos ecossistemas. E há também a necessidade de um novo sistema político, menos centralizado, mais democrático e que leve em conta o respeito aos direitos humanos.

Voltemos às questões relacionadas mais especificamente ao problema da miséria. A ajuda aos países pobres tem sido insuficiente. Os países ricos em geral não cumprem a promessa feita por eles de doar 0.7% do produto interno bruto para o combate à miséria. Com a diminuição do número de miseráveis nas últimas décadas e a imensa riqueza dos países desenvolvidos, hoje é menor o custo relativo para acabar com a pobreza extrema.

Quando Sachs fala em ajuda aos pobres, seu objetivo não é distribuir renda. Ele sempre enfatiza que é o crescimento da economia o fator decisivo. Mas para chegar a isso os países pobres precisam sair da armadilha da pobreza, com a acumulação de poupança para investimentos privados e com a presença do Estado na infra-estrutura e na formação de capital humano. Assim haverá o crescimento auto-sustentado. A concepção de Sachs, baseada em seus estudos sobre o desenvolvimento econômico de diversos países, aponta as insuficiências dos extremismos em relação ao papel do Estado: “Assim como a tentativa comunista de banir a competição da cena econômica via propriedade estatal fracassou redondamente, o mesmo aconteceria com uma tentativa de gerir uma economia moderna com base apenas nas forças do mercado. Todas as economias bem-sucedidas são mistas, utilizando tanto o setor público como o privado para conseguir o desenvolvimento econômico” (p. 372).

O fim da miséria é o desafio da nossa geração. Sachs cita outros exemplos de desafios geracionais, os quais tiveram sucesso: o fim da escravidão, o fim do colonialismo, os movimentos dos direitos civis e contra o apartheid. Para concretizar as metas de desenvolvimento do milênio e acabar com a pobreza extrema, Sachs propõe estes passos: comprometer-se com o fim da pobreza, adotar um plano de ação, elevar a voz dos pobres, redimir o papel dos Estados Unidos, resgatar o FMI e o Banco Mundial, fortalecer as Nações Unidas, aproveitar a ciência global, promover o desenvolvimento sustentável e assumir um compromisso pessoal.

A pobreza extrema leva a discussões no âmbito da Ética. Ao reconhecer que toda a premência moral tem sua base na premência do sofrimento ou da dor, Karl Popper sugeriu a substituição da fórmula utilitária “aspiremos à maior quantidade de de felicidade para o maior número de pessoas”, ou “felicidade ao máximo”, pela fórmula: “a menor quantidade possível de dor para todos”, ou “dor ao mínimo”. Escreveu Popper: “Esta fórmula tão simples pode-se converter, creio, num dos princípios fundamentais da política pública. É mister compreender, além disso, que do ponto de vista moral não podemos tratar simetricamente a dor e a felicidade; isto é, que a promoção da felicidade é, em todo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e a tentativa de prevenir sua dor” (A sociedade aberta e seus inimigos – vol. I. Belo Horizonte, Itatiaia, 1998, p. 256).

O fim da miséria é uma possibilidade que está ao alcance da nossa geração. A resposta às profundas necessidades humanas de nossos semelhantes poderá assegurar à época atual um lugar de destaque na história, pois o fim da pobreza extrema significaria a superação de um problema que nunca deixou de afetar o ser humano, ferindo sua dignidade. Cabe a todos nós a construção de uma ordem social e internacional que assegure a todas as pessoas os direitos e liberdades sem os quais estarão condenadas à coisificação.

posted by: antunesmat at 09:28 | link | |
jeffrey sachs

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